Casamento de Harry e Meghan Markle é tapa no racismo, mas o traz à tona
Se Meghan Markle se declarasse negra para ingressar em alguma universidade brasileira pelo sistema de cotas, correria o risco de ser acusada de fraude. A noiva do príncipe Harry não parece negra. Mas, como ela se define com justificado orgulho, é "uma mulher forte e confiante, de raça mestiça" (pai branco, mãe negra).
Seu iminente casamento com um membro da família real britânica é um tremendo avanço, constatado de resto pelo semanário conservador "The Spectator": "Setenta anos atrás, teria sido o tipo de mulher que o príncipe teria como amante, não como mulher".
À parte o evidente substrato racista da afirmação, não deixa de ser verdade que uma pessoa mestiça não caberia naquela coleção de branquelos/as que é a família real. Aliás, acho até que nem seria preciso retroceder 70 anos para fazer essa constatação; 20 anos bastariam.
O orgulho que Meghan exala por sua origem acabou por, de alguma maneira, contaminar a própria realeza britânica, pelo menos na visão da escritora Afua Hirsch. Afua tem raízes negras (ganenses) e judaicas, o que a torna parte de dois dos coletivos que mais sofrem discriminação no mundo.
Pois bem, ela escreveu para o jornal britânico "Guardian" que o casamento de Meghan e Harry "tornará realidade o que o establishment britânico carecia de imaginação até para conjecturar como possível há apenas 17 anos —que um membro sênior da realeza pudesse amar e casar-se com alguém cuja herança étnica é não apenas diferente da própria herança, mas é a herança que mais tem sido tratada como diferente na Grã-Bretanha: negra e africana".
O anúncio do casamento fez aflorar essa herança ou, mais propriamente, o racismo que fica escondido nas dobras de uma sociedade que se pretende civilizada. A "Spectator", já citada, não deixa de dizer, indiretamente, que negras só servem para amantes, não para mulheres legítimas dos brancos.
O tabloide "Daily Mail" foi mais direto, ao informar que Meghan não entrará na linha de sucessão ao trono, pela simples razão de que essa possibilidade só é dada para quem tem sangue azul.
Ainda assim, Afua Hirsch vê um lado simpático no noivado. Escreve: "Cresci com o sentimento de que a monarquia era fundamental para a 'britanidade', mas que a 'britanidade' que ela representava me excluía", o que "fazia outras pessoas sentirem que ser realmente 'british' e ser negro eram identidades incompatíveis".
Não estou seguro de que o simples fato de Harry ter escolhido a filha de uma negra para companheira torne a "britanidade" compatível com a negritude. Na verdade, acho que nem deveria ter havido —e persistido— a incompatibilidade apontada por Afua Hirsch.
Pode ter sido mais uma escolha isolada de um príncipe que sempre foi um ponto fora da curva, um iconoclasta em uma família circunspecta. Torço, de qualquer forma, para que tenha razão o editorial publicado nesta quarta-feira (29) no "New York Times", que afirma que o mundo, "tão público", do príncipe Harry e de Meghan é aquele em que "classe, história de vida, nacionalidade e raça não são obstáculos para o amor".
Nenhum comentário:
Postar um comentário