05 de novembro de 2016 | N° 18679
CARPINEJAR
Coração fixo dos pais
Quando você perde o celular ou ele estraga, entra em pânico. Não lembra de nenhum número de cor. Você apenas preserva os telefones no aparelho e não explora mais o raciocínio. A última vez que decorou algo com devoção foi a tabuada na infância.
Não tem mais a necessidade de anotar na palma suada da mão e passar a limpo com a ansiedade dos olhos. Não há rascunhos dos códigos.
O que você conhece da vida de seu amor e de sua família está alojada na pastinha dos contatos. Mesmo o celular da sua esposa e dos seus filhos estão lá. Vendemos a nossa memória para as operadoras. Recobraremos alguns números, mas não a ordem exata. Nossos melhores amigos encontram-se presos no chip. De um instante para o outro, o universo de referências desaparece e somos combinações de trotes e enganos.
Não existe como solicitar socorro e avisar que ficou sem comunicação. Mentaliza o desespero dos seus familiares buscando ligar freneticamente, e o seu celular mortinho. E a sua memória morta junto.
E se dará conta de que o único número que recordará será o fixo da casa dos pais. Exatamente o número telefônico que nunca mudou em sua história. Telefonará aos pais para o resgate afetivo de suas raízes.
– Mãe? Mãe? Que bom que está em casa, pode avisar a minha mulher que estou sem celular.
Engraçado que a mãe sempre está em casa quando você precisa. É a intuição materna provando a sua força.
Por mais que amadureçamos e nos tornemos independentes, jamais esqueceremos os pais. É para eles que regressamos quando precisamos de verdade. É para eles que reivindicaremos cuidados na amnésia e nos recomeços. Os pais são para sempre, mesmo que a relação seja fundada em brigas. No momento decisivo, os desentendimentos somem.
O único telefone que lembraremos é o da residência primeira, a residência onde prometemos um dia não voltar tarde.
O telefone fixo dos pais forma o escapulário nas lembranças que nos protege do mundo. Impossível de ser apagado ou de ser removido. Nenhuma tecnologia destrói a voz dos pais ensinando como discar para o endereço.
Lembro nitidamente o número ...333411... assim como lembro que sempre que caía um botão na minha infância, a mãe não pedia para entregar a roupa. Ela buscava a sua almofada negra de agulhas, sentava em um banquinho em minha frente e consertava a camisa na hora. Recriava o ventre por alguns minutos. Eu sentia a linha ziguezagueando próxima da pele. Acho que, no fim, ela costurou o número do seu telefone em meu corpo para que eu fosse devolvido são e salvo.
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