sábado, 26 de outubro de 2013


27 de outubro de 2013 | N° 17596
MARTHA MEDEIROS

Biografias, ainda elas

É uma discussão de difícil consenso: liberdade de expressão x direito à privacidade. Dois pilares indispensáveis para uma sociedade civilizada. Como equilibrar os interesses?

Em 2005, publiquei uma pequena novela que tratou desse tema. Em Selma e Sinatra, uma jornalista entrevista uma famosa cantora a fim de escrever sua biografia, e durante suas conversas a cantora deixa escapar que teve um rápido affair com Frank Sinatra, mas não quer que isso seja revelado, pois era casada na época. A jornalista surta com o veto. E abre-se o debate entre elas: o que torna, afinal, uma vida interessante aos olhos dos outros?

Não condeno quem tenta preservar sua intimidade. Se um engenheiro não gostaria que falassem sobre seus porres, se um desembargador evita admitir que fumava baseados na adolescência, se uma publicitária não quer que vasculhem sua sexualidade, se uma professora não deseja que saibam que ela teve um caso extraconjugal, por que um artista deveria se sentir confortável com a exposição disso tudo?

Muitos responderiam: porque ele tem uma vida pública. Como se fosse um acerto de contas: “Já que você é rico, célebre e bem-sucedido, entregue seus podres em troca”. Mas em troca de quê? De ter realizado um trabalho que o deixou em evidência? É alguma espécie de punição por ser reconhecido nas ruas?

Sou uma leitora voraz de biografias e considero que toda história de vida é ficção. Quando leio livros sobre Marylin Monroe, Patti Smith ou Nelson Rodrigues, entendo que o autor, por mais que tenha pesquisado, por maior que seja sua boa fé, não tem como saber toda a verdade: as suposições contracenam com os fatos.

O biografado se torna um personagem – bem realista, mas um personagem. Até mesmo quem escreve a própria biografia maquia um pouquinho a si mesmo. Ninguém se deixa conhecer 100%. O leitor experiente tem consciência disso e rende-se à criação e à qualidade do texto.

Ou seja, em vez de discutir legislação, o ideal seria que lêssemos mais e melhor para mudar nossa mentalidade de abelhudos, entendendo que há diferenças entre uma matéria de revista e um livro: as revelações que o livro traz situam o biografado num contexto histórico e social, ultrapassando as fofocas íntimas, que podem ser curiosas, mas não têm essa relevância toda.

Se estivesse bem clara a diferença entre um livro e a Caras, artistas cujas vidas despertam interesse editorial talvez não tivessem tantos melindres, pois confiariam na inteligência do leitor. Mas o que este prefere? Um relato com pimenta ou sem pimenta? Bem embasada ou contada com sensacionalismo? Aí é que entra a questão da mentalidade, que se não se refinar, continuará a gerar o desconforto dos biografados.

Literatura nenhuma deve ser censurada, coibida, mas também não deve ser lida com avidez apenas por causa de detalhes mundanos. Houvesse segurança no discernimento do leitor, essa polêmica talvez nem tivesse iniciado.


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