terça-feira, 15 de outubro de 2013


15 de outubro de 2013 | N° 17584
DAVID COIMBRA

Um passo e meio

O Flávio Bicudo, quando ia chutar uma falta, recuava passo e meio da bola. Foi o Kenny quem lembrou disso outro dia, no Sala de Redação. Falávamos de cobradores de falta. Vi o Flávio Bicudo, também chamado Flávio Minuano, vi o Flávio fazer esse ritual muitas vezes. Quase sempre dava certo. Se a falta fosse na meia-lua, a bola saía em curva, por cima das cabeças da barreira, e morria no ângulo.

Um passo e meio. O segredo do Flávio.

Flávio aprendeu a bater falta com o Larry Pinto de Faria. Era uma cobrança macia, de bola se esquivando do goleiro. Zico cobrava assim, e quem o ensinou foi Tadeu Ricci, um dos mais inteligentes meio-campistas que já calçou uma chuteira nos campos do Brasil. Bastava ter Tadeu no meio-campo e um time se organizava sozinho em torno dele. Em 76, Foguinho, em seu derradeiro ano como técnico, queria contratá-lo para o Grêmio.

O sonho de Foguinho era montar uma meia-cancha com o lateral-esquerdo Marinho Chagas, deslocando-o para a meia, mais Andrade e Tadeu Ricci. Dizia que com esse meio venceria o do Inter, que tinha Caçapava, Falcão e Batista (Carpegiani sofreu lesão séria naquele ano). Será que venceria? Bem, Foguinho sabia das coisas.

Lembro de um Gre-Nal em que Iúra sofreu falta na risca da área. Ele queria pênalti, o juiz não marcou e o Iúra se revoltou, ajoelhou-se no chão e socou a grama com raiva. Tadeu pegou a bola, acariciou-a e chutou por cima da barreira, na forquilha direita do Manga. Impossível de pegar. Tanto que nem o Manga, que era o Manga, pegou.

Tadeu, Flávio, Larry e Zico colocavam. Jair Rosa Pinto, um dos maiores batedores de falta do futebol brasileiro, chutava com violência talibã. Um dia ele contou que seu segredo era ajeitar a bola de forma que o peito do seu pé batesse no ventil. Hoje Jair enfrentaria problemas – as bolas não têm mais ventil. Com se enche uma bola, hoje? Não se enche? As bolas de agora não esvaziam? Que mistério.

As bolas de hoje também não têm mais aqueles gomos que se soltam. Antes, a gente jogava e jogava, e os gomos iam se descolando, ficavam pendurados como a pele queimada que descasca no verão.

As bolas eram maiores, mais pesadas e mais duras. Quando chovia, ficavam mais pesadas ainda. Aí, chutadores como Jair Rosa Pinto eram importantes. Ou como Éder. Uma vez, o Éder chutou uma falta a alguns passos do grande círculo, em um Gre-Nal, e marcou o gol. O goleiro do Inter era o Gasperin. Ficou todo desmanchado debaixo do travessão, que nem o Recruta Zero quando apanha do Sargento Tainha.

O Éder batia na bola com o lado de fora da canhota, ela saía em revesgueio. Mas nunca ninguém deu tanto efeito na bola como Nelinho. Ele chutava e ela fazia um esse. O duelo de Nelinho versus Manga na final do Brasileiro de 75 foi épico, histórico, único, para ficar em três adjetivos proparoxítonos.

Poucos foram como Valdomiro, que cobrava tanto com força quanto com jeito. Valdomiro, a estratégia dele era chutar sobre a cabeça do terceiro homem da barreira. Disse-me uma vez, quando já tinha parado de jogar, que mesmo aposentado, de três faltas que batia, numa fazia o gol.

Agora, claro que o melhor chutador do Brasil foi Roberto Rivellino. Calçava 37, o Rivellino. Um dia, o Jair, o Príncipe Jajá, me disse que o bom chutador tem pé pequeno, porque o pé pequeno pega melhor na curvatura da bola. Será?

Num jogo contra o Grêmio, o Riva colocava a bola meio metro para um lado ou outro e os jogadores do Grêmio enlouqueciam, esbravejavam, reclamavam para o juiz. Depois, desabafaram:

– Meio metro para o Rivellino é quase gol.

E era. Na Copa de 74, ele marcou um golaço que nunca vi igual, contra a Alemanha Oriental: Jairzinho se postou no meio da barreira. Quando Rivellino correu para chutar, ele se abaixou. A bola passou no vão deixado pelo Jairzinho e entrou no gol. Quem é capaz de fazer isso hoje? Nem Messi, nem Neymar, talvez Ronaldinho e olhe lá.

O fato é que um cobrador de falta é ouro puro, é uma preciosidade, e poucos times têm um. Não é tão difícil. É só treinar. Trinta, quarenta, cinquenta vezes depois do treino normal. Por que um Alex Telles, que tem força e efeito no chute, não treina? Zico, Nelinho, Flávio e Tadeu treinavam. Por que não, Alex Telles? 

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