terça-feira, 30 de julho de 2024


30 de Julho de 2024
CARPINEJAR

25 anos de Sarau Elétrico

O Sarau Elétrico completa 25 anos, e sou o convidado especial de hoje, às 20h, no bar Ocidente, ao lado dos anfitriões Katia Suman, Luís Augusto Fischer e Diego Grando, com canja musical da cantora Izmália. O evento é um fenômeno sobrenatural de leitura. Um milagre. Um acontecimento cultural.

Integra o imaginário porto-alegrense. Dificilmente você encontrará vivente que nunca tenha ido. É como não ter provado o cachorro do Rosário, o PF do Tudo pelo Social, o sanduíche da Lancheria do Parque, o bauru do Trianon. É como nunca ter experimentado um xis na vida.

O público paga 40 pilas para ouvir livros. Não há nada semelhante no país. Dentro de uma casa noturna, acostumada a baladas, abre-se espaço semanalmente para um sarau, para que três amigos, sentados em banquetas altas num palco, repassem trechos de suas leituras prediletas.

Não são performances, não são esquetes: trata-se de um recital à moda antiga. Pela iluminação à luz de velas nas mesas, retorna-se magicamente ao século 19. - É o único evento regular, e o mais longevo do Brasil. Nunca carecemos de público, nunca deixamos de fazer - destaca Katia.

Já ocorreram 1.100 apresentações, já foram lidos aproximadamente 5 mil textos dos mais diferentes autores pelo trio de personalidades. Cinquenta mil pessoas passaram pela sua bilheteria, mais do que a lotação do Beira-Rio ou da Arena.

Desde 1999, antes mesmo dos audiobooks, do Spotify, dos podcasts, a voz é a protagonista. No ambiente de alta concentração, de afinadas emoções, não espere desavisados, tagarelas, perdidos, paraquedistas, gente sem noção. Ninguém trava conversas paralelas ou chega para fofocar. É o momento sagrado para escutar uma hora de narrativas e poemas.

- As pessoas vão para ouvir. O silêncio é letal. Se alguém fala alto, recebe censura dos outros - explica Katia. Certamente a oralidade do projeto aumentou a média de leitura na capital gaúcha. Seus efeitos colaterais são notórios: despertou a curiosidade por novos nomes da literatura e ampliou o debate sobre tabus de comportamento.

Além de contar presencialmente com cerca de cem testemunhas privilegiadas, o encontro é transmitido ao vivo pelo YouTube, em @saraueletrico, com a audiência de mais de mil internautas.

Existe um tema para nortear a escolha das obras, para garantir ordem à inspiração, para regrar a locução literária. Não se foge do assunto da noite, que pode ser fossa, ou solidão, ou recomeço, ou amizade, ou cancelamento, ou exílio, entre tantos.

- Já teve de tudo, haja criatividade para pautas - ri Katia. Os frequentadores assíduos formam uma comunidade de amor às letras. Correm boatos de que vários casamentos começaram ali, na mais profunda quietude, só na base da piscadela e do olhar cúmplice.

Estiveram no palco as mais distintas atrações, de Los Hermanos ao escritor português Gonçalo Tavares. O Sarau Elétrico, inclusive, alcançou a proeza de receber quatro vezes o tímido Luis Fernando Verissimo, num tetracampeonato de uma presença rara, já que o cronista é famoso pela discrição e recato.

Pergunto para Katia se falta convidar alguém. - Ah, sim, o Caetano Veloso podia aparecer lá. Quem sabe o cantor leia o apelo e se dê de presente no aniversário de um quarto de século do Sarau Elétrico. _

CARPINEJAR


30 de Julho de 2024
NÍLSON SOUZA

Um dia sem celular

O apagão cibernético do último dia 19, que prejudicou conexões e serviços essenciais em todo o mundo, incluindo aeroportos e hospitais, deixou a humanidade sobressaltada. O temido bug do milênio, que não passou de um pânico coletivo na virada de 1999 para 2000, mostrou sua cara real agora, embora sem a dimensão apocalíptica alardeada na ocasião. 

Mas causou estragos e deixou lições, especialmente para empresas e organizações que dependem de sistemas informatizados para funcionar - ou seja, quase todas. Muitas, pelo que sei, passaram a desenvolver planos próprios de prevenção e recuperação de desastres tecnológicos para garantir a segurança de seus dados e proteger seus ativos, o que inclui também treinamento adequado de pessoal para dar respostas imediatas aos clientes.

E nós, indivíduos, estamos preparados para um imprevisto desses? Se não estamos, deveríamos estar. Imaginemos, por exemplo, um apagão demorado de fornecimento de energia elétrica semelhante ao que aconteceu recentemente nas áreas mais atingidas pela enchente em nosso Estado. As filas para carga nos celulares nos raros pontos energizados deram uma ideia aproximada da nossa atual dependência da comunicação individual. Já não sabemos viver sem a telinha móvel.

Por isso, deveríamos prestar atenção numa experiência que vem sendo feita em algumas escolas do país como desafio à geração digital: passar um dia sem celular. Os defensores da ideia argumentam que é uma oportunidade para crianças e adolescentes se desconectarem, com o propósito de exercitar o corpo e a sociabilidade. Deveria ser também um treinamento para emergências, como nos desafios de grupos levados a lugares isolados com kit básico de sobrevivência.

Um dia sem celular, você consegue? Sem usar o aparelho como despertador pela manhã, sem consultar as horas nele, sem mandar zap para os amigos, sem chamar carro de aplicativo, sem fazer movimentação bancária online, sem vender nem comprar nada, sem ver as notícias do dia na palma da mão, sem passar a localização para familiares e amigos, sem postar nas redes sociais, sem se divertir com jogos ou vídeos engraçadinhos.

Se você é um analógico convicto, está dispensado deste treinamento para o apocalipse. _

NÍLSON SOUZA


30 de Julho de 2024
EDITORIAL

EDITORIAL - Uma eleição nada crível

São fartas as razões para suspeitar de que o resultado proclamado da eleição presidencial da Venezuela não traduz com fidelidade a vontade popular. Sequer se trata de desconfianças alardeadas somente por países com governantes identificados com a direita. Mesmo nações hoje lideradas pela esquerda, como Chile, Colômbia, Espanha, manifestam sérios questionamentos sobre a lisura processo. 

Conforme os números oficiais, divulgados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano, no momento em que a apuração estava 80% concluída, o autocrata Nicolás Maduro alcançava 51,2% dos votos. O oposicionista Edmundo González chegava a 44%. Os percentuais divergem da grande maioria das pesquisas de intenção de voto anteriores ao pleito.

A falta de transparência do órgão eleitoral, controlado pelo regime de Maduro, só reforça a suspeição de fraude em relação à contagem. O CNE, cujo site estava fora do ar até o início da noite de ontem por um suposto ataque hacker, informava apenas o resultado consolidado. Foi negado o acesso aos dados detalhados de cada urna. 

Sem a disponibilização das atas, que registram os votos por seção, não há como confirmar o desfecho. É o que pedem, de forma lógica e legítima, governos do Exterior e observadores internacionais. Somente desta forma será possível auditar o resultado. A oposição afirma ter obtido cerca de 40% das atas, e estas dariam a vitória a González. A resistência do CNE é sintomática.

A apuração sob forte suspeita está longe de ser o único elemento a contaminar a eleição venezuelana. Candidaturas inabilitadas sem justificativa plausível, perseguição e prisão de opositores e obstáculos para o voto dos desterrados se somam em um enredo que, desde o início, dava indícios de que o regime ditatorial de Maduro - com as forças armadas cooptadas e o judiciário e o parlamento dominados - faria qualquer manipulação e demonstração de força necessárias para permanecer no poder.

Pelas sombras que pairam, o governo brasileiro tem o dever moral de não reconhecer o autoproclamado triunfo de Maduro. O Itamaraty adotou uma postura de cautela, em um tom abaixo do esperado. Fala na necessidade da "verificação imparcial dos resultados" e diz que aguarda "dados desagregados por mesa de votação, passo indispensável para transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito".

O governo Luiz Inácio Lula da Silva e o próprio presidente da República pagam um preço alto por terem demorado a admitir as evidências de inexistência de um verdadeiro Estado democrático de direito na Venezuela. Resta agora a Lula escolher, sem hesitação, se vai cerrar fileiras ao lado dos princípios democráticos ou se permanecerá preso a dogmas ideológicos do tempo da Guerra Fria e chancelará um processo eivado de arbitrariedades.

Depois de 25 anos de chavismo, a permanecer a situação atual, com Maduro no poder por mais seis anos após uma eleição com um resultado inverossímil, são grandes as chances de o país voltar a sofrer sanções e o regime endurecer. A conta será paga pela população, com mais pobreza e repressão. 


SUSTENTABILIDADE

Agroflorestas crescem no Estado e se tornam alternativa após cheia

Sistema no qual árvores, cultivo de alimentos e até criação de animais ocupam o mesmo espaço vem se multiplicando no Estado nos últimos anos e é visto como estratégico diante das mudanças climáticas. Método permite a recuperação de áreas degradadas e pode auxiliar na contenção de cheias.

Um modelo de produção agrícola que, por meio da combinação de espécies, permite a recuperação de áreas degradadas em cidades. Embora o conceito não seja novo, os sistemas agroflorestais (SAFs) vêm sendo apontados, após a tragédia climática sem precedentes no Rio Grande do Sul em maio, como uma alternativa resiliente que contribui para conter cheias, manter a temperatura mais amena e, em casos de secas extremas, segurar a umidade. Além disso, o padrão é conhecido por auxiliar no controle de pragas e contribuir para a fertilidade do solo.

O sistema agroflorestal combina árvores perenes, que se mantêm ao longo do tempo, com plantas agrícolas de ciclo curto e até mesmo a criação de animais. Vários fatores devem ser considerados nesse consórcio, como o ciclo, a altura das plantas, a necessidade de sombreamento e a disponibilidade de água.

A certificação agroflorestal extrativista é disponibilizada desde 2013 pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema). Conforme o órgão, atualmente há 236 áreas cadastradas, com cerca de 1,5 mil hectares. Já dados do último Censo Agropecuário, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, apontam um crescimento de 23,6% nos estabelecimentos com SAF no Estado em um comparativo com 2006.

As experiências de sistemas agroflorestais no Estado envolvem, por exemplo, citricultura (no Vale do Caí), bananais (no Litoral Norte), erva-mate (na região nordeste) e doces coloniais, como compotas e geleias (no Sul).

A coordenadora adjunta do Mestrado em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e pós-doutora em sistemas agroflorestais Adriana Carla Dias Trevisan aponta que os sistemas agroflorestais são pensados a partir de desenhos técnicos, ou seja, há um planejamento para sua implementação, dependendo de características da região, do solo e até do vento.

- Eles têm como uma das premissas justamente a diversidade, enquanto o sistema produtivo tradicional da agricultura reduz essa pluralidade. Trabalha-se com plantas de diferentes alturas e necessidades nutricionais. A grande cereja do bolo é saber compor espécies que vão ser complementares entre si, e não vão competir - explica, lembrando que o modelo é utilizado há séculos por comunidades tradicionais indígenas.

Segurança alimentar

Os sistemas agroflorestais também servem como estratégia de segurança alimentar. Quando uma das espécies cultivadas sofre com a chuva ou uma praga, por exemplo, as demais permanecem como opção.

De acordo com a coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público (MP), procuradora de Justiça Ana Maria Moreira Marchesan, os SAFs têm potencial para entrar em projetos voltados à recuperação de áreas degradadas. Estão em estudo parcerias com a Emater e com universidades, além do uso do Fundo de Reconstituição de Bens Lesados (FRBL), para o desenvolvimento de novas agroflorestas. _

"Em um canteiro, é possível chegar a colher cinco culturas"

Um exemplar de sistema agroflorestal fica na zona rural de Porto Alegre, no extremo sul da Capital: é o Sítio Natural, no bairro Lami, idealizado por Roger Vianna, 46 anos, e Cristine Saldanha, 44, a partir de 2013. Cinco anos depois, o SAF começou a tomar forma.

- Inicialmente, arrendamos esta terra para ter um espaço na natureza para passar os finais de semana, além de plantar uma horta e pomar. O espaço antes era utilizado para pastagem de vacas, com um solo bem compactado, uma área bem degradada, e também não tínhamos muita água para irrigação - lembra Cristine.

O modelo foi apresentado por um amigo do casal. Eles decidiram, então, realizar um curso e implementar a proposta. Descobriram que era a solução que precisavam e seguem utilizando até hoje, inclusive participando de feiras orgânicas no bairro Tristeza, aos sábados.

- O sistema reduz muito a necessidade de irrigação e insumos, por exemplo. Eu digo hoje que, para a agricultura familiar, não existe sistema melhor que a agrofloresta, principalmente pela diversidade dela. Em um canteiro, é possível chegar a colher cinco culturas - acrescenta.

Atualmente, a propriedade de 10,6 hectares esbanja variedade: há cultivo de bergamotas, bananas, hortaliças, laranja, batata-doce, temperos, chás, maracujá, pimentões, erva- mate, entre outros.

- Estamos sempre fazendo testes, vendo o que é melhor. Vivemos na agrofloresta e eu digo que ela é um vício. Tu não consegues mais parar de fazer - conclui Cristine. 



30 de Julho de 2024
INFORME ESPECIAL - Rodrigo Lopes

A naturalização da ditadura

Observadores podem denunciar, ONGs, espernear, e o governo brasileiro pode tentar ganhar tempo à espera das atas das mesas eleitorais (que, aliás, não aparecerão), mas a verdade é que, daqui algumas horas ou dias, ninguém mais lembrará do arremedo de eleição na Venezuela.

A apatia voltará a tomar conta em um triste processo de naturalização da ditadura bolivariana. Isso até a próxima bravata de Nicolás Maduro, alguma guerra fictícia que inventar nas barbas do Brasil ou uma nova leva de imigrantes venezuelanos, em fuga do regime, transbordar pelas fronteiras. Aí recomeça o ciclo: mais palavras duras, muita retórica, algumas ameaças. E, logo, o esquecimento.

Infelizmente, é assim: ou alguém lembra que um conflito armado segue em curso na Ucrânia ou entre Israel e o grupo terrorista Hamas?

A confirmação pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da vitória de Maduro na eleição de cartas marcadas de domingo, enquanto pesquisas respeitadas mostravam o líder opositor Edmundo González Urrutia com vantagens superiores a 30% não joga a Venezuela na incerteza. O país sul-americano já vive na incerteza há décadas.

Maduro não fez nada diferente do que o regime chavista-madurista vem fazendo há 25 anos: persegue oposição, prende detratores, dificulta a inscrição de candidatos contrários, realiza um pleito de faz de conta, dá um verniz democrático, prometendo respeitar o resultado e, depois, decide o mesmo.

O rei entronado no Palácio de Miraflores sabe que o mundo, ou a chamada comunidade internacional, esquece rápido. Grita-se por alguns dias, ocorrem os "cacerolazos", mas logo passa. Virão novas sanções. Mas também em seguida o regime se adapta. Só quem continua sofrendo são os venezuelanos, acossados pela "Revolução" transfigurada em autoritarismo. _

Entrevista

Carlos André Bulhões - Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

"Vou fazer o que não fizeram comigo: uma transição decente"

A menos de dois meses de deixar o cargo, o reitor da UFRGS, Carlos Bulhões, recebeu a coluna para uma conversa sobre os quatro anos à frente da universidade. Sinuca de bico para o Brasil no reconhecimento das eleições

A nota divulgada pelo Itamaraty não reconhece a vitória de Maduro - nem cita seu nome - e pede as atas das urnas. Ao mesmo tempo, o assessor internacional da Presidência, Celso Amorim, afirmou a jornalistas:

- É meio difícil ter a proclamação sem ter a transparência, a disponibilidade das atas.

A proclamação ocorreu. Mesmo sem os documentos.

Agora, o Brasil precisa decidir: continuar o discurso de dias atrás que iria respeitar o resultado, ou seguir outros líderes internacionais e contestar o resultado sem a "transparência" pedida. _

INFORME ESPECIAL

segunda-feira, 29 de julho de 2024



29 de Julho de 2024
CLÁUDIA LAITANO

Radical livre

Uma jornalista americana comparou a escolha de J.D. Vance para compor a chapa com Donald Trump nas eleições de novembro à aquisição, por impulso, de um bem de luxo que o comprador no dia seguinte percebe que não vai conseguir pagar. Com a diferença de que Trump não tem a opção de devolver a mercadoria.

O senador J.D. Vance é jovem, articulado, vem de um "swing state" - Ohio, um dos Estados que oscilam entre democratas e republicanos - e ficou famoso com um livro de memórias que virou filme na Netflix (Era uma Vez um Sonho), em que conta como um garoto de uma família pobre do interior chegou a uma universidade de elite. Esses são seus pontos fortes. Ponto negativo: Vance é um radical, com pouca ou nenhuma disposição para amenizar seu discurso. Trump parecia tão convencido de que a eleição contra Biden estava no papo que se deu ao luxo de escolher um vice-presidente ótimo para agitar as bases, mas péssimo para conquistar moderados e indecisos. E então veio Kamala.

J.D. Vance traz para a arena pública ideias que nem mesmo os republicanos conseguem engolir com facilidade. Ninguém precisa ser de esquerda para ser a favor, por exemplo, dos tratamentos de inseminação artificial, da expansão das creches subsidiadas para famílias pobres, do direito ao aborto em casos de estupro ou incesto e de pedidos de divórcio por qualquer motivo ("no-fault divorce"). J.D. Vance é contra tudo isso, e essas nem são suas ideias mais exóticas.

Nos últimos dias, viralizou uma entrevista em que Vance compara Kamala Harris, provável adversária democrata, a uma "velha dos gatos", porque a atual vice-presidente é mulher, trabalha e não tem filhos - o que, na sua cartilha, é uma falha moral imperdoável. "Rezo para que sua filha tenha a sorte de um dia ter seus próprios filhos", respondeu a atriz Jennifer Aniston pelo Instagram. "E espero que ela não precise recorrer à fertilização in vitro como segunda opção, já que você está tentando eliminar também essa possibilidade."

De um lado, J.D. Vance testando a popularidade de algumas das ideias mais misóginas da extrema direita com o pretexto de defender o que ele chama de "família normal". Do outro, Kamala Harris dizendo com todas as letras que é a favor do aborto (como 63% dos americanos) e que "normal" é ter filhos quando se quer e se pode. Muitos outros assuntos vão estar em discussão, mas, no fim das contas, vai caber às mulheres decidir para que lado essa balança vai pesar. _

CLÁUDIA LAITANO


29 de Julho de 2024
ARTIGOS

ARTIGOS

Espaço de dignidade e acolhimento

Vida. Esperança. Recomeço. Essas palavras dão nome aos Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) implementados pelo governo do Estado para acolher quem perdeu tudo nas enchentes. Uma solução transitória, com dignidade e proteção para as famílias enquanto aguardam suas moradias definitivas. Instalados em Porto Alegre e Canoas, os CHAs foram financiados com recursos do Sistema Fecomércio/Sesc/Senac e são geridos pela OIM, Agência da ONU para Migrações.

Em um esforço conjunto com prefeituras, entidades, ONGs e iniciativa privada, entregamos em pouco mais de um mês os três centros que, juntos, podem acolher mais de 2 mil pessoas. O tempo de quem dorme em espaços improvisados no chão de ginásios e sem nenhuma privacidade é o agora, o imediato. Por isso, um projeto que, em tempos normais, levaria de oito a 10 meses para ser executado foi colocado de pé em semanas.

A colaboração com agências da ONU, como Acnur e OIM, traz expertise valiosa na gestão de crises humanitárias, garantindo que os centros adotem as melhores práticas em acolhimento emergencial. A infraestrutura inclui refeitório, lavanderia coletiva, fraldário, brinquedoteca, banheiros e dormitórios privados, áreas de convivência, internet, três refeições diárias, segurança e assistência médica e social.

No rosto dos acolhidos estão as marcas da superação, de quem perdeu muito - ou quase tudo -, mas tem o bem mais valioso: a vida. Histórias como a da Raquel, do César ou da pequena Helena são distintas e, ao mesmo tempo, comuns: relatos de quem venceu a tragédia e olha para o futuro com esperança para recomeçar.

Mais do que um local transitório, os centros são um apoio para que eles possam dar os primeiros passos e reconstruir suas vidas. A próxima etapa do trabalho nos CHAs será a realização de ações de inclusão, empregabilidade e cursos profissionalizantes. Neste momento em que a solidariedade é tão importante, os centros de acolhimento representam o compromisso com a dignidade humana, garantindo que ninguém seja deixado para trás. _

Gabriel Souza - Vice-governador do Estado

Estrada mais segura, vidas preservadas

Para um país de dimensões continentais, como é o caso do Brasil, as estradas fazem parte da vida das pessoas - conectam destinos, encurtam distâncias, facilitam negócios. No entanto, elas vêm acompanhadas de um lado negativo: acidentes que colocam em risco milhares de vidas.

Não existe mágica para resolver esse problema: é preciso garantir melhores condições de trafegabilidade, com asfalto de qualidade, sinalização completa e serviços eficientes que tragam mais conforto e segurança aos usuários. Em um contexto em que o poder público não dispõe de recursos para fazer frente a essas necessidades, a alternativa está nas parcerias com a iniciativa privada.

Trago como exemplo a Ecosul, que administra 457,3 quilômetros de rodovias no Polo Pelotas, na zona sul do Estado. Divulgado neste ano, um estudo da Agência Nacional de Transportes Terrestres apontou que a empresa teve a mais significativa queda (-46%) no Índice de Segurança Viária (ISV), que avalia os impactos dos serviços e investimentos realizados para a preservação de vidas, entre todas as empresas que administram estradas federais. Além disso, houve redução de 9% na taxa de severidade de acidentes na comparação com 2022, o melhor resultado entre as 24 concessionárias avaliadas.

Tudo isso foi conquistado mesmo com o aumento no volume de tráfego verificado em 2023, quando 15,2% de veículos a mais circularam nos trechos administrados nas BRs 116 e 392. Todas as ações promovidas são, também, resultados de uma iniciativa interna específica criada com esse objetivo, o Programa de Redução de Acidentes (PRA), que analisa todos os acidentes ocorridos e define planejamento e ações, além das campanhas de conscientização sobre o respeito às leis de trânsito.

Felizmente, o Polo Rodoviário Pelotas não teve suas estradas afetadas pela chuva de maio. Mas, resolvemos ajudar na reconstrução e nossas equipes auxiliaram na elaboração de projetos em estradas em outras regiões. A solidariedade nesse momento difícil também gera segurança. Afinal, preservar vidas é o caminho mais importante. _

Fabiano Martins de Medeiros - Diretor-superintendente da Ecosul


29 de Julho de 2024
EDITORIAL

EDITORIAL

O caminho para combater a fome

O relatório sobre a fome no mundo apresentado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) na semana passada, durante a reunião do G20, no Rio, mostrou uma melhora dos índices brasileiros na comparação entre os triênios de 2020-2022 e 2021-2023. A despeito da evolução, o país ainda não foi capaz de ser considerado outra vez fora da lista do Mapa da Fome, situação em que menos de 2,5% da população é classificada como subnutrida. O desafio de garantir uma alimentação digna para os brasileiros requer um avanço consistente em múltiplas frentes.

Conforme a FAO, no recorte de tempo analisado o número de pessoas que passaram fome no Brasil caiu de 9 milhões (4,2% da população) para 8,4 milhões (3,9%). A definição de fome, ou subnutrição, é a de indivíduos que não consomem, na média diária, o suficiente para uma vida saudável. Em relação à insegurança alimentar grave, caso de pessoas que ficam um ou mais dias sem comida, o recuo foi de 18,3 milhões (8,5%) para 14,3 milhões (6,6%). O intervalo entre 2020 e 2022 sofreu mais as consequências da pandemia.

No Brasil, os programas de transferência de renda desempenham uma função basilar para diminuir o contingente de famintos. Iniciativas como o Bolsa Família são a forma imediata de aplacar a falta de comida na mesa de milhões de famílias. Mas somente políticas do gênero não são suficientes.

Uma solução estrutural deve deixar os brasileiros mais protegidos de oscilações conjunturais internas e externas e menos dependentes de políticas de estímulo governamental. Essa emancipação passa por um crescimento maior e mais duradouro da economia e pelo aumento da produtividade do trabalho, o que gera empregos novos e mais qualificados, com melhor remuneração. Isso exige bons fundamentos macroeconômicos, que ao longo do tempo garantem inflação sob controle e queda sustentável do juro. A inflação castiga em especial os mais humildes, que gastam maior fatia do orçamento com alimentos.

A educação também é decisiva. Não só pelos horizontes profissionais que descortina, mas, de maneira emergencial, pela alimentação assegurada nas escolas públicas. Não são raros os casos de crianças que têm nos educandários a única refeição do dia.

Se há o lado da demanda, existe também o da oferta. Em entrevista ao jornal O Globo, Álvaro Lario, presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), agência ligada à ONU, lembrou que experiências confirmam o incentivo à produção de alimentos como fator determinante para combater a fome e a pobreza. Para isso, são necessárias políticas que assegurem, por exemplo, acesso a tecnologia, insumos e crédito a pequenos agricultores, mais vocacionados para culturas de consumo interno. O desperdício de comida, por certo, é outra chaga a ser combatida. A ONU estimou que, em 2022, enquanto o mundo contava 783 milhões de famélicos, residências de todos os continentes jogaram fora o equivalente a 1 bilhão de refeições por dia.

Como se vê, trata-se de um caminho complexo. Mas precisa ser percorrido caso o Brasil anseie, de fato, ser um país capaz de um dia erradicar a fome. 


29 de Julho de 2024
HOMENAGENS

HOMENAGENS

Milhares de pessoas foram às ruas para agradecer e pedir bênçãos. Foi o fim das comemorações em alusão ao dia do padroeiro dos viajantes, que se iniciaram na quinta-feira

Com a mão na buzina, o caminhoneiro Marcos Evandro da Silva, 44 anos, era um dos milhares de motoristas que faziam fila na Rua Tupi, em Canoas, na manhã de ontem. Em meio ao tradicional buzinaço, todos aguardavam o início da procissão em homenagem a São Cristóvão, que ocorreu em diferentes ruas de Canoas e Porto Alegre.

Marcos foi pela quinta vez seguida para a paróquia agradecer ao santo e pedir proteção nas estradas. A imagem de São Cristóvão, que considera o seu protetor, já esteve na carteira e no para-brisa. Hoje, guarda sua fé na memória:

- Tenho muitas histórias. De estar sonolento (na estrada, dirigindo) e sentir alguém tocando em ti. Te acordar.

Trajeto

Luciano Dias, que foi motorista por oito anos e hoje trabalha como especialista de frota na empresa Henrique Stefani Transportes, com sede em Canoas, também afirma que tem histórias parecidas:

- Todo caminhoneiro é devoto. Nos momentos difíceis da nossa profissão, a solidão da estrada, a gente se apega muito à fé.

E a devoção de Luciano é tanta que nesse domingo foi ele que puxou a procissão em Canoas, pela primeira vez.

- É emocionante - contou.

O trajeto se iniciou pelas alças laterais da BR-116, em direção a São Leopoldo, até a refinaria da Petrobras. Seguiu por ruas do centro da cidade, com passagem pela elevada da Avenida Getúlio Vargas, viaduto do bairro Rio Branco e Avenida Guilherme Schell, até o retorno ao santuário novamente pela BR-116.

Depois da procissão, os veículos receberam a bênção. No ano passado, a paróquia estimou que havia mais de 4 mil condutores.

Mau tempo

Em Porto Alegre, o padre Jefferson Lunkes, da paróquia localizada na Rua Osmindo Júlio Kuhn, calculou que 30 veículos participaram da procissão ontem.

- O tempo não ajudou muito. Mas conseguimos mobilizar os paroquianos mais próximos, pegamos um trajeto mais curto valorizando um maior número de casas - explicou o padre.

Na Capital, a procissão saiu do Complexo Cultural Porto Seco, na Rua Hermes de Souza, e percorreu um trajeto de 2,2 quilômetros até a sede religiosa. _

Carolina Pastl

29 de Julho de 2024
INFORME ESPECIAL - Rodrigo Lopes

Só 75% dos estudantes chegam ao fim do Ensino Fundamental até os 16 anos em Porto Alegre

Três lições do processo eleitoral na Venezuela

A primeira lição é de que, finalmente, a oposição venezuelana, diferentemente do passado omisso, percebeu que não é suficiente lavar as mãos diante de um governo autoritário. Por anos, os adversários do chavismo-madurismo, por não reconhecerem os processos eleitorais, omitiram-se à espera de, na derrota em pleitos de cartas marcadas, angariarem apoio internacional, que, não obstante vinha, mas em nada modificava a vida doméstica do país.

Segundo: pressionada, a ditadura faz água. Pela primeira vez, Maduro prometeu respeitar o resultado das urnas. As próximas horas ou dias se encarregarão de definir se falou a verdade.

Terceiro, o processo venezuelano mostrou, ao Brasil, que é possível - e às vezes necessário - tomar lado. A mão pesada de Maduro obrigou o presidente Lula, ao menos publicamente, a mudar de posição. Em junho de 2023, quando lhe perguntei sobre a dificuldade de a esquerda considerar a Venezuela uma ditadura, Lula disse na Rádio Gaúcha que a democracia era um conceito relativo. Aos 45 minutos do segundo tempo, percebeu o contrário, cerrando fileiras ao lado da maioria dos estadistas do continente. _

Ensino Fundamental

- Ou você tem um Ensino Fundamental com muito problema de fluxo, ou com reprovação, ou abandono ou evasão - explica Gontijo.

Pré-escola

Na frequência escolar, analisados os anos iniciais, 50% das crianças de zero a três anos da Capital frequentam escolas de Educação Infantil - à frente da média nacional, que é de 40%, e também das capitais, que é de 38%.

Indicador de escolaridade

Português e matemática

Ensino em tempo integral

Investimento por aluno

Remuneração de professores

Bibliotecas

Mas, por conta do investimento que se tem com os alunos e remuneração dos professores, deveria ter índices melhores - explica Gontijo.

Contraponto

A Secretaria Municipal de Educação (Smed) disse que o teor do material ainda não foi analisado integralmente pelas equipes, que, no momento, atuam em força-tarefa para garantir a reconstrução das escolas alagadas pela enchente e o retorno de 100% dos alunos às atividades escolares. Destaca que os dados referem-se a 2023 ou a antes, e, que, nesse caso, em diversos tópicos, os números atualizados apresentam outra realidade. 

Sobre o fato de apenas 75% dos jovens completarem o Ensino Fundamental até os 16 anos, a pasta salienta que a rede vive ainda readequação por conta do pós-pandemia: "Enfrentamos nos anos de 2020 e 2021 o distanciamento social, quando só era possível fazer atendimento remoto, o que nem sempre foi eficaz para os estudantes da rede, principalmente para aqueles que iniciaram o Ensino Fundamental em 2020. Tivemos, em 2023, 90,9% de taxa de aprovação média no Ensino Fundamental". _

Leilão de mobiliário de design em prol de vítimas da enchente

Uma das organizadoras do projeto, Claudete Tavares descreve a emoção de participar da Operação De Volta para Casa. Até agora, foram entregues 3 mil cartões de auxílio com crédito para recomeçar, totalizando R$ 17 milhões em doações.

- O Ciclo Empreendedor, grupo de jovens de 300 empresas, com o Instituto Cultural Floresta, mostrou que podemos fazer a diferença quando estamos articulados - diz. _

INFORME ESPECIAL

sábado, 27 de julho de 2024



Veja como é possível transformar as dores da vida

Portal EdiCase

Pingos grossos lambem a janela do quarto enquanto me sento para escrever. Atrás da vidraça, a paisagem cinza ameaça apagar minhas palavras. Mais um dia de cidades devastadas, gente sem casa, com fome, guerras, doenças, perdas. Fecho a página das notícias como quem cerra a cortina. Não preciso ir longe… viver é mesmo tão doído!

Escolho um livro para amainar os olhos embaçados de chuva. Tiro da estante Cartas Perto do Coração (Record), uma coletânea de correspondências entre os escritores Fernando Sabino e Clarice Lispector. Não sei bem o que procuro até achar uma página com a ponta da folha dobrada. Sou arrebatada por uma frase do Fernando, em uma carta escrita em setembro de 1946, quando morava em Nova York.

Naquele mês, após ter operado as amígdalas e deixado o hospital, ele escreve à Clarice comentando um conto dela e um sonho que teve. Nessa carta, presenteia a amiga com o que eu considero uma pérola. Ele diz: “A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento”. Dali por diante, me agarro a essa iluminação.

A dor, afinal, atravessa a nossa experiência humana de modo inescapável. Ou como escreve a própria Clarice Lispector no livro Água Viva: “Dor é vida exacerbada”. Se ninguém vive sem sofrer, então, a pergunta que fica é: como lidar melhor com as dores que nos afligem? Como transformá-las e seguir em frente?

Força de vida

A fim de compreender esse algo nosso que é tão humano, fui conversar com mulheres que me ajudaram a ampliar o entendimento de que estamos nesse mundo para aprender e evoluir justamente por meio do que fazemos com o que sentimos. A nutricionista e terapeuta Ana Fanelli é uma delas. Sua história de luto e reconstrução de si me impactou. Há 12 anos, ela perdeu o filho mais novo para uma doença sem cura.

Felipe foi diagnosticado com uma síndrome neurológica rara com a idade de 12 anos. Sofreu um bloqueio elétrico no coração, seguido de complicações. Com o tempo, foi perdendo a mobilidade. “Não consegui aceitar a dimensão da gravidade, mas não tinha o que fazer, a não ser cuidar dos sintomas”, conta Ana. Segundo os médicos, havia uma expectativa de um a três anos de vida. Felipe viveu mais 13.

Mesmo com tantas limitações e dependendo de ajuda para atividades simples do dia a dia, o garoto pintava, cantava e conquistava a simpatia de todos à sua volta. “Ele tinha muita força de vida, e eu sinto que ele ficou mais tempo com a gente para ensinar. Viveu a graça de expressar quem ele era, uma pessoa muito alegre, que já acordava agradecendo o dia”.

Quando o coração congela

Ana não estava preparada para a perda do filho. Dois anos e meio antes, em uma das internações que Felipe enfrentou, ela procurou o primeiro auxílio psíquico. Sentada na poltrona do consultório, no entanto, ficou muda. Não sabia o que dizer. Foi o psicólogo quem jogou as cartas na mesa: “Você veio aqui para se preparar para a morte do seu filho”. Há dores que nem as quase 400 mil palavras da língua portuguesa dão conta de expressar.

Aos 25 anos, Felipe faleceu – 45 dias depois do pai dele, de quem a mãe já estava separada havia muito tempo. A reação imediata de Ana foi mergulhar no trabalho para não encarar o sofrimento sem nome. Sua vida se resumia a acordar, trabalhar e dormir. Na mesma casa, ela e o filho mais velho sofriam isolados.

“Foi um choque, para mim, muito profundo, sinto que eu congelei meu coração”, desabafa. Entrar no vitimismo não é nada difícil em uma situação como essa. Por que isso está acontecendo comigo? Justo eu e quem amo temos de passar por tal suplício? Essas eram perguntas que Ana fazia.

Além da raiva e do ressentimento por se ver naquela situação, tinha também um misto de culpa e vergonha pelos próprios sentimentos. “Eu saía daquele hospital e falava a mim mesma: ‘mas, Ana, você sai andando’… tudo o que eu assisti ao Felipe perdendo, eu podia fazer”.

O que se seguiu à morte do filho foi uma grande crise existencial. “Eu me dei conta de que estava viva. Mas e o que eu estava fazendo da minha vida?!”. O período de profunda tristeza e isolamento provocou um sentimento crescente de angústia.

No fundo do peito, martelando na consciência, a pergunta do sentido da própria vida não queria calar. E foi aí que Ana buscou novamente ajuda profissional. Chegou inicialmente a um grupo de mulheres e à psicoterapia, passando a se permitir “reconstruir os laços e lamber as feridas”.

A saída do labirinto

“Sozinha é muito difícil, mas com ajuda profissional é mais fácil superar as dificuldades”, atesta a médica e psicoterapeuta Cristiane Marino, com quem também conversei. É como um guia que mostra o caminho de saída do labirinto da dor. Afinal, a gente tem a tendência de achar que o que está sentindo é a totalidade, quando não é. “Se estou triste, é como se eu toda estivesse consumida pela tristeza. Ao perceber que isso é só um aspecto meu, que algo em mim está triste, mas não sou eu toda, a pressão interna diminui um pouco”.

Cristiane explica que, em situações de dores profundas, mas também nas menores e mais corriqueiras, há três papéis com os quais a gente acaba se identificando: o de vítima, agressor ou salvador. Buscamos culpados e justificativas externas, adotamos uma postura agressiva contra o outro ou queremos salvar tudo e todos. Em nenhuma das três posições, assumimos o nosso lugar no mundo como autores da nossa própria vida.

Não se trata de papéis estanques, em que somos apenas uma coisa ou outra. São posturas presentes em todos os seres humanos. “É como se fosse uma dança das cadeiras, em cada momento que a música para, a gente senta numa cadeirinha”, compara Cristiane, que promove um grupo de leitura do livro Abandonar o Papel de Vítima: Viva sua Própria Vida (Vozes), da psicoterapeuta suíça Verena Kast.

Na obra, ela pontua a importância de identificarmos “onde e quando nós mesmos desempenhamos qual papel”. Acabo compreendendo que perceber em qual cadeira estou sentada me ajuda a discernir o que é meu e o que é do outro. Me dou conta de que a responsabilidade de como reajo às situações é apenas minha, embora ainda me pegue culpando o outro pelo que sinto. “Por mais difíceis que sejam as condições externas, a gente escolhe como quer enfrentar as situações”, diz Cristiane.

Indefesa perante a dor e o mundo

Acontece que quem vive a situação nem sempre consegue perceber isso. De acordo com a psicóloga Ilana Roriz, o lugar de vítima é doloroso porque a pessoa acredita não ter condições de agir e paralisa. “Ela se sente indefesa perante a dor e o mundo, considera-se sem condições de lutar pela dignidade de ser agente na vida”.

Quem entra no vitimismo acaba recaindo também na agressividade consigo ou com o outro. Engana-se quem pensa que o efeito disso é meramente emocional, sem grandes repercussões concretas. Como se já não fosse grande coisa, essa dinâmica suga a energia psíquica, provoca a queda da vitalidade e aciona o sistema de luta e fuga, conforme explica Cristiane Marino.

As consequências não são poucas e podem incluir sono agitado ou insônia, estresse e problemas na imunidade, como a suscetibilidade a infecções e inflamações. “Se essas dinâmicas não são cuidadas, prejudicam a saúde física, desequilibram todo o sistema nervoso autônomo e a pessoa não ativa o sistema parassimpático, que é o de restauração”, ensina a profissional.

Algo a contribuir

Assumir a postura de vítima, no entanto, não é uma decisão consciente, mas, uma vez que nos damos conta dela, é importante ter paciência conosco e saber que há sempre uma saída. Segundo Ilana, é necessário reconhecer o quanto já se caminhou até aqui para entender que existe vida além da dor.

Foi isso que Ana Fanelli descobriu na jornada de autoconhecimento na qual embarcou, ao compreender que precisava transformar a dor que sentia e ressignificar a própria vida. Ela fez terapia, participou de roda de mulheres, ingressou na dança circular e fez formação holística de base.

Há cerca de cinco anos, saiu do trabalho corporativo como nutricionista para fazer um retiro sabático. Passou a ser consultora em nutrição, até fazer uma transição de carreira e se tornar terapeuta transpessoal e instrutora de mindfulness. Hoje, une a isso a alimentação consciente e o trabalho com a maturidade. Ana lembra que a dor inicialmente foi tão imensa que a congelou, deixando uma cicatriz.

Uma marca tão funda que pode estar lá quietinha, mas não deixa de existir e, às vezes, até reaviva. “Quando você consegue perceber que não é só você que passa por isso, essa cicatriz se acomoda. O universo do sofrimento está dado na nossa experiência humana. A questão é o que a gente faz com isso”.

A crise existencial provocada pela perda do filho fez com que Ana fosse em busca de se reinventar e expressar sua singularidade no mundo. Para ela, o que se vive hoje também pede isso de nós. “A gente está experimentando situações que estão esfregando na nossa cara que não temos controle da vida; passamos pela pandemia, agora essa emergência climática em vários locais no planeta. O que nos cabe é expressar o que temos a contribuir”.

Distanciamento e recolhimento

Mas onde estão nossos insumos? Ressoam em mim as palavras de Ilana: “Quando a pessoa sai da posição de incompreensão consigo e reconhece que algo de bom já existiu, aos poucos, retorna ao lugar que sempre há em nós, o de protagonista da nossa história”.

Cristiane Marino ensina que distanciamento e recolhimento são muito importantes nesse processo. Para recrutar os recursos internos e renovar as energias, são necessários momentos de pausa e repouso, assim como contato com a natureza e o belo, boa qualidade de sono e alimentação.

Mais uma dica valiosa para quem vive um momento de dor é não se expor desnecessariamente – seja nas redes sociais ou na vida cotidiana. “Veja um animal ferido. O que ele faz? Busca um abrigo onde ninguém o encontre. A gente tem de aprender o valor do recolhimento, que é diferente do isolamento”, afirma.

Outras atitudes de cuidado consigo também são úteis para não se deixar afundar no sofrimento, como movimentar o corpo, tomar sol, cultivar relações que nos dão alegria e incluir no dia a dia atividades que nos alimentam internamente – tocar um instrumento, escrever, pintar, cozinhar, cuidar de plantas, o que mais gostar.

Punhados de fé

“Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar”… Felipe, que era um rapaz musical, tinha nesses versos do Gil uma das suas canções preferidas e lema de vida. E foi justamente esse sentimento que ficou para a mãe. Além de carregar a dor a tiracolo, Ana aprendeu a levar consigo punhados de fé.

Todo o processo vivido a fez acreditar em algo maior, o que hoje ela chama de Consciência Divina. Apesar de não ter uma religião definida, os ensinamentos budistas a ajudaram a entender melhor a natureza da vida e das emoções. Ela sentiu que, como pessoa, não daria conta, e só assim pôde se sustentar. A teia que une todos nós a amparava.

A psicóloga Ilana Roriz explica que o reconhecimento de que existe algo além do ser humano está na origem da psicoterapia. Para ela, cultivar a espiritualidade é, portanto, fundamental para a cura das dores da alma. “Com essa conexão, há a certeza de que não se está só, e assim desenvolve-se a fé em um processo de restauração da saúde. Com essa ligação refeita, a confiança em si mesmo se torna viável para perceber o seu protagonismo, apropriando-se do legítimo direito de ser único e especial perante Deus e a si mesmo”.

A jornada de Ana é prova disso. Dois meses antes de falecer, Felipe pintou um quadro cuja arte retrata uma orquídea pingo de ouro, de flores miúdas e amarelas. É essa a lembrança que Ana guarda consigo, representando o coração do filho que, enquanto esteve vivo, expressou toda sua força de vida e gratidão por estar aqui. Até hoje, quando se aproxima a data de passagem ou nascimento dele, ela vê florescer orquídeas douradas miúdas por aí. Após ter sofrido muito, Ana aprendeu a sofrer bem. É como se o filho se fizesse perto outra vez, e ela, de repente, sorri.

Por Luísa Sá Lasserre – revista Vida Simples

Escritora e jornalista sensível às dores do outro e do mundo, ela acredita que viver dói, e como, mas também faz sorrir.