Trocando em miúdos
Se um homem deixa tudo para a esposa na separação, sem olhar para trás, saindo da relação somente com a roupa do corpo, isso está longe de representar um ato de bondade.
Certamente aprontou e não quer se incomodar oferecendo explicações. Certamente sua ex tem razão em todas as suas desconfianças. Certamente adulterou a memória dos últimos acontecimentos.
Certamente traiu, ou mentiu, ou os dois juntos, no combo do divórcio. Ele unicamente larga casa, carro, mobiliário, pertences ao se sentir em dívida emocional. Troca o seu legado pelo alívio da consciência.
Existem exceções honrosas de abnegação material por gratidão aos laços ou por amizade com a ex, mas a regra costuma servir de cortina de fumaça para acobertar a verdade da ruptura.
A filantropia súbita tem o propósito de não prolongar a discussão quando ele se vê como a parte errada da história. Evita o desgaste do júri, a mediação dos advogados, a intromissão dos amigos e familiares, para diminuir o máximo possível a exposição de suas fraquezas. Previne-se da inclemente flagelação em público.
Não conta com álibis suficientes ou testemunhas para fundamentar a sua defesa. Dá perda total do passado, conforma-se com a causa perdida. Costuma acontecer no momento em que já tem uma terceira pessoa envolvida, e está interessado em engatar um novo romance. Por isso, tem pressa em acomodar os problemas e livrar-se dos antecedentes.
A deserção e o abandono do imóvel formam uma mentalidade masculina de pagar seus pecados. O sujeito acredita que assim quita o prejuízo moral que ocasionou. Há na conduta um instinto de preservação social e de gerenciamento de danos na crise.
Percebeu que a sua reputação se encontra por um fio desencapado. Sofre com o remorso de não ter sido honesto, e cria uma estranha compensação para sair de cena. Para não provocar represálias. Para zerar a vida.
O que ele investiria em saudável e gradual terapia gasta em aloprada desistência de quem era. Separação de homem com culpa é não contar com nenhum par no pôquer, é leilão, é alienação de bens.
Abomina a ideia de atravessar longas recapitulações das próprias falhas, de fornecer pormenores de sua existência paralela e do seu imprevisível distanciamento da relação. Não suporta passar em completa desvantagem por duelos de ciúme e de retratação. Ainda mais se há guarda dos filhos, podendo respingar sua má fama de cônjuge na paternidade.
Se ele estivesse em paz, buscaria a partilha igualitária, o acordo justo, o pacto do bom senso. Não abriria mão do que conquistou sem resistência.
Como canta Chico Buarque na despedida de Trocando em Miúdos, pelo menos exigiria o disco do Pixinguinha.
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