04 DE SETEMBRO DE 2023
CARPINEJAR
Praticamente da família
A culpa subjuga as relações trabalhistas. Um dos contatos mais contaminados pelo medo é o da doméstica. Você se sente culpado por uma profissional preparar a comida, arrumar a sua casa, cuidar da limpeza e da ordem, lidar com o seu lado ruim da bagunça e das roupas sujas, e já quer promovê-la a integrante do lar.
Então acontece aquela expressão suspeita e controvertida: "ela é praticamente da família". É ou não é? O "praticamente" sugere um esforço, uma indefinição, um purgatório, uma transição emocional.
É como se buscasse uma licença para justificar uma companhia dentro de casa durante tantos anos. Você não quer se sentir patrão ou patroa diante dos outros, desempenha o papel de liderança com desconforto, sofre de vergonha por estar numa posição superior, caracterizada por dar ordens e fazer pagamento.
Procura esconder a própria autoridade, disfarçando o contrato com uma ligação íntima. A proximidade sugere gratidão, porém é pudor de ser questionado pelas suas condições financeiras favoráveis.
Sob aparência de mansidão social, de amistosidade, é uma distorção colonial de que ainda não nos livramos, que consiste em mitigar a exploração com a apropriação afetiva indevida, dizendo que alguém é mais do que uma função, é quase um irmão ou irmã, quase um filho ou filha, quase um pai ou uma mãe. O "quase" já diz que não é.
O gesto permanece sendo uma barganha para garantir privilégios. Ou não aumentar o salário, ou compensar o excesso de tarefas, ou solicitar pedidos que extrapolam as oito horas diárias. Já que ela é praticamente da família, deve sempre fazer um favor além de suas atribuições, pois não há nenhum mal em ficar mais do que o estabelecido pela CLT por amor.
É uma adoção que ambiciona a utilização de um servidor por tempo integral, com uma exclusividade espiritual análoga à escravidão. Existe uma recompensa moral que não está no salário, mas disposta em concessões: almoçar com todos na mesa, ou receber presentes em datas festivas, ou herdar as peças de vestuário que não servem mais. São esmolas da convivência.
Torna a pessoa parte fictícia de seus laços de sangue, ou porque ajudou a criar os filhos, ou pelo longo período em que ela permaneceu fiel e leal ao seu lado. Só que é um falso reconhecimento, que apenas gera ressentimentos e processos na Justiça do Trabalho, confundindo as fronteiras entre o público e o privado.
Cria uma igualdade que não é real. Ela não é da família. Tanto é verdade que, no primeiro desentendimento ou desconfiança, pode demiti-la. Ela exerce uma prestação de serviços com uma duração provisória, de acordo com a correspondência das expectativas.
Precisamos parar de emocionalizar negócios (não têm sentimentos), para a sinceridade das nossas intenções. Que seja amigo ou amiga de quem trabalha para você, mas não minta que já é seu parente.
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