sábado, 18 de março de 2017



18 de março de 2017 | N° 18796
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A FALTA DE NOTÍCIAS

A compensação pelo trabalho voluntário nunca é claramente dimensionada, e a maioria silenciosa que se dedica a cuidar de pessoas desconhecidas descobriu que a generosidade se basta como atitude. Alguns poucos são distinguidos com o agradecimento público e recebem placas e medalhas que, se imagina, possam expressar o reconhecimento por um trabalho espontâneo e generoso. Na maioria das vezes, essas pessoas recebem as homenagens com o desconforto que identifica os tímidos e discretos que sempre consideram essas loas exageradas, porque preferiam o anonimato aconchegante e suficiente.

A Vera nasceu numa família rica e, ainda muito moça, naquela fase da vida em que maioria dos favorecidos se sente deslumbrada, ela já estava procurando um jeito de ajudar àqueles que não tinham tido tanta sorte. Os maldosos justificavam esse desprendimento como uma tentativa de expiação compensatória pelo descompasso entre a desventura dos outros e a felicidade dela. Mas ela nunca se sentiu assim, apenas gostava da companhia pura dos velhos sem família e das crianças sem nada.

A simpatia e a espontaneidade do afeto da Vera, que percebi em 10 minutos da primeira consulta, despertavam uma reação instantânea entre os velhinhos do asilo, por onde começou seu voluntariado. Depois de uns dias, já era a melhor amiga da dona Ana, uma viúva de olhar triste, que lhe fez um pedido angustiado: “Preciso de grande favor seu. Estou muito preocupada, porque não sei o que aconteceu com meu filho. Um dia desses, lhe pedi que me comprasse um doce de abóbora, ele saiu para ir ao mercado e nunca mais voltou. A senhora poderia procurá-lo para mim? Ele trabalha na cooperativa”.

Lá se foi a Vera à cata do filho descuidado, que não só esquecera o doce preferido, mas também não avisara que ia atrasar por algum imprevisto. Revisado o quadro funcional, verificou-se que nenhum Agenor trabalhara na cooperativa, pelo menos não nos últimos 20 anos, que era a idade do arquivo. Desanimada, teve uma ideia redentora: passou no supermercado, comprou um vidro do tal doce e voltou o asilo. 

Antes de cumprimentar a Vera, o olho que mirou no pote de abóbora já se encheu de lágrima e, comovida, abraçou a amiga: “Então você o encontrou! Que maravilha! E ele está bem ?”. “Ele está muito bem, estava saindo de viagem para o Mato Grosso para um trabalho que vai lhe dar muito dinheiro. E assim que voltar virá lhe ver!”.

“Obrigada, minha filha. Só de saber que ele está bem já me tirou um peso do coração”, repetia sem parar.

Quando comentou com a diretora, ela confirmou o que já presumira: a dona Ana não recebia visitas havia mais de 20 anos. Na saída, Vera resolveu dar uma espiada pela fresta da porta. Abraçada ao vidro, já pela metade, a velhinha era a imagem da felicidade. Ria e chorava alternadamente e, de quando em quando, limpava o nariz na manga do pijama puído, das lágrimas que escorriam sem parar.

Com cérebro confuso mas afeto intacto, dona Ana só precisava de notícia, alguma notícia, qualquer notícia, se mais não houvesse.

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