segunda-feira, 9 de junho de 2014


09 de junho de 2014 | N° 17823
NILSON SOUZA

O exemplo dos vizinhos

— No pare! Los guardias harán fuego!

Meu espanhol era precário, mas um aviso desses a gente entende até por questão de sobrevivência. No meu primeiro passeio por Mar Del Plata, na distante Argentina de 1978, levei um susto quando deparei com o cartaz, no portão de um prédio   , perto do hotel. Estava lá para cobrir a minha primeira Copa    do Mundo e não imaginava que a ditadura fosse tão    ameaçadora. Era pior. Os milhares de mortos e desaparecidos que a história    registra comprovaram que aquele aviso não era só uma bravata.

Havia, porém, uma grande diferença entre o governo autoritário do general Videla e as pessoas do povo. Taxistas, garçons, funcionários públicos, vendedores, todos se esforçavam para tratar bem os visitantes. As azáfatas, recepcionistas que ajudavam os jornalistas estrangeiros, eram encantadoras. Uma delas chegou a me presentear com alfajores e com uma frase gentil quando me desculpei por sentar-me de costas para ela.

— Los ângeles no tienen espaldas — disse com voz adocicada.

Mal sabia que meu propósito era exatamente ocultar de sua vista o que estava escrevendo numa antiga máquina de telex — o equipamento de comunicação    da época. Era a lista de nomes de freiras francesas presas pelo regime, que me fora passada pelo mitológico jornalista João Saldanha para enviar ao jornal em que ambos trabalhávamos. O finado Videla mandaria “hacer fuego” sobre nós se visse aquilo.

Fizemos o nosso trabalho, uma gotícula de denúncia    no mar de arbítrio que a Copa escondia. A vitória da seleção argentina certamente ajudou a ditadura a se fortalecer. Mas, para os locais, mais pela paixão do que pela repressão, era impossível torcer contra aquele time que tinha Passarela, Ardiles, Luque e Kempes.

Empurrados pela multidão entusiasmada, eles atropelavam seus adversários, como atropelaram o Peru    na polêmica goleada que mandou para casa o Brasil invicto de Cláudio Coutinho. Vi o jogo e não creio que os peruanos facilitaram as coisas. Nem a Holanda, com o seu futebol total, conseguiu segurar aquela avalanche azul    e branca. Isso sem Maradona, que só se consagraria em 86, nem Messi, que sequer havia nascido.

Pois eles vêm com tudo de novo. Nada alegraria mais os argentinos do que repetir o feito dos uruguaios em 50. Em breve, invadirão Porto Alegre para o confronto contra a Nigéria. Vamos tratá-los com respeito, certamente, até com alfajores se for o caso. Nigeriano desde criancinha, já estou com o meu ingresso no bolso.


E com uma dúvida inquietante na alma: será que algum brasileiro vai mesmo torcer para que a seleção de Felipão se dê mal?

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