05 de fevereiro de 2014
| N° 17695
MARTHA MEDEIROS
Depois daquele beijo
Quase todas as novelas acabam
virando o samba do crioulo doido da metade para o final. Os autores precisam
esticar a trama e aí personagens que no início eram interessantes tornam-se
patéticos e a história que fazia sentido passa a não fazer mais sentido algum,
a lógica vai para o espaço. Salva-se quem tiver talento acima da média, caso de
Mateus Solano, que defendeu seu Félix com bravura e humor, virando o grande
destaque de Amor à Vida.
Coube a ele e a Thiago Fragoso a
cena histórica da tevê brasileira: o primeiro beijo de amor entre dois homens.
Quem vinha acompanhando o desenrolar do relacionamento dos personagens Félix e
Niko certamente não se chocou. Se houvesse uma palavra para traduzir aquela
relação, seria ternura. O oposto de depravação.
Eu não esperava que o beijo
ocorresse. Pega de surpresa, meu senso crítico (bem crítico!) em relação à
novela desapareceu e me vi emocionada e feliz por todos os homens e mulheres
que vivem um amor homossexual, e por seus pais, e por todos nós. Uma nova
sociedade começava ali a sair do armário.
Não se pode desmerecer o alcance
de uma novela das nove, ainda mais em seu capítulo final. Dezenas de milhões de
pessoas assistiram dentro de suas casas a uma realidade que a cada dia se torna
menos secreta. Ouvi de alguém uma comparação espantosa: que assim como os
telejornais não mostraram as cenas de cabeças cortadas na penitenciária de
Pedrinhas, no Maranhão, as novelas também deveriam se abster de mostrar o beijo
gay, bastaria uma insinuação. Se entendi bem, o beijo estaria sendo considerado
violento.
Os beijos podem ser românticos,
eróticos, indecentes (os melhores), mas só são violentos quando acontecem
contra a vontade. Afora isso, são detonadores de histórias de amor – ou de
ilusões de amor, que seja. A partir deles, sempre começa alguma coisa (o.k.,
não nesta era de ficações banais, mas permita-me ser nostálgica). Assim como na
vida real, os beijos do cinema, do teatro e da televisão ajudam a construir uma
narrativa.
E o que a história de Félix e
Niko contou foi que homens enamoram-se entre si, sentem ciúme, ficam inseguros,
reatam, tudo como ocorre entre héteros. Mesmo ainda não sendo considerados
casais convencionais, podem ser tão amorosos quanto. Há alguma obscenidade no
amor? Nenhuma. Não há obscenidade nem no sexo, não quando consentido e entre
maiores de idade.
Obscenidade é quando a grosseria
nos remete ao nosso estado mais primitivo, mais irracional. Não fazemos questão
de ver cabeças cortadas na tevê porque nos dói admitir o quanto o ser humano é
descontrolado e feroz. Em contrapartida, nunca haverá razão para cortar cenas
de afeto que nos façam lembrar o quanto podemos ser doces, estejamos em cena ou
simplesmente aplaudindo de fora.
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