quarta-feira, 2 de setembro de 2009



02 de setembro de 2009
N° 16082 - DAVID COIMBRA


E então abriu-se a porta do elevador

– O que é que tu acha da minha mulher?

Alfredo estremeceu ao ouvir a pergunta. A voz que a formulara era grave e tonitruante, uma voz de Konan, o Bárbaro; uma voz de gênio da lâmpada. Alfredo conhecia a garganta que a produzira – já ouvira aquela voz em outras circunstâncias e, ainda que ela nunca antes tivesse se dirigido a ele, a temia. Todos a temiam. Zulu, chamava-se o dono da garganta e da voz.

Era, é óbvio, um negro de pele reluzente e músculos do tamanho de paralelepípedos. Seu cabelo black power elevava-se a dois metros do chão, ele calçava 48 bico largo e jogava no meio da área do Huracán, onde se celebrizou por trincar tíbias e perônios de centroavantes de todos os times, cores e credos. Ninguém desafiava Zulu, o zagueirão-central do Huracán.

E agora Zulu falava com ele, Alfredo, mais conhecido como Alfredinho, ele que tinha um porte de Romário. Só que mais magro.

Alfredinho olhou para cima, para a caratonha hostil de Zulu. Os olhos negros o fitavam do fundo daquele rosto negro. Alfredinho sentiu o coração saltar do peito para a garganta. Teceu uma prece silenciosa a todas as Nossas Senhoras que conhecia para que estivesse ocorrendo o improvável e a pergunta não fosse dirigida a ele. Fez-se de desentendido:

– Ahn... O senhor está falando comigo?

– O que é que tu acha da minha mulher? – repetiu o Zulu, e agora não havia mais dúvida. Era com ele mesmo. Até porque só estavam os dois ali, em frente aos elevadores da firma.

O que Alfredinho achava da mulher do Zulu? Por favor! Karina, a dita cuja, trabalhava como ascensorista no prédio. Era a coisa mais luminosa, mais angustiantemente bela, mais suave e, ao mesmo tempo, mais feroz que Alfredinho já vira na vida.

Os cabelos longos da cor das tardes de verão, os olhos d’ água da cor das manhãs de primavera, Karina enfeitiçara Alfredinho desde a primeira vez em que ela surgiu atrás da porta do elevador perguntando:

– Desce?

Miseravelmente, Alfredinho ia subir. Não fez aquela viagem com Karina como condutora. Mas decidiu que faria todas as outras. Todas. Para sempre. Assim, nas semanas que se sucederam, subia e descia 10, 15, 20 vezes por dia no elevador manejado por Karina. Ela sempre sorria ao saudá-lo, ele sempre se emocionava com seu sorriso, ela sempre lhe fazia as mesmas perguntas. Duas:

– Desce? Ou: – Sobe?

E Alfredinho descia, se ela estivesse descendo. Ou subia, se ela estivesse subindo. Ia junto, feliz como um cachorrinho, bebendo da beleza dela enquanto os andares passavam pela porta, ouvindo o próprio coração ribombar como se fossem comanches anunciando guerra. Depois, descia ou subia pelas escadas para onde realmente pretendia ir. Com o tempo, Karina entrou no jogo. Não perguntava mais “sobe” ou “desce”. Afirmava:

– Subimos, não? E ele, arfante de alegria: – Subimos, subimos! Ou o contrário:

– Descemos, não? – Descemos, descemos!

Era lindo, aquilo. Aquela intimidade entre eles. Algo único. Uma deferência que ela lhe fazia. Uma brincadeirinha maliciosa, prenhe de promessas não ditas. Alfredinho sonhava com aqueles momentos e imaginava como evoluiriam. Mas não esperava ouvir o que ouviu, nem de quem ouviu:

– O que é que tu acha da minha mulher?

E agora? Que tipo de pergunta era aquela? Zulu, é claro, desconfiava dele. Afinal, não era possível que quisesse de fato saber a opinião de Alfredinho sobre sua esposa.

O que Alfredinho deveria responder? Se dissesse que Karina era uma imperatriz, que era a mulher mais linda da cidade, Zulu, evidentemente, transformaria sua cara em xis-bacon ali mesmo, na frente da porta do elevador.

Deveria dizer que Karina era feia? Não. Isso talvez o enfurecesse ainda mais. Além do que, era uma mentira muito descarada. Impossível alguém achar Karina feia. O que deveria dizer? O quê???

Zulu o encarava, esperando a resposta. Alfredinho suava. Estavam os dois nesse impasse quando se abriu a porta do elevador. Karina fez sua aparição gloriosa. Foi como se o sol resplandecesse na parede fria do corredor. Olhou direto para Alfredinho, como se esperasse vê-lo. E perguntou com sua voz de leite condensado:

– Subimos, não? Alfedinho emudeceu.

– Oi, amor – rugiu o Zulu, dando um passo gigantesco para dentro do elevador.

– Oi, Zu – disse ela, como se só então o visse. Virando-se para Alfredinho, Zulu rosnou lá de dentro: – Subimos, não?

Alfredinho olhou para Karina. Ela o encarava, séria, expectante. Olhou para Zulu. Que parecia ainda mais sério. Alfredinho suspirou. Baixou a cabeça. Miou:

– Eu desço, eu desço. E levou sua humilhação escadarias abaixo, rumo ao estacionamento, pensando que ninguém desafiava Zulu, zagueirão-central do Huracán.

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