segunda-feira, 8 de setembro de 2008



GAÚCHO A PÉ

Nos cem anos de nascimento de Cyro Martins, comemorados com muitos eventos, o principal beneficiado foi o leitor, mesmo se a maioria ainda não está a par disso.

É primorosa a nova edição (Território das Artes/Corag) da Trilogia do Gaúcho a Pé: 'Sem Rumo' (1937), 'Porteira Fechada' (1944) e 'Estrada Nova' (1954). Cyro publicou 15 livros de ficção.

Eu não tenho dúvida de que ele foi o maior escritor gaúcho de todos os tempos. Certamente o mais verdadeiro.

A sua literatura é implacavelmente autêntica. Não inventa mitos, não semeia falsidades históricas e não confirma uma auto-imagem indulgente do Rio Grande do Sul.

Talvez a trilogia já não faça tanto sentido para as gerações urbanas que nasceram e cresceram depois do êxodo e da passagem de um Brasil predominantemente rural a um país urbano.

Mas a força dramática dos seus livros vai além disso, não se limitando a ser um documento histórico. Ninguém precisa ter conhecido o sertão para gostar de Guimarães Rosa.

Nos livros de Cyro Martins não há heróis. O gaúcho é um homem comum expulso pelo latifúndio para a periferia das pequenas cidades. Não há democracia campeira nas suas narrativas.

O patrão não é o amigo e protetor do peão. O 'centauro dos pampas' é um coitado que precisa vender o cavalo e os arreios para que a família possa comer. Ou até mesmo, contrariando o seu mais elevado código de honra, roubar uma ovelha. Cyro Martins mostrou o conflito no campo.

Os sem-terra deviam tê-lo como escritor de cabeceira. Alcy Cheuiche tem razão no ponto mais relevante: os personagens de Cyro, apesar de despejados do campo, jamais são ressentidos.

Eles amam a campanha com todas as forças. Lembram com saudades da vida campeira. Não é das relações de trabalho que sentem falta, mas da natureza, dos animais, das tropelias.

Tau Golin contou-me por e-mail que, certa vez, ele e Luiz Sérgio Metz, jovens estudantes rebeldes, levaram Cyro para uma palestra na Universidade Federal de Santa Maria.

Metz, o 'Jacaré', conhecido pela sua irreverência, chamou Cyro o tempo inteiro de 'pai'. Chamar um psicanalista de pai é mais do que um sintoma. Tanto o historiador Tau Golin quanto o escritor Metz filiaram-se à vertente desmitificadora de Cyro Martins.

Esse tipo de escolha sempre tem um preço alto. Metz tentou, num livro ambicioso no plano da linguagem e da visão de mundo, 'Assim na Terra', mesclar Cyro Martins e Guimarães Rosa. O próprio Cyro, como escritor, sempre esteve à margem. As platéias preferem o mágico que inventa o truque.

Dificilmente aplaudem quem lhes tira as ilusões. É a diferença entre o publicitário e o sociólogo. É a profunda diferença entre Erico Verissimo e Cyro Martins.

João Guedes, o gaúcho a pé, expelido com a mulher e os filhos do seu hábitat, é o personagem marcante da obra de Cyro Martins.

Carlos Jorge Appel, editor e amigo de Cyro, sintetizou: 'A tragédia é o ponto final dessa história de João Guedes. A campanha gaúcha nunca mais seria a mesma'.

Quem leu Cyro Martins em Palomas, como eu, guri da campanha, sonhando com mundos impossíveis e vendo a população minguar, dia a dia mudando-se para a cidade em busca de empregos incertos, nunca esquecerá a frase final de 'Porteira Fechada': 'Que paz naqueles campos!'.

Naqueles campos então habitados apenas pelos bois nas invernadas. Era, enfim, a paz dos ruminantes.

juremir@correiodopovo.com.br

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