terça-feira, 9 de outubro de 2007



09 de outubro de 2007
N° 15382 - Moacyr Scliar


Grades e crianças

Costumo escrever histórias de ficção baseadas em notícias de jornal.

Esta prática me ensinou duas coisas: primeiro, que atrás da realidade cotidiana não raro existe uma narrativa ficcional esperando para ser contada; e, segundo, aquilo que todo o mundo já sabe: o real é muitas vezes mais surpreendente do que o imaginário.
Coisa comprovada por uma história que ouvi recentemente. Asseguro a vocês que o fato realmente aconteceu. Por óbvias razões deixo de mencionar nomes e lugares, mas aqui vai, em homenagem ao Dia das Crianças, que ocorre no próximo dia 12.

Anos atrás, dois irmãos, de uma família de classe média alta, foram convidados para o aniversário de um amigo, na casa deste. A mãe dos garotos pediu ao filho da empregada, cuja idade regulava com a do seus meninos, que os acompanhasse.

Foram, mas o filho da empregada foi barrado no portão; como não era convidado, teve de esperar na rua até que a festa terminasse, e ali ficou, olhando por entre as grades o que se passava lá dentro.

Passaram-se os anos. O filho da empregada lutou para melhorar de vida; inteligente, esforçado, cursou uma escola pública, saiu-se bem nos estudos. Fez um concurso para agente penitenciário, foi aprovado.

E aí o inacreditável: designado para uma penitenciária, começou a trabalhar e encontrou - quem? - o aniversariante de anos atrás, agora um traficante de drogas que está preso, sob vigilância do rapaz que não pudera entrar em sua casa, e que continuava a mirá-lo através das grades. Outras grades.

É muito fácil tirar desta história uma conclusão vingativa, do tipo os ricos serão castigados. Não é por aí. O fato de o menino de família abastada ter se tornado um traficante é uma desgraça: para ele, para os familiares, para aqueles cuja dependência química ele alimentava.

É melhor pensar no ocorrido como uma metáfora para o Brasil, um país onde crianças são separadas por grades. Grades e infância são incompatíveis. Infância significa sonhar, significa a possibilidade de explorar novas realidades.

As grades são para isso um obstáculo, talvez inevitável na conjuntura social em que vivemos, mas de qualquer modo um fator de isolamento e de separação com o qual não devemos nos acostumar.

Mais infância, menos grades. Talvez seja esse um bom lema para o Dia da Criança.

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