sábado, 6 de outubro de 2007



07 de outubro de 2007
N° 15388 - David Coimbra


Todos pelados, asmáticos ou não

Lá estava eu, pelado. À minha esquerda, vários pelados.

À direita, mais pelados. Todos homens. Desagradável. Tinha 18 anos, e estava prestando exame médico para fazer serviço militar. Quer dizer... estava prestando exame médico para tentar não fazer o serviço militar.

Naquela fase da vida, havia apenas três pensamentos loteando meu jovem cérebro: Alice, uma moreninha de coxas grossas; Sândi, uma loirinha de coxas grossas; e arrumar uma forma de o longo braço do Exército Brasileiro não me alcançar.

Não só eu, óbvio. Fugir do serviço militar convertera-se em obsessão coletiva para os guris da minha faixa etária. Havia lendas acerca.

Diziam que o Mamica, competente centromédio, tinha escapado valendo-se de um expediente ousado: apresentou-se vestindo a calcinha da irmã por baixo das US Top - constava que homossexuais não eram admitidos nas Forças Armadas.

Porém, ah, porém, havia um porém: o certificado de reservista vinha com um enorme carimbo vermelho: "INVERTIDO". Ou: "PEDERASTA". Ou ainda: "DEFICIENTE MENTAL". Bom. Ao menos era o que nos contavam.

Outro amigo, o Geleca, fez o seguinte: mandaram-no entrar numa fila e, de repente, o Geleca saiu caminhando pelo quartel, meio ausente, olhando para o céu, procurando pássaros e helicópteros. Um sargento foi lá, gritou: - Vem cá, rapaz!

E pegou o Geleca pela mão e o colocou na fila de novo. Um minuto depois o Geleca errava outra vez, sem rumo. O sargento saiu correndo atrás dele.

- Está maluco??? - urrou. O Geleca encarou-o com olhos esgazeados e balbuciou: - Blê...

Foi posto mais uma vez na fila. E mais uma vez, passado um minuto, saiu a vaguear, repetindo:

- Blê. Blê. E novamente: - Blê.

- É louco - concluiu o sargento, encaminhando o Geleca para a liberação. Mas em seu certificado carimbaram: "INSANIDADE MENTAL".

A brabeza desses carimbos é que, por causa deles, conseguir emprego tornava-se quase inviável. Na iniciativa privada, dificílimo.

No Banco do Brasil, impossível. Digo Banco do Brasil porque trabalhar no Banco do Brasil era o que todas as mães desejavam para seus filhos. Se não desse o BB, que fosse outro banco.

O cara começava como office-boy, ia subindo, passava por caixa, chefe de caixa, teve um que até virou subgerente. Agora, se o certificado de reservista viesse com um carimbo desabonatório, babaus. Nada de emprego.

Por isso, resolvi tentar o truque da asma, muito mais seguro. Pedi para o meu amigo Fernando, asmático militante, a bombinha dele emprestada. A bombinha é um remédio lá que os asmáticos usam. Na hora do exame, a bombinha estava comigo, eu tripelado junto com os outros pelados, e o oficial-médico nos passando em revista. Franziu o nariz.

- Digam pros amigos de vocês tomarem um banhinho antes de vir para cá! - berrou.

De fato, o ar estava empestado por um cheiro de queijo ralado rançoso. O médico foi entrevistando um a um. Perguntou se alguém tinha doença ou pé chato. Um magrinho ao meu lado usou meu estratagema:

- Tenho asma!

O médico se aproximou, fazendo humm. - Asma, é? - sondou. - E o que acontece quando tu tens um ataque de asma?

- Eu cuspo sangue! - Ah, tu tens asma sangüínea... Vai pra fila dos soldados. Soldado!

Todo mundo riu. Eu ri. Asma sangüínea. Que idiota. Eu que não ia dizer uma bobagem daquelas. Chegou a minha vez. Eu:

- Tenho asma! - É? E tu usas algum remédio?

Mostrei a bombinha, exultante. - E o que tu faz depois de usar a bombinha? Abri a boca. Comecei a dizer eh... uh... hum... e arrisquei: - Engulo?

Em um segundo, soldado David na fila dos soldados! Uma desgraça. Ninguém queria servir, o Exército gozava de péssima imagem. Pudera: vivíamos os ferozes tempos da ditadura.

O Exército estava, digamos assim, rebaixado à segunda divisão da simpatia popular. Agora, uma pesquisa publicada há pouco revelou: o Exército é uma das instituições com maior credibilidade no país.

Recuperou-se quase tão rapidamente quanto o Grêmio, e quase da mesma forma: com sobriedade.

É uma lição, mas o que queria contar foi sobre um jogo, um único jogo, que tivemos no quartel. Como a página acabou, conto na quarta. Até lá.

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