sexta-feira, 4 de outubro de 2024

E se amo tanto que amo errado?

Tati Bernardi - Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Às vezes minha filha me xinga de 'sua inútia'; quero me ajoelhar de tanto amor. No trabalho, às vezes me comporto como uma megera intragável e sei que preciso tomar cuidado para não sobrecarregar a equipe com minhas demandas infinitas e listas obsessivas. Nos relacionamentos amorosos, quando fico de saco cheio, posso ser insuportavelmente crítica e exigente. Vejo tudo o que minhas amigas suportam para ter um "parceiro" e aposto que eu não aguentaria nem 10% das chateações e decepções.

Nas amizades já fui mais cansativa e egoísta. Melhorei um tanto, mas nos meus piores dias reclamo demais e escuto de menos. Com meus pais aprendi a colocar limites e a performar, quando necessário, uma certa frieza. Se um filho único não faz isso, ele apenas não consegue viver a própria vida. Talvez eu seja uma pessoa meio ruim uns 40% do tempo.

Gosto da minha cachorra como cachorra. Ela é uma cachorra. Ganha carinho, ração da melhor qualidade, exames médicos todos os anos. Mas não fico saudosa ou triste quando viajo e a deixo em outra casa.

Dificilmente sofro assédios morais, já que desde os 19 anos escrevo colunas em revistas e jornais e todo mundo sabe que se tem uma coisa que eu faço sem dó é expor babaca. Empresa que não me paga na data, então, nossa senhora, o Brasil inteiro fica sabendo. Eu teria medo de mim se eu fosse outra pessoa. Na verdade, acho que tenho pavor de mim. Sempre me coloco para baixo, me digo verdades terríveis e me maltrato mentalmente.

Mas sou uma mãe escandalosamente banana. Com minha filha, sou o extremo oposto do que sou com o resto da humanidade. Eu sou uma daquelas flores para quem a criança bate palma e a flor dança desajeitada. Sou um joão bobo que apanha e volta sorrindo. Sinto pena da minha filha por precisar acordar tão cedo para ir à escola e a troco ainda deitada. Lavo suas mãos com uma toalha molhada e sirvo seu leite na cama.

Boneca joão bobo - Divulgação

Estava feliz assistindo à série "Amiga genial", adaptação da obra homônima da Elena Ferrante, até ouvir a protagonista dizer que ama mais o tal do Nino do que as próprias filhas. Garrei ódio da mulher. Demorou semanas para que eu conseguisse voltar para os episódios restantes.

Às vezes, com raiva, minha filha me xinga de "sua inútia". Eu quero me ajoelhar de tanto amor. Tenho que fazer uma força hercúlea para fechar a cara e dizer que não pode xingar. Mas "sua inútia" me soa como o poema mais bonito que já ouvi.

A cada vacina ela ganha alguma coisinha baratinha, a cada apresentação na escola ela ganha outra coisinha baratinha. Mesmo que ela não faça nada, toda hora ela ganha alguma coisinha baratinha.

Semana passada tentei deixá-la sozinha para "ficar pensando no que fez" e tive um acesso de choro pior que o dela. As mãos fofinhas geladinhas de nervoso tentando me pedir desculpas. Os imensos olhos vermelhos sendo esfregados pela manga encatarrada da blusa. A boquinha cor-de-rosa tremendo. Eu mantive minha pretensa braveza, mas quase faleci 34 vezes. Meu cortisol aumenta 10 miligramas a cada vez que preciso dar bronca ou ser ríspida.

Esta crônica não tem nada demais. É só porque, quando engravidei, senti medo: "E se eu não amar minha filha?". E agora, amando dessa forma tão avassaladora, tão esmagadora, tão maior coisa da vida, tão absurda, eu me pergunto: "E se amo tanto que amo errado, do tipo que estraga a criança?". Todas as noites ela segura meu rosto e olha bem fundo nos meus olhos. E ficamos assim um tempo, até que ela adormece sorrindo. Um dia perguntei por que fazia isso e ela respondeu que outra hora me conta.

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