"Você não pode se livrar de si mesmo"
Para Caetano, álbum que tem como base as batidas do samba é essencialmente brasileiro, apesar das experimentações
Junto com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, músico buscou camadas roqueiras para as canções de "Zii e Zie"
Rafael Andrade/Folha Imagem
Caetano Veloso, que lança agora o álbum "Zii e Zie"; nome, "tios e tias" em italiano, foi tentativa de aproximar de São Paulo o CD de paisagens cariocas
LUIZ FERNANDO VIANNA - DA SUCURSAL DO RIO
Há canções, como "Sem Cais" e "Por Quem?", em que o samba não aparece, mas Caetano Veloso garante que o gênero central da música popular brasileira é a base de todas as faixas de seu novo disco, "Zii e Zie" -um título em italiano (significando "tios e tias") para aproximar de São Paulo um CD de paisagens cariocas, diz.
Foi experimentando variadas batidas de samba que a maioria das novas composições surgiu. Ao serem trabalhadas com a bandaCê (Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, que se uniram a Caetano para fazer "Cê", o disco anterior), as canções ganharam outras camadas, roqueiras em especial. Mas continuaram essencialmente brasileiras, na visão do autor.
"Existe uma tendência brasileira de considerar tudo o que o Brasil já encorpou como desprezível. Eu não posso compartilhar disso, porque acho suicida. Só não é suicida porque é um equívoco. Quem crê que está fazendo isso nunca está realmente fazendo isso.
Você não pode se livrar de si mesmo, não pode simplesmente decidir que não é brasileiro", afirma ele, num hotel do Leblon (zona sul do Rio), onde falou anteontem à reportagem da Folha.
Caetano tem feito defesas enfáticas de jovens artistas como Maria Rita, Mariana Aydar e Roberta Sá, que sofrem críticas por interpretarem sambas e outras "velhices" -na visão dos detratores. Para ele, até Celly Campello (1942-2003), se queria só copiar o pop rock americano do final dos anos 50, foi brasileira no modo de cantar "Estúpido Cupido" e afins.
"Um jornalista ultrassofisticado que supõe desprezar tudo o que é brasileiro já encorpado, e só se interessa por alguma coisa que pareça ser totalmente livre desse ranço do Brasil, ele está sendo uma Celly Campello do campo dele", diz.
Clementina
O novo álbum foi fermentado em shows que Caetano fez no ano passado, no Rio, e que batizou de "Obra em Progresso". Ao constatar que seria um disco assentado sobre batidas de samba, decidiu regravar duas músicas que estão em "Clementina de Jesus" (1976).
"Quando eu penso em samba, esse disco tem um lugar central na minha mente", diz.
Mas "Incompatibilidade de Gênios" (João Bosco/Aldir Blanc) e "Ingenuidade" (Serafim Adriano) ganharam registros à moda "Cê", com guitarras fortes. A primeira teve duas versões, e a que está no disco (a versão dois) foi escolhida em votação no blog de Caetano (www.obraemprogresso. com.br, onde podem ser ouvidas quase todas as músicas de "Zii e Zie" ao vivo).
Em uma entrevista que está no blog, ele afirma que "Incompatibilidade de Gênios" é um samba que "não fica num reduto carioca de preservação".
"Às vezes, essa criação do gueto pode ter um lado enjoativo, que prende as coisas dentro de uma fórmula autossuficiente, mas por outro lado é uma maneira defensiva saudável de preservar alguns procedimentos da execução do samba. E isso faz com que alguns sambas, justamente por estarem sendo criados dentro dessa área protegida, se tornem ainda mais universais", acredita.
FHC/Lula
Em "Lapa" e no material de divulgação do álbum, Caetano saúda a "era Fernando Henrique/ Lula". Embora ainda seja crítico das reeleições, diz que "deu para não ser ruim oito anos de cada".
"O confronto de certos sonhos com a realidade pode ser terrivelmente decepcionante, mas não é o caso de Fernando Henrique e Lula. Há milhões de razões para reclamar, mas ainda assim o resultado final é muito mais de coisas aproveitáveis do que de frustrações", afirma ele, que volta a citar o seu pensador brasileiro preferido, Roberto Mangabeira Unger, hoje ministro de Assuntos Estratégicos. "Ter acolhido Mangabeira engrandece ainda mais a figura de Lula. [Ele] estar ali já não pode deixar de ter consequências."
Antes de Barack Obama ser eleito, Caetano fez "A Base de Guantánamo", assinalando o simbolismo de os EUA violarem os direitos humanos em solo cubano. Agora, com Obama começando a desmontar a base e a reduzir as restrições na relação com Cuba, a música se arrisca à caduquice.
"A minha indignação não envelheceu, não pode nunca envelhecer. A canção não é uma notícia de jornal. Mas fico muito feliz de que, sob outro ponto de vista, ela fique, sim, obsoleta", afirma.
Caetano ainda relativiza a rapidez com que várias canções foram criadas, nascidas como novidades para "Obra em Progresso".
"Vou ser sincero: todas as vezes eu componho assim. Fico com impaciência de continuar trabalhando até passar pelo meu crivo crítico. Deixo a canção precária, defeituosa e apresento.
Se fosse botar meu crivo crítico, não ia ter nenhuma dessas músicas. Ou, então, eu ia fazer canções realmente perfeitas, aos meus olhos. O Chico [Buarque] eu acho que faz", diz.
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