quinta-feira, 27 de novembro de 2008



27 de novembro de 2008
N° 15802 - PAULO SANT’ANA


A casa é um bem da vida

Há um número que considero horripilante nesta calamidade que se abateu sobre Santa Catarina: ontem havia 79 mil desabrigados e, destes, 27 mil tinham perdido inteiramente suas casas.

Não sei se pode haver coisa pior que uma pessoa perder a sua casa. Perder a casa é um desmoronamento da existência. Perder a casa é o deslizamento da vida.

Milhares de pessoas estão desabrigadas mas não perderam suas casas. Estão apenas esperando que as águas baixem para voltar a suas casas.

Mas outras 27 mil pessoas perderam suas casas, das quais não sobraram nenhum tijolo, os alicerces, as paredes, o teto, os móveis. Tudo desabou do barranco e virou lama.

Eu fiquei calculando a dor, o desconsolo, o desespero de uma pessoa que perde a sua casa.

Sem exagero, perder a sua casa é como perder a vida. Pior que perder a vida: é perdê-la, mas sobreviver para enfrentar a tragédia da reconstrução.

Quando me casei, aluguei uma casa humilde em São Jerônimo, mas não tinha os móveis. Eu só possuía um colchão e um urinol.

É muito penosa a sorte das pessoas que estão começando a sua vida. Então vim até Porto Alegre e comprei, na antiga e ex-Imcosul, um armário, dois sofás e uma cama.

Estes meus raros móveis, os únicos que podia comprar com meu salário de inspetor de Polícia (os policiais sempre, eternamente, ganharam mal), foram descendo numa barca pelo Rio Jacuí para me serem entregues no porto de São Jerônimo.

Era tudo que eu tinha, minha vida se resumia a móveis comprados em prestações. Se eu perdesse esses meus móveis, perdia tudo que eu tinha.

Esses 27 mil catarinenses perderam todos os seus móveis, mas perderam mais que isto, perderam suas casas, suas roupas, seus quintais, suas galinhas, seus cachorros, eles perderam literalmente tudo. Ao perderem suas fotografias e outras lembranças, perderam também sua memória.

Fixe bem uma coisa: uma pessoa que assiste a sua casa deslizar de um barranco (e havia não só casas humildes, algumas eram casas muito boas e caras), olha para o lugar em que morava e vê que aquela casa que se esfarelou no deslizamento perdeu também o seu terreno.

Quem perde a casa no deslizamento perde também o terreno, não tem mais onde edificar outra casa sequer. É uma tragédia pessoal de proporções incalculáveis.

Por isso é que fiquei tomado de compaixão por 27 mil pessoas que perderam suas casas, perderam suas referências, sua origem, suas vidas.

Porque uma calamidade dessa ordem determina que a pessoa que tenha perdido sua família entre os mortos permaneça agora com sua casa, mas sem saber o que fará com ela, sem a família.

E determina também outra tragédia: é que a pessoa tenha permanecido, após a inundação, com sua família, mas sem saber o que fará com ela, pois perdeu a sua casa. É muito mais fácil viver do que reconstruir uma vida.

O sonho da casa própria, quando realizado, é a construção da vida. O pesadelo da perda da casa é a destruição da vida.

Estou trabalhando na minha dissertação de mestrado com déficit habitacional então não há como não endossar as palavras do S’antana. Mas há que se arranjar forças não sei onde, para recomeçar tudo outra vez, pois a vida é isso: um eterno recomeçar de tudo.

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