quinta-feira, 24 de novembro de 2022


24 DE NOVEMBRO DE 2022
O PRAZER DAS PALAVRAS

Chucro ou xucro?

Entre os leitores regulares desta coluna - e certamente também entre os eventuais - dificilmente vamos encontrar alguém que considere supérfluo o cuidado com a grafia correta das palavras. Lá fora, porém, há muita gente que classifica como isso uma perda de esforço e de tempo, típica dos que não têm mais o que fazer. 

Para eles, não importam os erros, desde que a mensagem seja entendida. Nesse ponto de vista, não há reparo algum ao já famoso cartazete afixado no quiosque de um chaveiro paulista - FUI AO MOSSAR. Para os que seguem este raciocínio, a questão se encerraria assim: "Deu para entender? Então não compliquem. Não importa como usamos os talheres à mesa, desde que a comida não caia durante o percurso que vai do prato à boca"...

Acontece que o uso dos talheres é apenas uma questão de etiqueta, isto é, uma adequação minha ao código de conduta esperado em determinada região ou em determinada comunidade. Aqui onde vivo não é de bom tom, num jantar em casa alheia, comer com a mão ou tirar da boca um pedaço mal mastigado para examiná-lo melhor à luz ambiente. Essas práticas terão, é claro, repercussão desfavorável no meu prestígio social - mas passariam despercebidas de meus companheiros de pescaria, num churrasco de chão, na beira do rio.

Até aqui, tudo igual com a ortografia. Trocar o Z pelo S (e vice-versa), maltratar os acentos ou, o que é pior - uma praga moderna que se dissemina como a Covid -, esquecer o R final dos infinitivos (ele vai bebe*, em vez de beber) também depõe socialmente contra os descuidados, como vejo nos comentários femininos, nas redes sociais, quando avaliam os homens com quem se relacionam ("Ele usa tanto o mim que me sinto namorando um índio!").

Mas os erros ortográficos têm também outra consequência, e bem mais grave do que essa: eles rompem a fluidez, a transparência necessária que o texto deve ter para ser entendido em todas as suas intenções e qualidades, e não é por acaso que ela é levada a sério por qualquer comunidade deste planeta que use a escrita.

Como não canso de frisar, onde há erros de grafia, quebra-se o fluxo do texto. Volto à minha metáfora favorita: os erros são como aqueles insetos que se achatam no vidro do carro durante as viagens. Eles fazem nossos olhos abandonarem a estrada e se fixarem no vidro. É impossível aproveitar a paisagem se nosso olhar for requisitado constantemente por aqueles bichinhos com recheio amarelo que se esborracham no parabrisa como projéteis de paintball; escrever com erros chama a atenção para aquilo que não interessa. Cada vez que quebro a convenção ortográfica, quem sai perdendo sou eu, pois obrigo meu leitor a abandonar a linha de raciocínio para se fixar na grafia das palavras.

Explico tudo isso para responder à consulta de Xavier R., de Porto Alegre, que vai inscrever uma de suas canções num festival de música nativista e não quer errar: o certo é chucro ou xucro? Pois já vou avisando, prezado Xavier, que o adjetivo chucro (ou xucro) é uma dessas dúvidas que ficarão sem resposta. Como talvez saibas, este vocábulo vem do Quíchua - língua principal do Império Inca, assim como também vieram lhama, mate, condor, coca (da cocaína), cancha e tambo. 

Os que escrevem xucro aplicam-lhe o princípio geral que rege a grafia de todos os vocábulos oriundos de línguas que não tinham escrita (xaxim, xavante, orixá, Erexim, etc.). Ocorre, no entanto, que essa palavra, ao chegar aqui, já tinha passado pelo filtro do Espanhol platino, onde foi transliterada com CH (chúcaro), exatamente como ocorreu com charque. E aí? Tens o direito de escolher. Segue o rumo do teu próprio coração - e tranquilo, porque os bons dicionários (e a Academia Brasileira de Letras) registram ambas as variantes.

CLÁUDIO MORENO

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