sábado, 19 de novembro de 2022


19 DE NOVEMBRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

O DEUS MERCADO

Os antigos inventaram muitas divindades, mas nenhuma tão bizarra como o totem dos liberais, o deus Mercado, venerado como mito, a crença de uma religião corporativa, com ambição de hegemonia. Imaginem cultuar o poder mágico de um sistema de trocas, e dar a este deus a autoridade máxima, como fonte da realidade e critério do mundo! Mas se há um deus Mercado, quais sua origem e seu papel em um sistema de crenças, e qual religião é favorecida por essa mitologia? Como, ademais, evidenciar o vazio inato deste santo de pau oco?

A fonte mítica do deus Mercado está em Adam Smith (1723-1790), que armou o ninho do liberalismo e ali formulou a tese mágica da mão invisível, um mito que se alastrou como ideologia desde sua origem. O patrono da ideologia liberal usou desta imagem para tentar explicar como o capital permaneceria dentro da nação quando se abrissem as fronteiras. 

Livre comércio (free trade) foi bandeira da primeira era do liberalismo, ao final do século XVIII e primeira metade do XIX; este lema era a máscara formal da pirataria sem limites então praticada pela Inglaterra. Smith, na obra Teoria dos Sentimentos Morais (1765) e em A Riqueza das Nações (1776), presumiu que há um comportamento contraditório que faria com que os burgueses garantissem o interesse nacional e guardassem sua riqueza em solo pátrio, mesmo com a tentação de emigrar. 

O liberalismo tornou-se desde a origem a ideologia do capital e também de seu primeiro guardião, o imperialismo britânico; esta guarda, todavia, era realizada pelo Estado-nação, que aliás também garante a propriedade privada. Eis as questões contraditórias tratadas por Adam Smith com pensamento mágico. Posteriormente, o mito da mão invisível tramou outra quimera do liberalismo: a ilusória tese de que cada indivíduo, buscando apenas seus próprios interesses, colaboraria para o bem comum.

Caberia ao filósofo nascido em Trier, em 1818, demonstrar que o capital visa acima de tudo ao próprio engrandecimento, e que o faz diante da exploração da natureza e do trabalho. Marx foi o novo paradigma das teorias de economia política e o antídoto humanista para aquela mitologia interesseira. O desenvolvimento do próprio liberalismo jogou por terra a fantasia teológica de Smith, especialmente no estágio neoliberal, desde os anos 1990, quando se assistiu à absoluta transnacionalização do capital. 

Ademais, o mito da mão invisível, teologia primordial do liberalismo, transmitiu-se como base de um sistema de crenças incapaz de explicar racionalmente as realidades que pretende dominar. É o caso, similar, do mito de que os liberais tratam de economia com a austeridade necessária. Mentira. Tratam só dos interesses do capital, operados por meio de cavalos, mitos e monstros, e usurpam a palavra economia como o fazem com a palavra liberdade. Pura ideologia, impura teoria.

Um dia filósofos depuseram o mito, como agora o voto popular o faz. E algo maior que deus Mercado ora supera essa farsa egoísta, indiferente à miséria, ao trabalho e à natureza: a sociedade humanizada e a soberania política. Com verdadeira economia e muita liberdade.

FRANCISCO MARSHALL

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