05 DE JANEIRO DE 2019
PAULO GLEICH
DEVOTOS DA MADRUGADA
Desde que me alcança a memória, sempre fui um ser notívago. Quando criança, isso era um problema, pois o horário de sono estabelecido pelos pais (para que eles tivessem seu descanso) era muito mais cedo do que a hora em que meu corpo estava pronto para apagar. As luzes tinham que estar desligadas, e o quarto, em absoluto silêncio.
Como não havia na época as geringonças que hoje nos tiram o sono, como smartphones e tablets, tinha poucos recursos à minha disposição para enfrentar as horas que separavam o toque de recolher do momento de adormecer. Restava-me fantasiar, enxergando formas e vultos na penumbra do quarto, imaginando outras vidas, fazendo planos para futuros próximos e longínquos.
Quando ganhei de minha avó uma pequena lanterninha portátil a pilha, esta passou a ser minha companheira nas noites. Na clandestinidade, sob o cobertor, me entregava à leitura até ser finalmente chamado por Morfeu. Usava as pilhas, que comprava com minha minguada mesada, até seu último suspiro, quando o fraco lume amarelo finalmente expirava, me deixando novamente apenas com as luzes da imaginação.
Já adolescente, proprietário orgulhoso de um walkman, fui avançando madrugada adentro, seguindo atento a programação do rádio, companheiro dos insones e solitários. À espera do sono, ampliava meu repertório musical e informativo e, quando havia abundância de pilhas, acompanhado também da leitura à luz da lanterninha. Acho que nunca fui flagrado em minha transgressão noturna, talvez contasse com a silenciosa complacência dos pais.
Jovem adulto, tomei posse da madrugada de vez: não havia mais horários controlados, gozava a noite como em uma desforra daqueles tempos de clandestinidade. Além da música e da leitura, passou a ser minha companheira a internet, na época discada, que ficava acessível após a meia-noite, quando se pagava um pulso por ligação. O nascer do sol era o toque de recolher e a manhã, o tempo de dormir.
Hoje, já não disponho mais das madrugadas como antes: os compromissos começam mais cedo, e o corpo, já menos flexível, se ressente da inversão de horários por muito tempo. Nos períodos de recesso e de férias, por alguns dias, volto ao meu hábitat natural: quando me dou conta, já é alta madrugada. Na volta às atividades, mesmo não tendo saído de Porto Alegre, há sempre algumas horas de jet lag a corrigir para retornar ao fuso normal.
Gosto da solidão e do silêncio, por isso a madrugada é uma companheira tão aprazível. Na cidade, somente a quietude da madrugada faz parar por algumas horas o constante ruído de fundo do qual já nem nos apercebemos. Diminuídos os estímulos externos, é momento propício para exercer a solidão criativa, seja ela a leitura, a escrita ou apenas devaneios. É também na madrugada que os insones se confrontam com sua escuridão, ofuscada pela luz do dia, que ali acaba exigindo passagem.
Confesso uma inveja ocasional dos diurnos, com sua inexplicável disposição matinal; porém reconheço minha impotência ante o chamado da madrugada. Sei que somos muitos os seus devotos, entre amantes do silêncio e angustiados solitários, e cabe-nos aceitar, resignados, o tributo que ela nos exige. Aos companheiros de madrugada, minha solidariedade e meus votos de que saibam aproveitar essas horas, que têm a vantagem de durar mais do que as do dia. Aos diurnos, fiquem tranquilos: nos ocupamos das sombras da madrugada enquanto vocês descansam.
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