sexta-feira, 27 de agosto de 2010



27 de agosto de 2010 | N° 16440
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (INTERINO)


Por que uma cidade fica feia?

O argentino Lescano tinha uns 70 anos e comia ovos cozidos enquanto fazia caricaturas no meu tempo de Livramento. Levava um vidro com salmoura para o jornal, enfiava uma colher e ia devorando uma dúzia de ovos enquanto caricaturava alguém para as páginas de A Plateia. Nanquim no papel, traço vigoroso, limpo, esse traço clássico dos desenhistas platinos.

Lescano saía tarde da noite do jornal e ia jogar no cassino de Rivera, de terno de linho branco surrado, sempre silencioso, lento, com o olhar na calçada. Levava o vidro vazio sob o braço. Voltava no dia seguinte, o vidro cheio de ovos cozidos, os bolsos vazios.

Lembrei do Lescano, do Santamaría, João David, Basile, João Afonso, Gringo Alvim, do Martín Correa e do Pintinho quando estive em Livramento há pouco.

O mestre Basile morreu. Santamaría, Martín e Alvim eu sei por onde andam. Lescano estaria hoje com uns 105 anos. Teria durado tanto comendo ovos cozidos todos os dias? Ninguém soube me dizer, nem o Duda Pinto, que sabe tudo da cidade.

Claro que a Livramento por onde Lescano circulava, como se carregasse o caixão de Perón e toda a melancolia argentina dos anos 70 naquele vidro com ovos, não existe mais. Mas a cidade vista hoje por quem chega de fora é um desses mistérios que acionam uma pergunta incômoda: por que um lugar se degrada e se desfigura? Será por que os atrativos do freeshop de Rivera relegaram Livramento à condição de extensão do Uruguai?

Como deixaram a linha de fronteira que divide as cidades ser tomada pelos ambulantes, que fizeram sumir entre as barracas os galgos da praça dos cachorros? Que desatenção encascurrou casas e edifícios bonitos e transformou o belo Palácio Moyses Vianna da prefeitura num ambiente assustador? Que mecanismo paralisou Livramento?

Alguém disse, há muito tempo, que Livramento é a mais carioca das cidades gaúchas. É uma boa definição para um lugar em que a convivência de brasileiros e uruguaios resulta num tipo único, cordial, alegre, boêmio, festeiro. O santanense é o mais suave dos fronteiriços. Por que a cidade dessa figura faceira perdeu a graça?

Enrique Peñalosa, o ex-prefeito que civilizou Bogotá com ciclovias e espaços públicos de convivência, diz que as cidades não são bonitas e agradáveis por que são ricas. Quem for a São Lourenço, na zona sul, terá um exemplo do que Peñalosa pensa. A minúscula São Lourenço é uma cidade agradável, limpa, com prédios pintados, e não é rica. Percebe-se que cuidam de São Lourenço há muito tempo.

E o que se passa com Livramento? Pode ter sucumbido a uma crise de autoestima? O comércio do freeshop, que aos poucos também degrada Rivera, transformou a fronteira aberta entre as cidades gêmeas num cenário de invasores.

Compra-se tudo e com voracidade, de azeitona à TV de LCD, do lado de lá. Livramento é só o ponto de passagem. O real forte e a classe média em expansão podem ser parte de uma explicação, ou podem também ser apenas uma desculpa.

Ronaldinho foi ovacionado pela torcida no Nou Camp, na quarta-feira, no jogo do Milan com o Barcelona. Um dia isso se repetirá no Olímpico, quando Ronaldinho voltará para ficar. Renato, Ronaldinho, Arena. Será a ressurreição da imortalidade.

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