Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
terça-feira, 31 de agosto de 2010
31 de agosto de 2010 | N° 16444
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Viagem inacabada
Esses tempos trocaram as telhas do Solar dos Câmara, aqui quase em frente de meu edifício. Foi um belo trabalho, como não fariam nem em Portugal, de onde o modelo de cobertura é importado. Pena é que, na pressa, esqueceram uma sacola de supermercado, presa entre duas peças.
Também esses tempos apararam umas ramagens da paineira que me faz companhia, do outro lado da calçada. Lástima é que não se deram conta de que, na dispensável cirurgia, um pedaço de lençol cor-de-rosa ficou prisioneiro de alguns galhos.
Resultado: não há vendaval, tormenta, tsunami que remova tanto a sacola de supermercado, quanto o lençol cor-de-rosa, dos lugares onde estão cativos. Não posso deixar de pensar que tudo isso é uma metáfora da incompletude do Brasil.
Nesta terra descoberta por Cabral, as obras não têm fim, nem quando se trata de um telhado, nem quando se cuida de uma copa de árvore.
Assisto por estes dias na televisão, e ouço no rádio, a candidatos prometendo que vão mudar a nação. Ouvi-los é uma injeção de patriotismo. Não apenas acabarão com a pobreza e a marginalização, como nos conduzirão do Terceiro ao Primeiro Mundo.
Eu por mim me contentaria com um Segundo reciclado, no qual, em toda a pátria amada, cada cidadão tivesse uma casa, uma escola para seus filhos e um atendimento digno de saúde, sem, naturalmente, a opressão de regimes despóticos.
Mas ao mesmo tempo me recordo de outros pleitos e de outros candidatos a deputado, senador, presidente, em que eles se comprometiam solenemente a nos transportar, sem escalas, ao paraíso. A viagem continua inacabada até hoje.
Claro que é um grande salto ver e ouvir homens públicos prometendo mundos e fundos nos meios eletrônicos de comunicação. Houve uma época, neste país, em que eles só podiam dizer seu nome e seu número.
A evolução é evidente. O ideal no entanto é que nada disso fosse obrigatório ou inconsequente. O ideal é que cada ponte, creche, hospital saísse do vago território das promessas para se converter em realidade completa e presente.
Olhei agora para o telhado do Solar dos Câmara. A sacola de supermercado continua firme em seu lugar. Olhei a paineira: o pedaço de lençol cor-de-rosa persiste inamovível. Liguei um programa político nacional: os compromissos assumidos seguem em toda a sua vazia plenitude.
Linda terça-feira para vc.
31 de agosto de 2010 | N° 16444
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Nova danação
De vez em quando aparece um artista capaz de fazer, em público, a purgação de dores privadas, de dores costumeiras e veladas – as da vida familiar, as da opressão cotidiana (como essa que agora se chama “bullying”), as de qualquer desajustamento, pequeno na vida individual ou grande na coletiva.
Há uma notável passagem das Confissões, de Nelson Rodrigues, em que ele comenta Glauber Rocha como um desses artistas danados, que com Terra em Transe deu “um vômito triunfal”, parecido com o de Euclides da Cunha em 1902.
Pois há uma novela atual assim, sobre a vida dos adolescentes de agora, esses que vivem aqui ou lá e sempre andam conectados com qualquer parte do mundo. Concretamente, trata-se do mundo das cidades médias interioranas, com bom nível de vida mas incapazes de oferecer alguns bens preciosos que as grandes cidades têm para dar, como o anonimato e a variedade aparentemente infinita de oferta cultural e erótica. A novela é de Ismael Caneppele, nascido e criado em Lajeado, agora em São Paulo; ela se chama, à maneira de uma senha para iniciados, Os Famosos e os Duendes da Morte (editora Iluminuras).
Novela ótima, mas danada: ali o que se conhece é um momento do processo de afirmação individual de um adolescente, em final de colégio, para quem o mundo diário é uma tortura a que ele resiste com escárnio e que sonha com uma utopia nada nítida, figurada num suposto show de Bob Dylan para poucos, pouquíssimos, que aconteceria em algum lugar não totalmente claro.
A danação do protagonista vem em primeira pessoa, numa linguagem que gosta de elipses, interrupções e enigmas, tudo muito eficiente e fluido, como na frase de abertura: “Naquela cidade cada um sonhava o segredo”.
O livro guarda a força e a fragilidade dos depoimentos desesperados mas mansos e mostra semelhanças com grandes casos de danação literária do país – Caio Fernando Abreu, com o mesmo sentimento abismal de atração pela metrópole, e Raduan Nassar, com quem Caneppele tem uma afinidade decisiva, o ambiente familiar como horizonte opressivo para a alma libertária em busca de algo que não sabe o que é, que nunca saberá, mas que é a força decisiva, a única que conta. O livro virou filme, a que não assisti ainda, e dá bem para ver que o Ismael vai longe.
“Levanta os ombros, caminha com o peito estufado, as gurias gostam assim”, me disse meu primo Lula, quando ele tinha uns 13 anos e eu uns 10. Nunca esqueci do conselho nem da atenção dele, uma figura terna, gregária, um professor que tinha orgulho das vitórias de seus alunos, que também eram suas. Faleceu semana passada o querido Luiz Carlos Liedtke.
31 de agosto de 2010 | N° 16444
PAULO SANT’ANA
As minhas mãos
Para que vos quero, para que me servis, minhas mãos, se já não posso tocar convosco nem mais uma ilusão ou sonho?
Tristes mãos minhas, que não mais acariciam nem possuem mais a coragem de colher uma flor!
Mãos já incapazes de empunhar uma bandeira, sequer de afagar um cão.
Para que servis, minhas mãos, que antes tantas obras forjastes? Hoje mal que tremulamente ofereceis uma esmola.
Ainda bem que nunca se tingiram de sangue nem jamais se entregaram ao ócio. O que no entanto exijo de vós, mãos minhas, é que desmascareis os hipócritas e surreis os impostores.
Tanto estou a desconfiar de vós, minhas mãos enfastiadas, que temo que estejais dispostas eventualmente a dar tapinhas nas costas dos poderosos iníquos.
Para que servis hoje, minhas mãos decagonais, senão para arroubos de lascívia?
Temo até que deixastes, minhas mãos, de ser esperançosas nos vossos acenos de adeus.
Mãos caídas, impotentes já para esplêndidos gestos de aceite ou de recusa.
Vós vos finastes, minhas mãos. Talvez até para os abraços sinceros. Nunca mais vos atrevestes à poesia dos empurrões e das mãos dadas nas rodas de ciranda do colégio infantil.
Se só me servis para escrever, é escassa vossa serventia: eu precisaria de vós, minhas mãos, mais do que para ideias, precisaria para grandes atitudes. Como a de, por exemplo, enfrentar o poder nas mãos dos maus.
Mãos arrasadas perto do que fostes, decepcionantes perto do que prometíeis.
Olho para minhas mãos e não acredito que elas existam, como se me restasse ser uma Vênus de Milo.
Fito minhas mãos e vejo que nada mais cresce nelas, exceto minhas unhas.
Reagi, mãos minhas! Talvez ainda hoje haja tempo para grandes obras.
Atirai para longe – depressa que o tempo é curto – este destino de desencantos e amargores.
Talvez ainda haja ensejo, minhas mãos, para mudar o que pode ser transformado.
Livrai-vos, minhas mãos, dos entraves das vossas luvas, que vos tiram a força, o jeito e a impetuosidade, além de tornarem vossos dedos insensíveis.
Cruzai os teus dedos e que este enlace de oração vos leve novamente a produzir carinho e cuidados nas crianças e no ideal, além de estapear as desonras.
Mãos em que um dia depositei toda minha esperança e fé, voltai depressa a ser desprendidas, corajosas e realizadoras.
Livrai-vos dessa paralisia e dessas impurezas e tentai como antes, mais uma vez, vos agarrar à cauda luminosa do cometa do otimismo.
31 de agosto de 2010 | N° 16444
MOACYR SCLIAR
Poesia eleitoral
Deveríamos ter dois tipos de eleição. Uma que escolheria pessoas dignas, sérias e competentes para ocupar cargos públicos. Outra que selecionaria os candidatos, digamos assim, mais criativos; aqueles que fazem a propaganda mais imaginosa, em termos de apelidos, de lemas. Nesta segunda eleição, os autores de versinhos teriam seu talento reconhecido.
Tomem o caso do Tiririca, que nas últimas semanas foi presença constante no noticiário, graças ao “Vote Tiririca, pior que tá não fica”, que Camões, ou Drummond, ou Quintana dificilmente aplaudiriam, mas que todo mundo repete.
Numa entrevista, o candidato confessou que nada sabe de legislativo e que não tem muita idéia do que vai fazer; mas, seja ou não eleito, seu bordão está consagrado, e talvez inaugure uma nova tendência, um novo gênero literário, a poesia eleitoral.
Se, digamos, os colegas colunistas aqui de ZH quiserem se candidatar, alguns slogans emergem de imediato. Por exemplo, o Verissimo: “Seu voto não é levíssimo, portanto vote no Verissimo”. Ou a Martha (não a Suplicy, a nossa): “Em Atenas ou Esparta, nós só votamos na Martha” (Atenas ou Esparta nada têm a ver com as eleições gregas, é simples figura de retórica). E o mais popular dos colunistas: “Para os políticos dou uma banana, eu só voto no Sant’Ana”. E olhem só essa: “Vim, vi e venci, porque eu só voto no David”.
O D mudo no final atrapalha um pouco, mas se não impediu o David bíblico de derrotar o feroz Golias, também não serve de obstáculo para libertária poesia. E já que falamos em David, evoquemos o Moisés: “Se para o futuro tu tendes, vota no Moisés Mendes”.
Lembrando os companheiros de sala do Moisés: “Da corrupção vou rir, votando no Olyr”; e “Confiança não me falta para votar no Clovis Malta”, finalizando com (ela é de uma fantástica dedicação): “Corrupto comigo não se mete, porque eu voto na Suzete”.
Falando em David, e em crônica esportiva: “À urna alegre fui, e, claro, votei no Ruy”. Ou: “Mesmo sob a ação do martini, não deixo de votar no Zini”. Uma monarquista: “Se for votar para rei, meu candidato é o Wianey”. E vejam essa: “Se os recursos são parcos, pensem no Mário Marcos”. Nome lendário: “Em matéria de tradição, sou sempre o grande Falcão.”
Saindo da crônica esportiva, entra o Roger: “Vá ver se estou na esquina e depois vote no Lerina”. E olhem só esta, para a Mariana Bertolucci: “Aqui está um belo tip, vote na moça do RSVIP” (tip no sentido de conselho, obviamente). Falando sério: “Com a democracia tenho um trato, só voto no Liberato”.
E esta, inspirada: “Em mim a mosca azul não pousa, eu só voto no Nilson Souza”. Jovens colunistas: “Se só por bem é que tu ages, deves votar na Claudia Tajes”. Ou: “A democracia precisa de ar, portanto vote no Carpinejar”.
Mais uma: “Entra ano, sai ano, a candidata é a Cláudia Laitano”. Outra: “Votar bem é uma delícia, quando a candidata é a Letícia”. Cultural: “O futuro realidade é, quando votamos no Carlos André”. Grandiosa: “Do futuro sobre o dorso, voto na Diana Corso”.
Esta deu um pouco de trabalho: “Candidato que não seja vetusto? Fischer, o Luís Augusto”. Uma que veio fácil: “Candidato varonil, é o grande Assis Brasil”. Ainda na área cultural: “Tranquilo e sereno, eu voto no Moreno”. Querem mais? “Em silêncio, sem barulho, trabalha o grande Tulio” e “Lépida e fagueira, triunfa Rosane de Oliveira”.
O espaço está terminando, e não cheguei sequer a um décimo dos candidatos que eu recomendaria, porque a RBS é um colossal reduto de talentos: faltou rádio, faltou tevê, faltaram os outros jornais. Ou seja, faltou ar. Quem diz isso é o Moacyr Scliar.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
30 de agosto de 2010 | N° 16443
FABRÍCIO CARPINEJAR
Estratégias de sedução
A mulher tem uma manha terrível, um ardil implacável de sedução. Qualquer macho sucumbe. Qualquer. Pode ser um diplomata, um gari, um doutor pela Sorbonne XXXV, um eletricista. Não foi criado um sistema de proteção; ainda somos presas fáceis.
É quando ela sussurra no ouvido que está sem calcinha. Mesmo que seja uma mentira, funciona. O sujeito engasga, extravia a linha de raciocínio, logo baba, perde a língua em ataque epiléptico. Experimentará um transe messiânico, tonteado com a revelação. Trata-se de um convite? Quem diz que não é maldade?
Toda mulher fala que está sem calcinha rindo, o que irrita sua vítima. O barbado buscará se certificar, espiando os joelhos, reparando nas dobras, com os olhos vidrados de um tarado. Não acreditará no milagre. Cometerá uma gafe, um escorregão, derrubará a cerveja na roupa, tropeçará no cadarço, praticará algo idiota como encará-la para avisar que irá ao banheiro. E voltará do banheiro duas vezes idiota porque ela sequer se levantou da cadeira.
É uma confidência imbatível que somente as mulheres têm direito. Se o homem declara que está sem cueca vai sugerir – no máximo – que é um porco. Não será nem um pouco excitante.
Mas, após décadas de experimento, desvendei uma estratégia masculina de efeito semelhante. Não faço churrasco, nunca convidei amigos para uma carne no final de semana. Meu pai se separou cedo da mãe e não me transmitiu o legado e a arte do sal grosso. Azar, não há churrasqueira que não sirva de lareira.
O que não abro mão é de comprar o saco de carvão no mercado. Nenhuma fêmea resiste a um homem carregando um saco de carvão. Com os dedos sujos de graxa. Apanhando a argola de papel com desleixo. Como se não fosse pesado.
Num único lance promocional, é oferecer as fantasias eróticas de mecânico e de peão. É mais imbatível do que escolher carne no açougue. Mais imbatível do que recusar a carne no açougue (a maior parte dos clientes discorda do açougueiro para se exibir ao mulherio).
Atravessar os corredores de laticínios e refrigerantes com um saco de carvão representa a suprema glória viril. Supera o óleo nos bíceps dos halterofilistas. É reconquistar o fogo. É se fardar completamente ao sexo.
Não precisa ser musculoso, apenas desalinhado. A cena depende de preciosos detalhes. Suje a calça na hora de pagar e não dê bola para mancha, provando que estaria disposto a rolar num barranco. Largue o pacote na esteira com um estrondo, para impor passionalidade. E pague com um maço bêbado de notas, retirado do bolso da frente. Não tire a carteira sob hipótese nenhuma, que seria uma atitude educada e fria.
Todo domingo, repito esse ato sagrado. Tenho um estoque de sacos no porão. É meu jeito de estar sem calcinha.
Uma segunda-feira gostosa e uma excelente semana.
30 de agosto de 2010 | N° 16443
PAULO SANT’ANA
São Paulo
Depois de me submeter a uma cirurgia plástica excelentemente sucedida, pelas mãos mágicas do médico Renato Viera, estou voltando hoje a escrever nesta coluna.
Antes da cirurgia, fui a São Paulo visitar meus netos e seus pais. E, lá estando durante quatro dias, pude observar mais profundamente o milagre brasileiro que representa São Paulo.
Em primeiro lugar, existe lá o engarrafamento no trânsito que existe aqui.
Porém, o engarrafamento de lá é atenuado por uma medida espetacular tomada pelas autoridades: é permitido aos táxis, com passageiros, trafegar nos corredores de ônibus. Que maravilha!
Essa medida tinha sido cogitada em Porto Alegre, parece que está em estudos. Pois eu quero encorajar a EPTC daqui a adotar imediatamente a medida entre nós.
É quase redentora a medida. Não só alivia o trânsito nas faixas normais como também desafoga os passageiros dos táxis, que assim vão em frente sem os empecilhos do engarrafamento.
Sensacional a medida.
Mas ainda falta algo a dizer sobre a medida: em determinados horários, de fluxo mais moderado, é permitido a todos os veículos, absolutamente todos, trafegarem nos corredores de ônibus.
Ou seja, com criatividade, São Paulo vai lutando contra o engarrafamento, pelo que é imperioso que aqui obedeçamos a esta lição.
Mas tenho mais e muito para contar de São Paulo, cidade que só fui conhecer agora, pelo que me entrego a este embasbacamento caipira.
Vocês, meus leitores, não acreditam no que vi em São Paulo! Já falei aqui da dificuldade cada vez mais crescente de se estacionar em Porto Alegre.
Pois São Paulo demonstra aí também grande criatividade. Acontece que não é só nos restaurantes que os clientes entregam seus carros na portaria para manobristas.
Lá em São Paulo, todas as lojas térreas das grandes avenidas e das ruas menores usam manobristas. Quem vai às lojas fica descansado: pode sair de casa tranquilo, que não terá problema para estacionar. Na porta dos estabelecimentos, seu carro será entregue a um manobrista que o levará não sei para onde, eles sabem...
Mas não é esta uma grande ideia para revitalizar o comércio fora dos shoppings? E não é uma grande ideia para as lojas que não estão nos shoppings atualmente?
Luminosa ideia!
Vi um shopping novo, o Cidade Jardim, que penso não exista nada igual no mundo: todo o shopping é coberto por uma floresta de galhos e folhagens, um shopping ecológico.
E incrível: você marca hora num cinema desse shopping e assiste ao filme acomodado em poltrona de primeira classe de avião!
Devemos nos orgulhar de São Paulo, vi lá coisas do arco-da- velha. Em muitos itens, São Paulo bate de goleada a Nova York que eu conheci bastante.
Que cidade!
30 de agosto de 2010 | N° 16443
L. F. VERISSIMO
Outra carta da Dorinha
Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, sempre esteve envolvida com política, embora negue que fosse cabo eleitoral do Epitácio Pessoa. Ela confirma que carregou, sim, o Getúlio Vargas no colo, mas diz que ele já era presidente na ocasião.
À frente do grupo de pressão Socialaites Socialistas, que luta pela implantação no Brasil do socialismo na sua etapa final, antes da volta ao tzarismo, Dorinha chegou a ser cogitada como candidata a presidente da República. Foi descartada, justamente quando já tinha acertado com o PMDB todos os cargos que eles teriam no governo em troca do seu apoio, segundo ela, “porque queriam uma mulher, mas não mulher demais”.
Apesar disso, ela e seu grupo (Tatiana “Tati” Bitati, Susana (“Su”) Cata, Olenka (“Ó”) Minas Gerais e outras) continuam ativas, num trabalho de conscientização política da população visando às próximas eleições. No momento, por exemplo, fazem um seminário reunindo os seus “personal trainers”, para...
Mas deixemos que a própria Dorinha nos conte. Sua carta chegou, como sempre, escrita com tinta roxa em papel grená, perfumado com “Ravage Moi”, o único perfume do mundo que vem com um habeas corpus preventivo para o caso de prisão por atentado ao pudor.
“Caríssimo. Beijos disseminados. Como você sabe, todas as Socialaites Socialistas têm ‘personal trainers’ em diferentes estágios de evolução. O meu, Jorjão, é da era quaternária, quando apareceram os primeiros bíceps.
Cada uma de nós tem seu ‘personal’, mas fazemos intercâmbio, para escapar da rotina, que é a segunda maior inimiga de uma vida sexual saudável depois da comichão de fundo alérgico.
São todos eles bons rapazes, surfam, correm e fazem abdominais com muita inteligência, mas são inocentes em matéria de política. Tivemos que repetir a primeira aula do seminário, sobre o voto eletrônico e a máquina de votar, porque nem todos entenderam o conceito de ‘tecla’.
O Jorjão, especialmente, vem acompanhando com atenção os programas eleitorais e ainda não conseguiu compreender por que o Serra, que é candidato à Presidência, está fazendo a propaganda do Lula, que ele nem sabia que também é candidato à Presidência, enquanto o Lula apoia a Dilma para o mesmo cargo. Tenho tentado explicar, mas também me atrapalho, ainda mais quando ele começa a morder minha orelha. Da tua confusa Dorinha.”
domingo, 29 de agosto de 2010
FERREIRA GULLAR
Revolução na favela
Não duvidem se, dentro de poucos anos, os morros do Rio -hoje favelas- forem ocupados pela burguesia
A EXPULSÃO dos traficantes das favelas do Rio está causando mudanças inesperadas na vida daquelas comunidades. Era uma velha tese minha que a única maneira de acabar com o domínio dos traficantes nas favelas cariocas seria a polícia ocupá-las. Fazer incursões esporádicas não adiantava nada: a polícia chegava, eles fugiam; ela ia embora, eles voltavam.
Com a ocupação permanente pelas Unidades de Polícia Pacificadora, a coisa mudou. O traficante não é um guerrilheiro e, sim, um comerciante de drogas.
Se vive em guerra com seus concorrentes é porque, atuando à margem da lei, resolve suas pendengas, recorre ao tiro. A guerra entre traficantes e contra a polícia aterrorizava os moradores. Agora, com a expulsão deles, reina a paz.
A dominação das favelas pelo tráfico resultou na formação de verdadeiras empresas clandestinas que trocavam de gerente de acordo com seus interesses comerciais. Disso resultou que, no morro do Chapéu-Mangueira, no Leme, o gerente nascido ali foi substituído por outro, vindo de um morro da zona norte.
Ao chegar, escandalizou-se com os trajes da rapaziada, que andava de sunga e sem camisa. Investido da autoridade de chefe do tráfico, proibiu o traje sumário, chegando ao ponto de mandar surrar uma moça que o desobedeceu.
Só que ela era namorada de um assaltante, profissionalmente distinto dos traficantes. Ele tomou as dores da namorada, mobilizou o pessoal do morro e pôs para correr o gerente moralista. Coisa do passado, já que agora o Chapéu-Mangueira está pacificado.
E a paz, como a guerra, tem consequências. Por exemplo, conheço um pequeno comerciante que vendia roupas na favela do Pavão-Pavãozinho e cujos principais compradores eram os traficantes, que não podiam descer do morro para fazer compras nos shoppings. Com a expulsão deles, o comércio desse cara perdeu a freguesia e faliu.
Outra mudança advinda da pacificação foi o aumento dos aluguéis. No morro Santa Marta, em Botafogo, uma senhora mantinha um pequeno restaurante que lhe dava bons lucros porque o aluguel era barato. Agora, a dona do imóvel dobrou o preço, tornando quase inviável a manutenção do negócio.
E por aí vai. Como se sabe, as favelas, por seu exotismo, sempre exerceram verdadeiro fascínio sobre certo tipo de turista estrangeiro. Muitos deles, especialmente os europeus, faziam questão de se hospedar em casas de favelas, preferindo-as aos hotéis de Copacabana ou Ipanema. Agora, esse interesse aumentou, abrangendo aqueles que temiam os tiroteios de antes. Sem os tiroteios, fica só o folclore.
O resultado disso, no plano econômico, é que tem gente oferecendo grana alta pelos casebres dos favelados, que já estão sendo transformados em pousadas para turistas. Com isso, sobe ainda mais o preço dos aluguéis das casas nessas comunidades, que passam por rápida transformação.
Não duvidem se, dentro de uns poucos anos, os morros do Rio, que hoje são favelas, forem ocupados pela burguesia rica. Como dali se tem uma vista privilegiada da paisagem carioca, os casebres de hoje serão substituídos por mansões confortáveis e luxuosas. Os favelados virão morar conosco, aqui embaixo.
Mas isso não será para já, mesmo porque, além das mencionadas, há outras consequências resultantes da ação das UPPs. É que os traficantes, já expulsos das favelas da zona sul do Rio, estão invadindo outras favelas na zona norte ou do outro lado da baía.
Nem todos, porém; alguns empregados do tráfico, agora sem o ganho que a droga lhes provia, tornaram-se assaltantes, o que dá para perceber no recente aumento de casos registrados em vários bairros do Rio.
O número de assaltos, conforme a polícia, tende a crescer, na medida em que novas favelas forem ocupadas pelas unidades pacificadoras. Nas últimas semanas, a ocupação já se deslocou para morros da zona norte, como o do Salgueiro. O número de crimes dessa natureza tende a aumentar, agravando o problema da segurança na cidade.
Mas pode ser que alguns deles, em vez de se voltarem para um novo tipo de crime, optem pela volta à legalidade, como ocorreu com um antigo gerente do tráfico no Pavão-Pavãozinho, que preferiu tornar-se guardador de carros numa rua de Copacabana.
JOSÉ SIMÃO
Ueba! Dilma tá encapetada!
E sabe por que o hilário eleitoral tem legenda? Pra gente entender os projetos do Maguila!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!
Indecisos e indecentes, votem em mim pra presidente. Ônestidade! Ônradez! E Ó PROCÊIS! Tô fazendo o caminho inverso: de humorista a político. Pelo Partido da Genitália Nacional, o PGN!
Prometo criar o Bolsa Hortifruti: todo brasileiro terá direito a uma mulher fruta. Vota no PGN, não complica! Vai deixar de votar no Simão e votar no Tiririca?
Aliás, o Tiririca virou técnico do São Paulo. Pior que tá não fica!
E o Serra vai reverter a situação. Vai ficar gritando pra Dilma: "Sai, Lula, sai desse corpo que não te pertence". E a voz do Lula: "NÃÃÃÃO SAAAIO! É MEU!".
A Dilma tá parecendo o Kung Fu Panda. A Marina, uma tartaruga sem casco. O Serra só ganha em três capitais: Higienópolis, piscina do Pinheiros e Country Club do Rio!
E o OTÁRIO ELEITORAL! Vadão do Jegue do Dente de Ouro. O dente de ouro é do Vadão ou do jegue? Voto no jegue!
E sabe por que o hilário eleitoral tem legenda? Pra gente entender os projetos do Maguila! E sabe como se faz um frango a Maluf? Primeiro, você rouba o frango. Depois faz do jeito que quiser mesmo!
E o Quércia? Tô adorando o Quércia. Falando na língua da Xuxa: quero xer o xenador do futuro.
Eu vou doar uma dentadura seminova pro Quércia. Tá assobiando mais que a cobra do Mogli!
E assaltaram a gramática: "O PT tirou 30 milhões da POBRESA". A pobresa não é mais pobrema.
E essa: "Havanir, usarei minha força e IDENPENDÊNCIA!". Aí ela apareceu com os olhos esbugalhados, gritando: "Meu nome é Havanir"! Aí corri e me tranquei na cozinha. E ainda tem quem vai pro Playcenter e paga pra levar susto.
Da Bahia, candidatos pro PGN: Beto do Pau Miúdo e Pinto de Casa Nova. São bairros de Salvador. E nada como pinto de casa nova.
E uma candidata começou o comício "Povo de Pau Miúdo". E um cara gritou: "Peraí, madame, até aqui tem exceção"!
E na Bahia tem um candidato chamado Bomba. E sabe qual o slogan dele? Bomba no Congresso Nacional. E a manchete do Sensacionalista: "Clínica oferece coma induzido até o fim da eleição". Eu quero!
A situação tá ficando psicodélica! Parece que o Brasil tomou um ácido no café da manhã. Ainda bem que nóis sofre, mas nóis goza. Que vou pingar meu colírio alucinógeno!
simao@uol.com.br
DANUZA LEÃO
Só pra saber
Eu queria saber a posição de Serra, Dilma e Marina sobre as relações Brasil-Irã, se são contra planejamento familiar
POSSO SER sincera? Não aguento mais essa eleição; que campanha mais antiga.
Não é possível que com televisão, internet, twitter e outras coisas que nem sei o nome ainda existam candidato/a andando pelas favelas para mostrar que é amigo dos pobres, beijando criancinhas e se abraçando às pessoas mais carentes para conquistar o voto dos eleitores.
E procurando ser simpáticos; de alguns deles nunca se soube que tinham dentes, pois jamais os mostraram; agora, respondem a perguntas sobre saneamento básico com um sorriso tão falso que dá enjoo. Tomara que passe logo essa moda de marqueteiro e que as campanhas passem a ser de acordo com o século 21: mais perguntas entre os candidatos feitas por jornalistas, e que o voto não seja obrigatório.
E que houvesse mais tempo para as respostas, com direito, ao que perguntou, de interromper para dizer "mas o senhor/senhora não está sendo clara na sua resposta". Eu queria saber a posição de Serra (e não do Zé), Dilma e Marina sobre as relações do Brasil com o Irã, Venezuela e Cuba, se são contra ou a favor do planejamento familiar, contra ou a favor do aborto (que Dilma enrola e não responde).
E já que Lula mudou de ideia e disse que vai viajar pelo Brasil todo para ver o que fez e o que não fez (e dizer a Dilma "faça, minha filha"), eu queria saber quem vai pagar as viagens -ou será que sua pupila vai emprestar o avião que custou 57 milhões de dólares para ele achar que ainda é presidente?
E se Dilma for eleita, eu quero ver quem vai mandar mesmo no país, se ela ou ele. E quando brigarem?
Outra coisa que eu queria saber é o que tem a dizer o ministro Nelson Jobim sobre a fusão (?) entre a Lan e a TAM. E por falar em aviação, seria a hora de exigir das companhias aéreas que o espaço para cada passageiro, dentro dos aviões, fosse aumentado; assim como as dimensões máximas da bagagem que se pode levar -na cabine ou despachadas- , têm que ser obedecidas, bastaria aumentar dez centímetros a mais na frente, para esticar as pernas, e mais dez de lado, para podermos nos mexer e não desembarcar com a coluna em frangalhos, apenas um problema de direitos humanos.
Se o ministro Jobim um dia pegar um avião de carreira, como a maioria dos mortais, vai saber do que estou falando. E aproveitando, o som do aeroporto Santos Dumont é caótico; com o chão de mármore, paredes e teto de vidro, não há cristão que entenda o que estão falando.
Passando para assuntos mais leves, eu também queria saber por que nem um só fio de cabelo de Dilma sai do lugar. Que spray será esse? De silicone?
Voltando a coisas mais sérias, eu também queria saber por que não se fala mais da compra dos aviões à França, Suécia ou Estados Unidos; esse assunto morreu, por que, não se sabe. E queria saber também em quem vou votar para senador, deputado federal e deputado estadual; será que alguém sabe?
E queria saber também sobre as informações que somos obrigados a dar ao censo, teoricamente sigilosas; podemos confiar no IBGE, ou elas também vão vazar?
danuza.leao@uol.com.br
ELIANE CANTANHÊDE
Ideia fixa
BRASÍLIA - De Lula: "Eu acho que o empresariado aprendeu muito, o governo aprendeu muito, os sindicalistas aprenderam muito. Acho que a imprensa vai precisar aprender um pouco ainda, porque nunca vi gostar tanto de notícia ruim".
Tradução: ele "deu um jeito" nos que poderiam incomodar. Deveria ter incluído bancos, movimentos sociais, a direita e a oposição. Botou uns no bolso e todos no seu devido lugar: o lugar de dizer amém.
Só não conseguiu ainda "ensinar" a imprensa. Mas avança nessa direção, depois de arrastar Dilma para a Presidência e os aliados em massa para os governos estaduais e para o Congresso, onde a previsão é de uma maioria como nunca antes neste país. Exceto com a Arena, na ditadura.
Os escândalos contra tudo e todos surgiram da parceria do Ministério Público, da imprensa, de funcionários exemplares (ou contrariados) e do PT, até desembocarem em CPIs. No poder, o PT tentou explodir os velhos parceiros. E as CPIs?
Já no primeiro ano, 2003, o PT lançou a Lei da Mordaça contra o MP. Depois, o Conselho de Jornalismo contra a imprensa e, por fim, o projeto contra funcionário que fala ou vaza documento. Não vingaram, mas devem estar adormecendo por trás das investidas de Lula.
Ele é um fenômeno sob vários aspectos. Tem 80% de popularidade, sua candidata caminha para comemorar uma votação histórica, e o novo governo vai assumir com a perspectiva de mais de 7% de crescimento econômico. Logo, com tudo para dar certo. Basta não errar.
Em vez de estar leve, feliz, deliciando-se diante da estrondosa vitória que se avista, Lula está armado, atiça os cães da internet e mira a imprensa, para desqualificar o último reduto do contraditório, da crítica, da investigação.
O que pretende com isso? Unanimidade? Nelson Rodrigues dizia que a unanimidade é burra. Em política, tende a ser perigosa. Bem não faz, e pode fazer muito mal. Inclusive subir à cabeça.
sábado, 28 de agosto de 2010
29 de agosto de 2010 | N° 16442
MARTHA MEDEIROS
Em que esquina dobrei errado?
Quanta gente perde a vida que almejou por ter virado numa esquina que não conduzia a lugar algum?
Aconteceu em Paris. Estava sozinha e tinha duas horas livres antes de chamar o táxi que me levaria ao aeroporto, de onde embarcaria de volta para o Brasil. Mala fechada, resolvi gastar esse par de horas caminhando até a Place des Voges, que era perto do hotel. Depois de chuvas torrenciais, fazia sol na minha última manhã na cidade, então Place des Voges, lá vou eu. E fui.
Sem um mapa à mão, tinha certeza de que acertaria o caminho, não era minha primeira vez na cidade. Mas por um desatino do meu senso de orientação, dobrei errado numa esquina. Em vez de ir para a esquerda, entrei à direita. Mais adiante, aí sim, virei à esquerda, mas não encontrei nenhuma referência do que desejava. Segui reto: estaria a Place des Voges logo em frente?
Mais umas quadras, esquerda de novo. Gozado, era por aqui, eu pensava. Não que fosse um sacrifício se perder em Paris, mas eu parecia estar mais longe do hotel do que era conveniente. Mais caminhada, e então, várias quadras adiante, não foi a Place des Voges que surgiu, e sim a Place de la Republique. Eu tinha atravessado uns três bairros de Paris, mon Dieu.
Perguntei a um morador o caminho mais curto para voltar à rua onde ficava meu hotel, e ele me apontou um táxi. Teimosa, pensei: ainda tenho um tempinho, voltarei a pé.
E assim foram minhas duas últimas horas em Paris, uma estabanada andando às pressas, saltando as poças da noite anterior, olhando aflita para o relógio em vez de flanar como a cidade pede.
Cheguei bufando no hotel, peguei minha mala e, por causa da correria, esqueci no hall de entrada uma gravura linda que havia comprado e que planejava trazer em mãos no voo. Tudo por causa de uma esquina que dobrei errado.
Foram apenas duas horas inúteis e cansativas, e duas horas não é nada na vida de ninguém. Mas quanta gente perde a vida que almejou por ter virado numa esquina que não conduzia a lugar algum?
Alguns desacertos pelo caminho fazem a gente perder três anos da nossa juventude, fazem a gente perder uma oportunidade profissional, fazem a gente perder um amor, fazem a gente perder uma chance de evoluir.
Por desorientação, vamos parar no lado oposto de onde nos aguardava uma área de conforto, onde encontraríamos pessoas afetivas e uma felicidade não de cinema, mas real. Por sair em desatino sem a humildade de pedir informação a quem conhece bem o trajeto ou de consultar um mapa, gastamos sola de sapato à toa e um tempo que ninguém tem para esbanjar.
Se a vida fosse férias em Paris, perder-se poderia resultar apenas numa aventura, mesmo com o risco de o avião partir sem nós.
Mas a vida não é férias em Paris, e aí um dia a gente se olha no espelho e enxerga um rosto envelhecido e amargurado, um rosto de quem não realizou o que desejava, não alcançou suas metas, perdeu o rumo: não consegue voltar para o início, para os seus amores, para as suas verdades, para o que deixou pra trás. Não existe GPS que assegure se estamos no caminho certo. Só nos resta prestar mais atenção.
Um ótimo domingo para você e uma semana gostosa, esta que encerra agosto para dar lugar a setembro.
29 de agosto de 2010 | N° 16442
MOACYR SCLIAR
Uma estranha, e admirável, mulher
A vida de Florence Nightingale, a criadora da moderna enfermagem, daria um romance
Este agosto assinala o centenário de falecimento de uma mulher cuja trajetória foi absolutamente fascinante. Estamos falando de Florence Nightingale (1820 1910), a criadora da moderna enfermagem (por causa dela este é também o Ano Internacional da Enfermagem, uma categoria que merece entusiásticos aplausos), e cuja vida, como se costuma dizer, daria um romance.
Era de família próspera; os Nightingale viajavam constantemente pela Europa, o que aliás explica o seu nome: nasceu em Florença, a segunda das duas filhas do casal. Os pais eram pessoas religiosas, gente tradicional: Florence estava destinada a receber uma boa educação, a casar com um cavalheiro de fina estirpe, a ter filhos, a cuidar da casa e da família. Mas logo ficou claro que a menina não se conformaria a esse modelo.
Era diferente; gostava de matemática, e era o que queria estudar (os pais não deixaram). Aos 16 anos, algo aconteceu: Deus falou-me escreveu depois e convocou-me para servi-lo. Um episódio que poderia caracterizá-la como uma mística, mas, diz o historiador Lytton Strachey, a moça estava longe de ser uma beata desligada da realidade.
Servir a Deus significava, para ela, cuidar dos enfermos, e especialmente dos enfermos hospitalizados. Naquela época, os hospitais curavam tão pouco e eram tão perigosos (por causa da sujeira, do risco de infecção) que os ricos preferiam tratar-se em casa. Hospitalizados eram só os pobres, e Florence preparou-se para cuidar deles, praticando com os indigentes que viviam próximos à sua casa.
Viajou por toda a Europa, visitando hospitais. Coisa que os pais não viam com bons olhos: enfermeiras eram consideradas pessoas de categoria inferior, de vida desregrada. Mas Florence foi em frente e logo surgiu a oportunidade para colocar em prática o que aprendera.
Naquela época, Inglaterra e França enfrentavam Rússia e Turquia na guerra da Crimeia. Sidney Herbert, membro do governo inglês e amigo pessoal, pediu-lhe que chefiasse um grupo de enfermeiras enviadas para o front turco, uma tarefa a que Florence entregou-se de corpo e alma: cuidava incansavelmente dos pacientes, percorrendo enfermarias à noite; era a “dama da lâmpada”, segundo a expressão do Times de Londres.
Florence providenciava comida, remédios, agasalhos, além de supervisionar o trabalho das enfermeiras. Mais que isso, fez estudos estatísticos (sua vocação matemática enfim triunfou) mostrando que a alta mortalidade dos soldados resultava das péssimas condições de saneamento. Seus méritos foram reconhecidos, e ela recebeu uma importante condecoração da rainha Vitória.
Isso tudo não quer dizer que Florence fosse, pelos padrões habituais, uma mulher feliz. Para começar, não havia, em sua vida, lugar para ligações amorosas. Cortejou-a o político e poeta Richard Milnes, Barão Houghton, mas ela rejeitou-o. Ao voltar da guerra, algo estranho lhe aconteceu: recolheu-se ao leito e nunca mais deixou o quarto.
É possível, e até provável, que isso tenha resultado de brucelose, uma infecção crônica contraída durante a guerra; mas havia aí um óbvio componente emocional, uma forma de fuga da realidade. Contudo – Florence era Florence – mesmo acamada, continuou trabalhando intensamente.
Colaborou com a comissão governamental sobre saúde dos militares, fundou uma escola para treinamento de enfermeiras, escreveu um livro sobre esse treinamento.
Estranha, a Florence Nightingale? Talvez. Mas estranheza pode estar associada a qualidades admiráveis. Grande e estranho é o mundo, é o título de um livro do romancista Ciro Alegría; grandes, ainda que estranhas, são muitas pessoas. E se elas têm grandeza, ao mundo pouco deve importar que sejam estranhas.
29 de agosto de 2010 | N° 16442
PAULO SANT’ANA | ALEXANDRE BACH (INTERINO)
Oito de ouros
De todos os meus mestres no jornalismo, sugo o máximo para criar minha definição do que é notícia. Os conceitos que já colhi, e ainda colho, são muitos, mas o que mais gosto foi um que li: jornalismo é contar uma boa história de forma envolvente.
Penso muito nisso, principalmente nesse tempo atual, quando a internet nos obriga erradamente a discutir mais a forma do que o conteúdo. Seja no passado, seja hoje, seja daqui a 300 anos, jornalismo é contar uma boa história. O que vai mudar é como a gente vai passá-la adiante.
Tento alertar a nova geração disso, que as pessoas não existem na internet. As histórias delas se refletem lá, são discutidas no mundo digital, mas ocorrem nas nossas ruas, nas nossas casas, entre nossos amigos. Tudo na vida real.
É a vida real a matéria-prima que precisamos remexer para cavar as boas histórias. Mas não é uma tarefa difícil: bastar estar com os olhos voltados para o mundo, pois, quando menos se espera, 33 homens ficam soterrados entre galerias de uma mina, no meio de um deserto, abaixo de 700 metros de areia. Estão enterrados vivos no Chile.
Isso é uma boa história.
Primeiro, fiquei feliz quando os primeiros sinais de vida brotaram do fundo da terra. Eles estão vivos e bem, como informou o bilhete escrito à mão em tinta vermelha num pedaço de papel. Segundo, fiquei surpreso com o primeiro pedido. Queriam escovas de dentes. Quem vai lembrar da higiene bucal numa situação dessas? Terceiro, fiquei estarrecido com a primeira manifestação do grupo: unidos, os mineiros cantaram o hino do Chile. Quem vai pensar na pátria numa hora dessas?
Costurar todos esses detalhes intrigantes de uma jornada forçada ao centro da terra vai render uma boa história. Tanto quanto a dos sobreviventes dos Andes, o grupo de 16 rapazes uruguaios que em 1972 sobreviveu a 71 dias na neve andina comendo carne dos próprios colegas mortos no acidente aéreo que os isolou lá.
Do árido deserto chileno, além de uma grande história jornalística, vai nascer uma inigualável lição de vida. Já avisados, os mineiros se disseram conformados com o fato de o resgate demorar quatro meses para chegar. Provavelmente, vão passar o Natal entre a poeira e a escuridão do subsolo desértico, e não no calor de suas famílias. E quando o Ano-Novo chegar, vão renascer das entranhas da terra, depois de uma gestação em um útero sufocante, mas forrado de esperança.
Os mineiros chilenos vão nos legar a importância da perseverança. Lembrei de um momento que vivi, dia desses, num desses eventos promocionais. Um mágico que fazia parte da alegria toda se aproximou e me pediu que separasse uma carta do baralho. Peguei um oito de ouros. Assinei na face com uma caneta preta.
Pois o mágico fez o oito sumir duas vezes e aparecer no meio do baralho. Por fim, a carta surgiu no bolso interno de seu casaco, dentro de uma carteira que estava dentro de outra carteira. Não me perguntem como.
Mandei fazer um quadro do oito de ouros e tenho aqui na minha sala, ao alcance dos olhos e do coração. Serviu como uma lição para mim, e certamente é a mesma que embala a vontade de viver dos mineiros chilenos neste momento. Na vida, a gente consegue tudo. Basta usar as mágicas certas.
Aviso aos navegantes: nosso mágico maior volta amanhã.
29 de agosto de 2010 | N° 16442
DAVID COIMBRA
Muito antes dos dinossauros
Há pouco menos de 14 bilhões de anos tudo no universo era praticamente nada. Um pontinho, só, e muito, muito menor do que este que ora pingarei: . Então, toda aquela energia concentrada, por algum motivo, CATABLOM!, explodiu. Era o Big Bang. As coisas estavam começando.
Passaram-se 9 bilhões de anos, um pouco mais. Aí foi a vez de uma supernova explodir na Via Láctea. Uma das lascas dessa supernova transformou-se em uma estrela de estatura mediana, o Sol. Isso aconteceu há quatro bilhões e 600 milhões de anos.
Pelas estimativas dos cientistas, o Sol continuará ardendo por mais cinco bilhões e 400 milhões de anos. Depois, como todo o resto do Universo, esfriará. Quando o Sol se apagar, a vida por aqui ficará meio difícil, prepare-se, compre velas.
Após a criação do Sol, transcorreram alguns milhões de anos. Côsa pôca, como se diz no Alegrete. E a Terra surgiu de um daqueles pedaços de estrela que andavam pelo espaço. No princípio, não era um bom lugar para se morar.
Não havia chão, nem água. O planeta todo era uma bola de fogo e lava borbulhante. Com todo aquele calor, a água não se condensava. Permanecia na atmosfera, em forma de nuvens de vapor. O tempo prosseguiu assim, horrível, por uns 500 milhões de anos.
Aí piorou. Como a Terra esfriou um pouquinho, começou a chover. Quando chove um fim de semana, a gente se irrita, não é? Imagine que naquela época choveu durante MILHÕES de anos. Tempestades violentas, elétricas, paredes d’água desabando e formando, enfim, os oceanos.
Ao mesmo tempo, as placas de terra recém-constituídas se moviam, liberando gases das entranhas do planeta de forma extremamente ruidosa, fenômeno que os cientistas, demonstrando todo o seu bom gosto, chamam de “O Grande Arroto”.
Enquanto isso tudo acontecia, a Terra foi esfriando e assim a crosta da superfície aos poucos se solidificou. As rochas mais antigas foram descobertas na Groenlândia. Elas têm 3,8 bilhões de anos de idade. Por essa época, raios duplos, raios triplos, mil vezes raios desabavam nos jovens oceanos. As descargas elétricas causaram uma reação inesperada naquela sopa química primeva: deram origem às primeiras formas de vida. Não faz muito, os cientistas identificaram um fóssil de bactéria com 3,5 bilhões de anos.
A partir desse ponto, as bactérias tomaram conta da Terra. Não havia um milímetro quadrado que não estivesse completamente coberto de bactérias pegajosas, um nojo. Mas foram essas bactérias que fixaram no ar elementos indispensáveis a outras formas de vida. Por outros bilhões de anos elas fermentaram e se reproduziram, até que, deste processo, surgiram as plantas pioneiras. O mundo vegetal é jovem: tem 460 milhões de anos.
Agora, tudo foi mais rápido. Há 250 milhões de anos, o mundo inteiro estava coberto de samambaias gigantes, maiores do que árvores, impossíveis de se acomodar em um vaso na sala. Mais ou menos por esse tempo, os animais marinhos deram um jeito de subir à terra firme. O primeiro deles, o número 1, foi o querido... tatuzinho! Olhe para um deles na areia na próxima vez que você for a Pinhal. Era assim o seu tataratataratataratataratataratataratataratataratataravô.
Os peixes eram os donos da Terra, portanto. Você já viu um peixe transando? É assim: a peixa nada para algum lugar e deposita ali os seus óvulos, um monte deles. Aí o peixo nada até lá, deita o esperma em cima dos óvulos e vai embora. Pronto. Fim. Consummatum est. É por isso que não existe nenhum canal de sacanagem de peixe na TV a cabo.
Quando os anfíbios evoluíram e se tornaram répteis é que os machos resolveram depositar o esperma dentro da fêmea, e não fora. Graças aos répteis, pois, a Humanidade criou calcinhas de rendinha, o conjunto minissaias & botas, toda a teoria psicanalítica de Freud e as tatuagens da Megan Fox.
Os répteis evoluíram tanto, aqueles serelepes, que se transformaram nos dinossauros e tomaram conta do mundo. Mas há 65 milhões de anos um meteoro de 200 quilômetros de largura caiu no México, tirou a Terra do eixo e os dinos se extinguiram.
A essa altura, Pangeia, que era o único bloco de terra do planeta, já havia se rompido. Os continentes estavam separados irremediavelmente e nós fomos condenados a ir para a Europa de avião.
O primeiro hominídeo foi dar as caras no planeta há 4,5 milhões de anos. O homo erectus há 1,8 milhões de anos. E a nossa atual forma humana, o homo sapiens, há 150 mil anos. Destes, 140 mil anos foram de caça, coleta e nomadismo. A Civilização existe há 10 mil anos, nada mais. O Brasil há 510. Porto Alegre há menos de 300. O Campeonato Brasileiro começou em 1971. O sistema de pontos corridos desde 2003.
Pense nisso tudo. Pense nessa grande história. Pense em perspectiva. Que importância tem se um time for rebaixado em 2010?
28 de agosto de 2010 | N° 16441
NILSON SOUZA
A manchete da vida
Um bilhete pode ser uma lição de jornalismo: “Estamos bien en el refugio los 33”.
O mineiro chileno que escreveu esta mensagem, mesmo sem ter usado pontos e vírgulas, respondeu em meia dúzia de palavras a todas as questões essenciais da elaboração de uma notícia. Quem? Os 33 trabalhadores soterrados. Quando? Naquele momento. “Estamos”, mais do que presente do indicativo, soou como um grito de fraternidade.
Como? Bem, todos bem – a melhor informação que o mundo poderia receber. Onde? No refúgio da mina de cobre. O quê? Um verdadeiro milagre. Por quê? Porque eles já estavam enterrados havia 17 dias, a 700 metros de profundidade, sem nenhum contato com as equipes de resgate.
Esta viagem ao centro da Terra, ao contrário da célebre aventura escrita por Júlio Verne no século 19, parecia sem volta. E ainda não se tem certeza de que aqueles homens sairão do buraco como entraram, pois os especialistas calculam que a nova escavação levará meses para ser concluída.
Mas o fio de Ariadne da tecnologia já indicou o caminho e trouxe para a superfície uma manchete de vida, manuscrita num papel amassado, mas com potencial para multiplicar a esperança de familiares e amigos.
Agora, o mundo inteiro olha para o deserto de Atacama, onde homens e máquinas trabalham arduamente em tempo integral para abreviar o drama dos entocados. Pelo que se sabe, eles já estão recebendo alimentação adequada, orientação médica e até cartas de parentes, mas ainda não sabem que a libertação pode demorar cerca de quatro meses.
Ainda parece ficção científica: três dezenas de pessoas transformadas em tatus, tendo que conviver por tanto tempo numa caverna estreita, escura e pouco arejada.
Acho que é uma situação mais claustrofóbica do que a dos astronautas que passam semanas na estação orbital. Lá em cima, pelo menos, a vista deve ser melhor.
No mundo de Hades – o deus da mitologia grega que governa os subterrâneos e os mortos –, não há muito o que fazer. Mergulhar nas profundezas do planeta em busca de minérios equivale ao sortilégio mítico de comer as sementes de romã oferecidas pelo senhor das profundezas a Perséfone – que dele enamorou-se e ficou presa nas cavernas.
Mas até ela recebeu permissão para emergir na primavera, quando tudo floresce e o sol ilumina a aventura da vida.
Esperemos que a próxima manchete seja ainda mais sintética: “Volvemos bien, los 33”.
28 de agosto de 2010 | N° 16441
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES
Jayme (2)
Se pensarmos no enquadramento de Jayme Caetano Braun em termos de poesia, abstraídas essas considerações iniciais, fica muito difícil, porque ele percorreu toda a gama de definições. Foi lírico, sem jamais fazer declarações de amor.
Foi épico, sem cair no mero discurso patriótico. Foi engraçado, sem cair na vulgaridade cômica. Foi profundo, sem cair na filosofia galponeira. Foi místico, sem cair na religiosidade dos beatos. O que ele foi mesmo – único, incomparável, inimitável – foi o payador.
Todo mundo conhece Jayme Caetano Braun. Mas ninguém conhece Jayme Caetano Braun. Nós apenas, pelos seus versos, intuímos, imaginamos como terá sido a vida desse gaúcho singular. Agora aqui está desfeito o mistério.
Nei Fagundes Machado, que conviveu durante muitos anos com Jayme Caetano Braun (foram colegas de trabalho durante 10 anos no extinto IPASE) manteve com o payador uma amizade e uma admiração recíprocas.
O próprio Jayme sempre dizia que o melhor intérprete de suas poesias era o Nei. Foram companheiros de truco e de encontros em que a poesia gauchesca era a tônica. E agora o Nei resolveu contar em um livro que estava fazendo falta tudo o que sabe sobre a vida do poeta.
Pesquisou profundamente até descobrir o que não sabia para completar o painel definitivo de uma biografia que faltava. Mas não é uma simples biografia. É muito mais do que isso: é um canto de louvor ao payador missioneiro, a tudo o que ele representava em vida e sobretudo ao que representa ainda depois que partiu.
É um amigo falando de outro amigo? É. Mas é também um poeta falando sobre outro poeta.
28 de agosto de 2010 | N° 16441
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES - INTERINO
Ela se chama Tieta
Andei lendo que a irracionalidade está na moda de novo. Atitudes aparentemente não sensatas, não comandadas pelo que seria a razão, movem a inventividade, a ciência, as artes, as relações humanas. É uma conversa antiga, dessas que vão e voltam. Eu convivi por muito tempo com uma tentação irracional por culpa das minhas origens fronteiriças. Lembrei disso agora que está começando a Expointer.
Queria um dia chegar a um leilão, de boina, jaqueta campeira uruguaia e calça frisada, me abancar e comprar uma égua crioula. Não qualquer uma, mas a estrela do remate. Seria minha loucura da maturidade.
Disputaria um animal lance a lance com vários pretendentes. Dou mais 3 mil, dou mais 5 mil e dou mais 10 mil. Até ouvir o leiloeiro bradar: o comprador da égua Tieta da Santa Angélica é o senhor Alejandro Castiglione Martinez de Reyles, do Uruguai.
Usaria pseudônimo. Don Alejandro seria parte da fantasia. Não me interessa que saibam quem eu sou. Me interessaria captar os olhares de admiração. Ouvir os aplausos que fecham os grandes negócios. Só me identificaria na hora de pagar.
E pagaria com cheque, para ter o prazer de preencher por extenso, lentamente: noventa e oito mil e seiscentos reais. Como não detenho ações da Vale ou da Petrobras, minha irracionalidade tem limites.
Dia desses, conversei sobre isso com o Décio Guerreiro de Lemos. Décio faz remates desde guri, quando ajudava o pai, seu Fidelcino, primeiro leiloeiro lá de Vacaria. Faz leilão, bate martelo, e também faz pista.
Fica ali na volta dos compradores pegando os lances. Pois o Décio me disse que essa compra no impulso está cada vez mais rara. Chamavam de compra no uísque com pagamento na mineral. Compravam na euforia e pagavam na ressaca.
E me contou que o comprador de gado vai na razão, é calculista. O comprador de cavalo segue a emoção, se apaixona pelo bicho. Dá um tchan. O Décio me presenteou com um calendário da Cabanha Santa Angélica e senti o tchan quando vi a foto da égua Tieta.
Uma zaina colorada de cabeça empinada, arrogante. A Tieta é uma obra de arte. Tem três patas brancas. Só uma pata, a dianteira direita, é zaina. Parece ter sido pintada pelo Velázquez. Quantos garanhões já suspiraram por Tieta?
Eu, dono de Tieta. Então pensei nos aplausos, e o Décio me alertou. Nem sempre é assim. Me disse que certa vez o fazendeiro Geraldo Bordon comprou tudo que havia à venda e foi vaiado. Esculhambou com a brincadeira. Um remate, como se dizia antigamente, é um ritual. O Décio, que o chefe dele, o Marcelo Silva, chama de Gordinho, vira adrenalina pura num leilão. Sente-se um ator. Aquilo é o meu palco, me disse. E ficou com cara de guri chorão quando falou do seu Fidelcino.
A prosa boa, com Tieta ali nos olhando, quase mexeu com minha irracionalidade. Mas não me animei a perguntar quanto custaria a égua. Estou com o calendário em casa, ao lado do computador. A página com a foto da zaina é do mês de junho de 2011. Os outros meses que esperem. O tempo é coisa para gente racional demais.
Pelos mails que recebi, não querem a volta do Ronaldinho para o Grêmio. Está bem assim. Fiquemos com o que temos. Até o sofrimento vicia.
Ao fazer e refazer a lista dos parceiros do tempo de Livramento ontem, deixei de fora, numa barbeiragem, o nome de Wolmer Jardim. Era o primeiro da lista. Tua cidade adotiva pede socorro, compadre.
RUY CASTRO
Fuga para o vencedor
RIO DE JANEIRO - Em 1984, quando se estabeleceu que Tancredo Neves e Paulo Maluf disputariam a presidência no Colégio Eleitoral (formado pelos deputados e senadores), o quadro parecia óbvio.
Tancredo atrairia os democratas, os patriotas, os que queriam o Brasil de volta para fazer dele um novo país. Com Maluf ficariam as raposas, os fantasmas da velha ordem, os oportunistas, os que se locupletaram com os militares no poder.
Ou seja, Tancredo atrairia o voto ideológico; Maluf, o fisiológico. E, como o Congresso já era então um viveiro de fisiológicos, não seria surpresa se Maluf vencesse.
Mas, em poucas semanas, quando ficou claro que o povo, esgotado por 21 anos de ditadura, queria respirar, eles decidiram que Tancredo deveria ganhar. Donde deu-se a maciça migração de votos. A 15 de janeiro de 1985, Tancredo foi eleito por massacrantes 480 votos contra 180 de Maluf. O que acontecera? O Colégio Eleitoral ficara súbita e corajosamente ideológico?
Não, era o contrário. Os fisiológicos é que abandonaram seu mentor e se grudaram naquele que despontava como vitorioso. A equação se invertera. Com Maluf, ficaram os malufistas sinceros e radicais -logo, ideológicos. Já Tancredo assimilou todos os demais: as raposas, os fantasmas da velha ordem, os oportunistas etc., assim como já assimilara José Sarney como seu vice.
O mesmo está acontecendo hoje, com a diferença de que a eleição é direta. Ao sentir o vento soprar para Dilma Rousseff, pessoas que normalmente estariam ao lado de José Serra têm se esmerado no contorcionismo a fim de se aproximarem da candidata de Lula. É a fuga para o vencedor. A cada ponto conquistado nas pesquisas, Dilma terá mais dinheiro, comícios, palanques, siglas e aliados do que Serra.
A Serra, no dia 3 de outubro, restará contar os amigos que lhe restaram -os que não se juntaram à hemorragia.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
27 de agosto de 2010 | N° 16440
DAVID COIMBRA
A capital da muquiranagem
Eu mesmo quase nunca penso no Piauí. Ontem à noite, partilhava chopes cremosos e dourados e gelados com amigos. Cinco horas de charla e libação. E ninguém citou o Piauí. Nem nos jornais, nem na rádio, na TV, nada. Zero. Traço.
Jamais tenho notícias do Piauí. Não recordo de William ou Fátima algum dia terem pronunciado a palavra Piauí antes da novela. Não devem ocorrer tragédias por lá, suponho. O que será que acontece nas profundezas do Piauí?
Garanto que nossos gaúchos que tão bem sabem entoar o hino rio-grandense, que se ufanam de suas tradições pampianas e que se exibem dizendo que este é o Estado mais politizado e alfabetizado e bibibi, garanto que esses gaúchos fazem pouco do Piauí.
Pois lhes darei uma notícia: sabiam que há sete escolas de Teresina, capital do Piauí, mais bem classificadas no Enem do que qualquer escola de Porto Alegre, capital de todos os gaúchos? Eu disse SETE.
Mais: no país, há 184 escolas mais bem classificadas do que a primeira de Porto Alegre, o Colégio Israelita. Entre essas, escolas da Juazeiro do Norte, do Padim Ciço; do pequeno Cachoeiro, do Rei Roberto; de Ilhéus, de Jorge Amado; além de Conselheiro Lafaiete, Itatiba, Valinhos, Avaré, Alfenas, Ipirá, Simões Filho, Três Marias e tantas e tantas.
Surpreso? Eu não. Pelo seguinte: porque sei que, no Rio Grande do Sul, os partidos políticos são contra a meritocracia no ensino. Porque sei que Porto Alegre, que já foi a terceira cidade do Brasil, hoje é a 12ª. Porque ando pela cidade pichada, depredada e malcuidada. Aponte uma rua de Porto Alegre que não tem buraco e, como prêmio, você poderá ver o pôr do sol no Guaíba inteiramente de graça.
Com que se preocupam os administradores de Porto Alegre quando vão realizar uma obra? Em primeiríssimo lugar, com o preço. É a muquiranagem cidadã.
Um exemplo prosaico: as obras no Arroio Dilúvio. As pedras de grés que revestem os taludes do riacho estão sendo retiradas e, no lugar, a prefeitura coloca placas de concreto. As pedras de grés estavam ali por um motivo: porque se harmonizavam com o conjunto do riacho, com seus canteiros, suas pontes históricas.
O concreto desfigura a obra. Mas quem se importa? Concreto é mais barato. Além disso, o Arroio Dilúvio nem riacho é considerado, mas valão. Contraditório para uma população que diz cultivar suas tradições.
Mas não estou aqui a culpar só a prefeitura. A prefeitura não picha, não mutila monumentos e telefones públicos, nem joga lixo na rua. As culpas são várias. E levantá-las nem é importante, talvez seja ruim.
Prova-o a situação da Educação. Você pergunta por que a Educação do Rio Grande do Sul é pior do que a do Piauí e o Cpers responderá que a culpa é do governo e o governo responderá que a culpa é do Cpers. Todos apontam culpas, ninguém indica soluções.
Porto Alegre tem solução. Não a Porto Alegre da muquiranagem pública ou da falta de educação do público. Tem solução a Porto Alegre que, ainda esta semana, lotou um auditório de 3 mil lugares para ouvir e aplaudir Daniel Cohn-Bendit no incomparável Fronteiras do Pensamento. Tem solução a Porto Alegre da Feira do Livro. Do Em Cena.
Dos museus do Centro. Tem solução a Porto Alegre da boa vontade. Não tem a da rançosa oposição.
27 de agosto de 2010 | N° 16440
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (INTERINO)
Por que uma cidade fica feia?
O argentino Lescano tinha uns 70 anos e comia ovos cozidos enquanto fazia caricaturas no meu tempo de Livramento. Levava um vidro com salmoura para o jornal, enfiava uma colher e ia devorando uma dúzia de ovos enquanto caricaturava alguém para as páginas de A Plateia. Nanquim no papel, traço vigoroso, limpo, esse traço clássico dos desenhistas platinos.
Lescano saía tarde da noite do jornal e ia jogar no cassino de Rivera, de terno de linho branco surrado, sempre silencioso, lento, com o olhar na calçada. Levava o vidro vazio sob o braço. Voltava no dia seguinte, o vidro cheio de ovos cozidos, os bolsos vazios.
Lembrei do Lescano, do Santamaría, João David, Basile, João Afonso, Gringo Alvim, do Martín Correa e do Pintinho quando estive em Livramento há pouco.
O mestre Basile morreu. Santamaría, Martín e Alvim eu sei por onde andam. Lescano estaria hoje com uns 105 anos. Teria durado tanto comendo ovos cozidos todos os dias? Ninguém soube me dizer, nem o Duda Pinto, que sabe tudo da cidade.
Claro que a Livramento por onde Lescano circulava, como se carregasse o caixão de Perón e toda a melancolia argentina dos anos 70 naquele vidro com ovos, não existe mais. Mas a cidade vista hoje por quem chega de fora é um desses mistérios que acionam uma pergunta incômoda: por que um lugar se degrada e se desfigura? Será por que os atrativos do freeshop de Rivera relegaram Livramento à condição de extensão do Uruguai?
Como deixaram a linha de fronteira que divide as cidades ser tomada pelos ambulantes, que fizeram sumir entre as barracas os galgos da praça dos cachorros? Que desatenção encascurrou casas e edifícios bonitos e transformou o belo Palácio Moyses Vianna da prefeitura num ambiente assustador? Que mecanismo paralisou Livramento?
Alguém disse, há muito tempo, que Livramento é a mais carioca das cidades gaúchas. É uma boa definição para um lugar em que a convivência de brasileiros e uruguaios resulta num tipo único, cordial, alegre, boêmio, festeiro. O santanense é o mais suave dos fronteiriços. Por que a cidade dessa figura faceira perdeu a graça?
Enrique Peñalosa, o ex-prefeito que civilizou Bogotá com ciclovias e espaços públicos de convivência, diz que as cidades não são bonitas e agradáveis por que são ricas. Quem for a São Lourenço, na zona sul, terá um exemplo do que Peñalosa pensa. A minúscula São Lourenço é uma cidade agradável, limpa, com prédios pintados, e não é rica. Percebe-se que cuidam de São Lourenço há muito tempo.
E o que se passa com Livramento? Pode ter sucumbido a uma crise de autoestima? O comércio do freeshop, que aos poucos também degrada Rivera, transformou a fronteira aberta entre as cidades gêmeas num cenário de invasores.
Compra-se tudo e com voracidade, de azeitona à TV de LCD, do lado de lá. Livramento é só o ponto de passagem. O real forte e a classe média em expansão podem ser parte de uma explicação, ou podem também ser apenas uma desculpa.
Ronaldinho foi ovacionado pela torcida no Nou Camp, na quarta-feira, no jogo do Milan com o Barcelona. Um dia isso se repetirá no Olímpico, quando Ronaldinho voltará para ficar. Renato, Ronaldinho, Arena. Será a ressurreição da imortalidade.
ELIANE CANTANHÊDE
Tsunami
BRASÍLIA - A onda Dilma vira tsunami e, depois de chegar à praia presidencial, tende a se espalhar pela estadual. Quanto mais a onda Dilma atrai os eleitores (não só os indecisos, mas até os de Serra e de Marina), mais gera pânico na oposição nos Estados. Os candidatos tentam salvar a própria pele, e histórias da correria do PPS e do próprio PSDB rumo a areias menos movediças surgem por todo canto. O DEM, coitado, não tem para onde correr.
Do outro lado, cresce a voracidade dos dilmistas desde criancinha, mas eles estão sob controle. O PMDB? Já garantiu a Vice-Presidência, vai ganhar contas polpudas nos ministérios e tende a ser um incômodo inofensivo no Executivo.
Dilma vai deixar o pau quebrar é no Congresso, onde o PT irá disputar a presidência da Câmara com o PMDB, desviando o foco do preenchimento de cargos de governo. Quanto mais se falar de uma, mais vai-se esquecer de outra.
O PT se diz pronto para aguentar o tranco, porque abriu mão dos governos estaduais para o PMDB, como em Minas, e o PSB, como em Pernambuco, para investir em boas bancadas na Câmara e no Senado. Com o tsnunami, devem vir fortes.
A expectativa, pois, não é só de eleição folgada de Dilma no primeiro turno, mas também a de que navegue tranquilamente no governo. Com força no Congresso e os 7% de crescimento da economia em 2011, ela vai aprofundar programas assistencialistas e de infraestrutura, para criar empregos e oportunidade para investidores. Fecha assim o cerco sobre a base da sociedade, assalariados e donos do capital.
Tudo isso projeta ausência de oposição, de contraditório, de fiscalização e de crítica. Lula cuidou bem desse probleminha.
0 00Quebra de sigilo de adversários com quebra de sigilo da Ana Maria Braga é embolar banditismo político com banditismo puro e simples.
elianec@uol.com.br
RUY CASTRO
Fuga para o vencedor
RIO DE JANEIRO - Em 1984, quando se estabeleceu que Tancredo Neves e Paulo Maluf disputariam a presidência no Colégio Eleitoral (formado pelos deputados e senadores), o quadro parecia óbvio. Tancredo atrairia os democratas, os patriotas, os que queriam o Brasil de volta para fazer dele um novo país.
Com Maluf ficariam as raposas, os fantasmas da velha ordem, os oportunistas, os que se locupletaram com os militares no poder.
Ou seja, Tancredo atrairia o voto ideológico; Maluf, o fisiológico. E, como o Congresso já era então um viveiro de fisiológicos, não seria surpresa se Maluf vencesse.
Mas, em poucas semanas, quando ficou claro que o povo, esgotado por 21 anos de ditadura, queria respirar, eles decidiram que Tancredo deveria ganhar. Donde deu-se a maciça migração de votos. A 15 de janeiro de 1985, Tancredo foi eleito por massacrantes 480 votos contra 180 de Maluf. O que acontecera? O Colégio Eleitoral ficara súbita e corajosamente ideológico?
Não, era o contrário. Os fisiológicos é que abandonaram seu mentor e se grudaram naquele que despontava como vitorioso. A equação se invertera. Com Maluf, ficaram os malufistas sinceros e radicais -logo, ideológicos. Já Tancredo assimilou todos os demais: as raposas, os fantasmas da velha ordem, os oportunistas etc., assim como já assimilara José Sarney como seu vice.
O mesmo está acontecendo hoje, com a diferença de que a eleição é direta. Ao sentir o vento soprar para Dilma Rousseff, pessoas que normalmente estariam ao lado de José Serra têm se esmerado no contorcionismo a fim de se aproximarem da candidata de Lula. É a fuga para o vencedor. A cada ponto conquistado nas pesquisas, Dilma terá mais dinheiro, comícios, palanques, siglas e aliados do que Serra.
A Serra, no dia 3 de outubro, restará contar os amigos que lhe restaram -os que não se juntaram à hemorragia.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
CLÓVIS ROSSI
Lula inventou uma fábula
SÃO PAULO - Para não dizer que o presidente Lula mentiu sobre o que aconteceu no almoço de 2002 nesta Folha, em que se sentiu discriminado, digamos que ele contou uma fábula, com escasso parentesco com a realidade.
Para começar, o único presidente norte-americano que frequentou a conversa não foi Bill Clinton, jamais mencionado, ao contrário do que diz Lula, mas Abraham Lincoln. Foi Otavio Frias Filho, diretor de Redação, quem lembrou que Lincoln também não tivera educação superior, o que não impediu que fizesse um bom governo.
Depois dessa observação nada discriminatória, Otavio perguntou por que Lula não se preocupou em estudar mais, depois de ter se estabelecido na vida, como dirigente sindical primeiro e como líder partidário depois.
Lula não respondeu nada, ao contrário da fábula que conta agora. Limitou-se a dizer que se sentia desrespeitado e que, por isso, não responderia. A conversa ainda transitou por outros temas durante um tempo até que Otavio voltou a perguntar, agora sobre a ligação do PT com o fisiologismo.
De novo, Lula não respondeu, a não ser para dizer que não tinha culpa de que não estivesse bem nas pesquisas o candidato do diretor de Redação (do qual não deu o nome). Levantou-se e foi embora.
A reação do então candidato foi tão mais estranha porque, dias antes, Miriam Leitão fizera pergunta parecida e Lula dera uma resposta esperta: nenhuma universidade prepara alguém para ser presidente da República.
O que incomoda nesse episódio não é ele em si, menor. É a fabulação que o presidente faz em torno do que aconteceu. Por acaso, eu estava no almoço e sei perfeitamente o que se disse e o que não se disse. Como posso confiar em que Lula não fabula também ao relatar encontros com políticos ou governantes estrangeiros?
crossi@uol.com.br
Uma ótima quinta-feira para você. Aproveite o dia
Jaime Cimenti
A turma do cafezinho no shopping
De uns anos para cá, graças a Deus, à Cacaia do Café do Porto e a outras pessoas maravilhosas, temos de novo aconchegantes e perfumados cafés e voltaram as indefectíveis turmas do cafezinho, em especial nos shoppings, que são as pracinhas de brinquedo.
As histórias que vou contar se passaram no Café Imaginário, lá no território da fantasia, onde nunca fui. Pura invenção. Não vou me entregar e nem dedar os amigos das minhas várias turmas de conversa afiada e café quente, doce e forte como, aliás, deveriam ser todas as pessoas.
Gosto muito do Teco, que, com mais de noventa, diz que ainda namora em casa e fora, com muito vigor e pouco viagra. Ando perto dos sessenta, expliquei que sou casado-caseiro, não tomo viagra, mas que depois dos 50 já não é tão fácil namorar mais que sete ou oito vezes por semana. Dizem que o Nhéco-Nhéco é pedófilo, infanticida ou padrófilo, sei lá.
Acho que é mentira, fofoca. Ele parece mais um simpático e doce pároco de interior, mas não se aceitaria um convite dele pra coroinha. O Dr. Bloomberg é o psicoterapeuta do grupo. Esperto, ótimo cara, fica quase que só ouvindo e observando.
Ele aprende e se diverte um monte com os amantes dos grãos cheirosos da rubiácea. A melhor parte dos psis é o ouvido, mas eles também falam legal e atrapalhado, bem como a gente.
O Zé Colmeia no início me pareceu um ursão meio sério, brabo, reclamou das minhas piadas, mas depois mostrou que tem alma de mel e até me contou uma anedota boa. Nem sempre a primeira impressão é a que finca. O Tico-Tico é legal, mas quando vem com seu fundamentalismo tricolor é dose. No fundo ele é legal. A gente que é colorado já está mesmo acima do bem, do mal, da lua e das estrelas e não se estressa com certas farpinhas.
O Antinolfo Eleutério de Mendonça Oliveira e França, quem falando, falou que o nosso amigo Zico-Rolando-Lero é pernóstico, pedante, livresco, um empolado de polaina, que não poderia ser sequer seu aluno de escola de primeiras letras no tradicional estabelecimento de ensino de jesuítas no formoso e famoso município da zona sul gaúcha onde ele, Antinolfo, foi aluno interno e , posteriormente, mestre-escola de incontáveis e inesquecíveis gerações.
Por hoje as memórias inventadas e os leros imaginários são esses. Mas tem mais, sempre tem. Em mesa de café mentira, verdade e fantasias se misturam feito café-com-leite e voam ao infinito tipo assim as glórias coloradas.
26 de agosto de 2010 | N° 16439
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (INTERINO)
Maluf vem aí
Nada é mais comovente na política do que o esforço de Paulo Maluf para ser reconhecido como honesto. Agora mesmo, Maluf foi pego pela Lei da Ficha Limpa. Segundo o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, não pode concorrer à reeleição a deputado federal. Maluf vai recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral e, diz nossa intuição, vai ganhar.
O TRE não impediu a candidatura de Maluf por desvios de recursos de viadutos, mas porque comprou frangos superfaturados quando era prefeito de São Paulo. Maluf sempre gostou de compras superfaturadas. Fuscas para a Seleção de 70, pregos, cimento, merenda, abóbora, ovos, mandioca, tijolos.
Quase tudo que Maluf compra tinha rolo. Toda obra grandiosa resultava em desvios. Mais de R$ 300 milhões desaparecidos da construção de túneis e avenidas foram parar em contas de Maluf no Exterior. Maluf já esteve preso por alguns dias, foi solto e nunca recambiaram o dinheiro que levou para fora do país. Maluf flana porque tem advogado e tem voto.
Fui à página da Câmara na internet e busquei dados sobre Maluf. Há um link para projetos apresentados. Talvez eu não saiba procurar direito, mas não achei nada de relevante. Maluf é relator de um monte de projetos. Encontrei um pelo menos curioso. Ele relatou uma proposta do deputado Pompeo de Mattos que torna obrigatória a instalação de câmeras de filmagem nos shopping centers e similares.
Maluf relatou o projeto como integrante (acredite) da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O deputado deu, claro, parecer favorável. Afinal, as câmeras evitarão furtos em shoppings. Está escrito no relatório que o projeto é acolhido por sua “constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa”.
Não diz ali se o projeto já foi votado em plenário. Mas se sabe que os shoppings, com ou sem lei, estão cheios de câmeras. Imagine que a preocupação com o patrimônio e a segurança dos shoppings foi parar nas mãos de Maluf. E os humoristas, coitados, impedidos por lei, não têm o direito de nos fazer rir com uma façanha dessas.
A legislação que impede a ridicularização dos políticos com trucagens e montagens de imagens e áudios na TV é de 1997 e provocou agora uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE foi duro na interpretação da lei.
Proibiu que alguém faça qualquer piada com políticos na TV – por exemplo, com essa história das câmeras nos shoppings. Eu queria ver o Casseta monitorando o Maluf olhando frangos de feltro numa loja de decoração.
O humorista Helio De La Peña, do Casseta, andou se queixando. Disse que a lei dá a entender que os humoristas vinham fazendo bullying com os pobres dos políticos.
Indefesos, foram protegidos por uma lei de 1997 que eles mesmos fizeram. Por isso, os programas de TV estão sem graça nesta eleição. Se o Maluf pode rir da gente e a gente não pode tirar sarro do Maluf, vamos rir de quem? Sorria, pelo menos, porque você está sendo filmado graças a uma lei relatada por Maluf, o guardião dos shoppings.
Correu tudo bem com a cirurgia do Sant’Ana, que volta logo com o rosto remoçado. Aguardem o retorno de Pablo. Agora, só falta a cirurgia geral no Grêmio. Aceita-se todo tipo de sangue.
26 de agosto de 2010 | N° 16439
L. F. VERISSIMO
Leis e normas
A tal lei que proíbe avacalhar candidatos em época de eleição e que provocou uma manifestação de humoristas no domingo passado no Rio existe desde 1997. Quer dizer, é um exemplo daquelas leis brasileiras que, como vacina ou mudinha, pegam ou não pegam.
Esta não pegou, tanto que não me lembro de vê-la discutida assim em outras eleições. Isto não significa que ela não deva ser execrada e o seu autor sofrer um ataque de cócegas sempre que aparecer em público, para aprender. Significa que a punição por avacalhar candidatos não deve preocupar muito, nem humoristas, nem ninguém. Inclusive porque será difícil caracterizar o crime.
– Pô, cara. A gozação que fizeram com você na TV, ontem, passou dos limites. Apareceu um imitador com a sua cara, dizendo uma porção de bobagens... Eu, se fosse você, processava.
– Não era imitação, era eu!
– Desculpe.
Uma questão maior é a dos limites da opinião, avacalhadora ou não, de quem tem o privilégio de um espaço na imprensa. Limites que independem da lei pegar ou não pegar, porque fazem parte das nossas normas, e das nossas hipocrisias, jornalísticas. Na Europa e nos Estados Unidos, é comum colunistas abrirem o seu voto e os próprios jornais declararem suas preferências eleitorais.
No começo de cada campanha presidencial americana, por exemplo, o New York Times anuncia para quem vai torcer – o que não é um anúncio de que vai distorcer a favor do escolhido.
Aqui a norma é da objetividade, mesmo fingida. Sempre achei estranho que um cronista de jornal, que é pago para ser subjetivo ao máximo, se veja obrigado a sonegar seu gosto político, que deveria ser tão naturalmente exposto quanto seu gosto em filmes, livros, mulheres e pastéis. Já outros sustentam que o voto aberto do cronista é um abuso do poder da imprensa. É uma discussão antiga, essa com a dona norma.
“Avacalhar”, se não me falha o etimológico, vem de vaca mesmo. Reduzir alguém a vaca – pobre vaca, esse símbolo de resignação fatalista, sem falha de caráter conhecida – é desmoralizá-lo.
O mais triste é que não funciona. Historicamente, nem os mais avacalhados dos nossos políticos sofreram, politicamente, com a avacalhação. Temos uma cultura política à prova do ridículo. O que, claro, só torna a tal lei ainda mais ridícula.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
25 de agosto de 2010 | N° 16438
MARTHA MEDEIROS
Ai de nós, quem mandou?
Mulheres ganham salários menores do que os dos homens, e líderes feministas seguem lutando para reverter essa injustiça. Mas já não sei se é boa ideia continuar batalhando por igualdade. Depois de ler o resultado de uma recente pesquisa feita pela Universidade de Harvard, fiquei inclinada a pensar que talvez seja melhor manter as coisas como estão.
A pesquisa chama-se Schooling Can’t Buy Me Love (Escolaridade não pode me comprar amor) e confirma que mulheres que estudam mais acabam progredindo e, quanto mais bem-sucedidas, menores as chances de se casar.
Os homens ainda não estão preparados para abrir mão da superioridade que o papel de provedor lhes confere. E mesmo os mais antenados, que apoiam que suas mulheres sejam independentes, ficam inseguros se elas tiverem cargos de chefia e muita visibilidade. Ganhar dinheiro, tudo bem, mas aparecer mais do que eles já é desaforo.
Beleza. O que vamos dizer para nossas filhas? Estudem, mas fazer doutorado e mestrado é exagero, antes um bom curso de culinária. Tenham opiniões próprias quando conversarem com as amigas, mas em casa digam só “ahã”, para não se incomodar. Usem seu dinheiro para comprar roupas, pulseiras e esmaltes, esqueçam o investimento em viagens, teatro e livros.
E, na hora de se declararem, troquem o “eu te amo” por “eu preciso de você”, “eu não sou ninguém sem você”, “eu não valho meio quilo de alcatra sem você”. Homens querem se sentir necessários. Só amados não serve.
Que encrenca que as feministas nos arranjaram. Estimularam o pensamento livre, a autoestima, a produtividade e a alegria de trilhar um caminho condizente com nosso potencial. De apêndices dos nossos pais e maridos, passamos a ter um nome próprio e uma vida própria, e acreditamos que isso seria excelente para todos os envolvidos, afinal, os sentimentos ficaram mais honestos, e com eles os relacionamentos.
O amor deixou de ser o álibi para um lucrativo arranjo social.
Passou a ser mais espontâneo, e as carências de homens e mulheres foram unificadas, já que todos precisam uns dos outros para dividir angústias, trocar carinho, pedir apoio, confessar fraquezas, unir forças no momento das dificuldades. Todos se precisam da mesma forma, não de formas distintas. Mas há quem defenda que homem só precisa de paparico e mulher de quem tome conta dela, punto e basta.
Nunca imaginei que em 2010 ainda estaria escrevendo sobre isso. Achei que os homens já tivessem percebido o quanto ganham em ter uma mulher inteira a seu lado, e não um bibelô.
Acreditei que a competitividade tivesse dado lugar a um companheirismo mais saudável e excitante, onde todos pudessem se orgulhar dos seus avanços e se apoiar nas quedas, mas que iludida: isso é coisa pra meia dúzia de emancipada, filha.
Essas mulheres aí que não cozinham, não passam, não lavam, só evoluem, essas não são exemplo pra ninguém, são umas coitadas de umas infelizes que pagam as contas e ainda se acham divertidas, se fazem de inteligentes, querem bater perna em Nova York, pois vão arder no fogo do inferno, vão amargar na solidão, vão se arrepender de ter lido aquela Simone de Beauvoir, vão morrer abraçadas aos seus laptops, aqui se faz, aqui se paga, escreve aí.
Tamo ferrada.
25 de agosto de 2010 | N° 16438
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES - INTERINO
Saudade do Enéas
Sou um crédulo. Durante muito tempo, temi que o mundo rico se apoderasse do nosso nióbio. O nióbio seria o nosso pré-sal dos anos 90. O Enéas Carneiro alertava e eu acreditava: estão levando o nosso nióbio. Levariam também o nosso titânio.
Enéas esclarecia que o titânio é um metal decisivo para o isolamento de caldeiras e também para a dessalinização da água do mar. Sem titânio, poderíamos ser condenados a beber água salobra em pouco tempo. Na infância, bebi muita água salobra em Rosário e Alegrete. Não gostaria de beber de novo.
E ainda tinha o nosso quartzo, que é da melhor qualidade. Sem quartzo, dizia o Enéas, não se constrói microcomputador. Eu acreditava nas advertências do Enéas como acreditei no Bug do Milênio em 2000. Enéas era o nosso Antônio Conselheiro. O mundo estava acabando, o sertão ia virar mar, sequestrariam todo o nosso nióbio, esgotariam nosso quartzo.
Faz falta uma figura como Enéas nesta campanha. Imagino o que Enéas faria hoje com o pré-sal. Mandaria lacrar todos os poços. Enéas não era pouca coisa. Era médico, dava conferências, tinha reputação. Surgiu na eleição de 1989, a primeira depois da ditadura, ao lado de Lula, Collor, Ulysses, Brizola, Covas. Que timaço. Não era um cacareco, mas alguém a ser levado em conta. Em 1994, fez mais votos do que o Brizola.
Uma campanha sem um Enéas é uma campanha cartesiana, de fala ensaiada. Falta uma fala solo. Não há cabelos, nem dentes, nem vírgulas fora de lugar numa campanha assim. É uma campanha profissional demais, dirigida demais, cinematográfica, cuidadosa, previsível. Enéas tinha ginga, era barbudo e careca. Olhava para a câmera como esses artistas amadores olham pra gente no YouTube. Tinha o poder de síntese do Twitter. Dizia em oito segundos o que o grande Ulysses levava 10 minutos para dizer.
Sinto saudade do Enéas porque ele fazia o contraponto ao que seria sério com a mesma simulação de seriedade, a mesma capacidade de assertiva, de convencimento e de horrorizar. Enéas foi um Jânio que não deu certo. Sem um Enéas, sem um Jânio e até sem um Collor, fomos abandonados ao excesso de seriedade.
Enéas não era um Tiririca, um candidato esdrúxulo que debocha da própria candidatura com a cumplicidade de eleitores anarquistas. Era mais complexo, declaradamente reacionário, militarista, moralista. Com esses candidatos que andam por aí, não tenho medo de nada. Nem do alerta de que uma revolução temporona está por chegar. Temo apenas que não estejam cuidando direito do nosso nióbio.
Sobre o canto antecipado dos sabiás por causa do calorão: dizem que os sabiás já cantavam no invernão de julho pros lados do Beira-Rio. E que os tico-ticos têm sido vistos cantando como quero-quero na volta do Olímpico. O tempo e a Libertadores enlouqueceram os bichos.
25 de agosto de 2010 | N° 16438
JOSÉ PEDRO GOULART
Subterrâneos
1) No Chile, trabalhadores de uma mina de carvão estão soterrados há quase 20 dias. Até domingo passado, havia pouquíssima esperança de que estivessem vivos, mas um bilhete, colado numa das perfuratrizes, anunciou: “Estamos bien”. Trinta e três mineiros, num buraco 700 metros debaixo da terra, quase sem água, luz, comida; pouco ar, mandam um aviso para que não desistam deles, um código simples e direto, sem queixas ou alarmes (pra quê?): “Estamos bien”.
(As autoridades falam em quatro meses para tirá-los de lá.)
2) Lembrei-me dos encurralados do submarino Kursk. Naquela vez, não houve chance de contato ou salvação – mesmo assim, os marinheiros deixaram cartas para os parentes. Falavam daquilo que sentiam, do que acontecera. São mensagens doloridas, duras de ler, o suplício de uma espera sem esperança. Numa carta, havia uma declaração que resumia o fato, como se fosse um epitáfio: “Escrevo no completo escuro”. Um cidadão, preso num submarino avariado, claustrofóbico, imóvel, a dezenas de metros num subterrâneo de águas frias, deixa uma frase que revela um naco gigante do nosso medo primal. Por que ele teve que escrever aquilo?
3) No filme A Origem, os subterrâneos não estão no mar ou na terra. Os sonhos são amostragens desse lugar, pequenos uploads do inconsciente deixados no YouTube da nossa memória real. O que é sonho e o que é realidade?
4) Sofro de uma claustrofobia branda. O que me intriga é que não temo aviões ou elevadores, por exemplo. Exceto quando eles estão parados com a porta fechada. Um avião esperando na cabeceira da pista é uma tortura para mim. Depois que ele voa – sob chuva ou tempestade, não importa –, sigo tranquilo. Por quê?
Saiu agora pela L&PM A Espécie Fabuladora, de Nancy Huston. O livro, imperdível, estuda o comportamento humano a partir da necessidade que temos de “fazer narrativas”, contar a nossa experiência; e de criar fábulas, isto é, aumentar, inventar, distorcer, mentir. A ficção esconde a verdade.
Imagino que o avião parado na pista me cause ansiedade porque “não narra”, retém o tempo – paralisa a história. Imagino que a não linearidade dos sonhos do Christopher Nolan, em A Origem, desconfigure a ideia confortável que a consciência estável dá. Penso no marinheiro escrevendo no escuro e percebo o sentido disso tudo. A gente narra a procura de um sentido. A gente narra para provar que tudo não passa de um sonho.
25 de agosto de 2010 | N° 16438
DAVID COIMBRA
A culpa é das mulheres
A Bíblia prova o que digo. Ao menos o trecho sobre Adão & Eva, o Jardim do Éden e talicoisa.
Você sabe o que digo: a Civilização é obra feminina. Estamos aqui, vivendo em cidades, bebendo água em copos de plástico, usando cuecas, comendo cheesecake, por causa das mulheres. ELAS nos convenceram de que ia ser bom. Fosse por nós, homens, continuaríamos com a doce vida nômade, a vida caçadora e coletora. Continuaríamos selvagens, como ainda somos nos escaninhos mais remotos dos nossos corações. Continuaríamos felizes.
Felizes, sim. Em primeiríssimo lugar, porque não havia trabalho. Caçadas não podiam ser consideradas trabalho. Eram diversão. Os homens saíam em bandos, cercavam um mamute lanudo, abatiam-no a pedradas e golpes de tacape, e depois ficavam churrasqueando e contando vantagem.
Quando voltavam para a clareira onde haviam deixado as mulheres e os filhos, elas, as mulheres, os esperavam com muitos frutos e raízes na panela e pouca roupa no corpo rijo de fêmeas habituadas a longas caminhadas.
Os homens se sentavam em torno da fogueira, narravam suas aventuras, agora com detalhes aumentados de façanhas e heroísmos, e depois era aquela festa. Ninguém era de ninguém. Não existia monogamia, não existia casamento, não existia fidelidade, não existia isso de mulher ficar fuçando no celular do homem para descobrir quem ligou na noite anterior.
Esse era o Paraíso. Não sou eu quem o afirma; é a Bíblia. Adão e Eva eram caçadores e coletores. Eram nômades a vagar alegremente pela vasta área do Jardim do Éden. Eram, como já disse, felizes.
O que aconteceu para que tudo se transformasse?
Aconteceu que a mulher fez o homem mudar.
A história está toda lá, nas entrelinhas da lenda do Gênesis. Quer ver?
Prova número 1: o que significa a maçã do conhecimento que Eva oferece a Adão?
Resposta: significa a Civilização.
Eva, a mulher original representando todas as mulheres originais, convence Adão, o homem original representando todos os homens originais, a se civilizar. O que, então, tem de fazer Adão? Tem de trabalhar, o que, além de ser um apanágio da Civilização, é um castigo divino. Deus, claramente, desgosta da Civilização. Queria o homem no Paraíso, nu, desocupado e feliz.
Mas Adão deixou-se levar por Eva e já seus filhos são civilizadíssimos: Caim é agricultor; Abel, pastor. São tão civilizados que um mata o outro por inveja, uma das mais marcantes características da Civilização.
Prova número 2: ao se civilizarem, Adão e Eva sentem vergonha de andar nus e cobrem as partes pudendas com folhas de parreira. A imagem é óbvia: com a Civilização, o sexo, antes livre e sem culpa, torna-se tabu. Agora, o sexo não é mais diversão. É pecado.
Tudo por causa da mulher.
Nós homens, nós fomos domesticados. A centelha de liberdade selvagem que ainda subsiste no fundo de nossa alma, essa centelha só reluz em momentos especiais. Um deles é o esporte. Sobretudo o futebol, uma reprodução da vida gregária dos tempos do nomadismo, quando os homens saíam em bandos para encontrar alimento, sim, mas principalmente para se divertir. O futebol serve para esse extravasamento da alma masculina. Serve para a diversão. Para que voltemos às origens.
Vendo as cenas do Maracanã lotado com Vasco versus Fluminense, os cariocas rindo e brincando, vi ali a essência do futebol. Vi ali a diversão pura. E a invejei. O belicismo amargo de gremistas e colorados não tem nada a ver com diversão, não tem nada a ver com nosso espírito ancestral de camaradagem e lealdade masculina. Não.
Essa disputa tensa e cansativa é típica da Civilização inaugurada com o homicídio de Abel por Caim. É maniqueísta. É tola. E, pior, não é nada divertida.
domingo, 22 de agosto de 2010
22 de agosto de 2010 | N° 16435
MARTHA MEDEIROS
Amar não é sofrer
A frase que dá título a esta crônica é óbvia, mas milhares de pessoas não a levam a sério e vivem relações absolutamente torturantes sem conseguir rompê-las. Homens e mulheres preferem abrir mão da própria liberdade para continuar sendo amadas: deixam de ser quem são, deixam de externar suas opiniões, deixam de agir como sua natureza manda, deixam de ser elas mesmas para não perderem seu amor, perpetuando assim uma relação esgotante e dolorosa. Acreditam que amar é ser vítima, que o flagelo emocional faz parte do romance.
Para quem se reconheceu nesse primeiro parágrafo, acaba de ser lançado um livro que vem a calhar: Amores de Alto Risco, do psicólogo, filósofo e professor italiano Walter Riso. Diz ele que de 20% a 30% da população possui um transtorno extremo de personalidade, e se considerarmos os casos moderados, a porcentagem aumenta. São os narcisistas, histriônicos, paranoicos, limítrofes, esquizoides.
Pessoas de bem, que trabalham, se apaixonam, casam e têm filhos, mas que são obsessivos, desconfiados ou agressivos num grau muito superior ao que se considera razoável.
A literatura psicanalítica tem se debruçado com seriedade sobre esses perfis e sobre as dificuldades que enfrentam, mas pouco se fala sobre seus parceiros: maridos e esposas que possuem uma mente razoavelmente sã e que passam por verdadeiras torturas emocionais no convívio íntimo.
A obra do professor me caiu em mãos justo quando acabo de entregar para a editora os originais do meu novo livro de ficção, cuja história também escancara a dor e a loucura de um relacionamento marcado pelo constante conflito.
O amor caótico inspira livros, filmes, letras de música, e quase sempre possui alta carga de erotismo, o que provoca a fantasia de milhares de casais que se arrastam em seu feijão com arroz conjugal. A princípio, viver um amor explosivo parece uma sorte, e não um castigo, só que depois do princípio vem o durante, e esse durante é que enlaça, prende e machuca.
Encerrada a euforia inicial, instala-se a rotina exasperante de uma relação doentia, que passa longe da satisfação. Claro que é preciso o esforço de ambos em busca de um ajuste, mas se depois de todas as tentativas ficar claro que a única forma de continuarem juntos é um dos dois se anular e deixar-se consumir, aí é hora de saltar desse trem em movimento. Não é fácil.
Aliás, não é nem difícil, é aterrorizante, pois, não esqueçamos, está-se falando de relações onde ainda existe amor.
Nada disso é poético, apenas realista. Amor e dor rimam em samba-canção, mas aqui fora, na vida que se vive, não precisa ser assim. Amar tem que ser uma prática alegre, construtiva, produtiva. Sem neuras, sem engessamento.
Concessões fazem parte dos relacionamentos, mas sacrifícios, quem disse? Há quem tenha sua energia vital sugada por um vampiro que se delicia com a resignação da sua presa. Isso é justo? Melhor deixar as ilusões de lado e seguir caminhando. Outro amor pode estar mais adiante, na próxima porta.
Bem continuo aqui no Canadá em uma cidadezinha linda chamada Whistler, encravada nas montanhas Canadenses. Mas volto viu. Um lindo fim de semana para cada um de voces que vem até aqui.
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