06
de março de 2015 | N° 18093
DAVID
COIMBRA
A sabedoria dos cachorros do
Brasil
Pobre
tem de ser bom. Os cachorros brasileiros nos ensinam isso. Li uma vez, na
National Geographic, que o bicho mais inteligente do mundo é o vira-lata brasileiro.
Não me surpreendeu. O vira-lata brasileiro tem de enfrentar contingências diárias
para sobreviver. Tem de se adaptar, e se adapta.
Aqui
não existe vira-lata. Eu, ao menos, nunca vi um cachorro numa rua do nordeste
americano que não estivesse acompanhado do dono. No inverno, os cachorros andam
de meias, porque o sal que é espalhado nas calçadas para diluir a neve pode
lhes queimar as patinhas. São cachorros mimados, esses cachorros americanos.
Os
brasileiros, não. Cachorros brasileiros vivem a vagabundear sozinhos pela rua e
dependem da simpatia do transeunte para não levar um pontapé e da do dono do açougue
para ganhar um osso. Essa necessidade de comover os humanos fez com que os
cachorros brasileiros desenvolvessem eficazes métodos de despertar compaixão. Eles
abanam o rabo e fazem uma cara de tristeza que transforma em patê os mais
empedernidos corações. É a evolução da espécie. Darwin explica.
Há cientistas
que suspeitam que os filhotes de mamíferos, inclusive os dos humanos, são
bonitinhos para cumprir essa função evolutiva. Sendo fofinhos, eles enternecem
eventuais adultos predadores. Tudo pela preservação.
Socialmente,
o homem segue essa mesma lógica da natureza: quando em desgraça ou em
desvantagem, o homem é humilde, simpático, risonho, parece boa gente. As
pessoas se admiram: veja esse povo sofrido, que, ainda assim, canta e mantém o
sorriso no rosto. Ora, ele canta e mantém o sorriso no rosto porque precisa. Porque
tem de despertar a boa vontade alheia, da qual depende. Tornado poderoso, aí sim,
aí é que ele mostrará quem na verdade é.
Mas
alguns grandes homens, ungidos pelo poder, alguns poucos demonstram que são
verdadeiramente grandes, demonstrando humildade. Um dos mais inspiradores foi
nada menos do que dono do mundo: Marco Aurélio, imperador romano no segundo século
depois de Cristo.
Esse
Marco Aurélio era homem de letras e de filosofia, mas também de guerra. Durante
os combates contra os povos germânicos, nas geladas fronteiras do império, ele
se recolhia à sua tenda e se punha a registrar ideias sobre a existência. São
pensamentos de comovente delicadeza. Li Marco Aurélio ainda guri, quando fiz a
coleção Os Pensadores, da Abril Cultural, e ainda o leio, em certos momentos da
vida.
Marco
Aurélio foi o filósofo da aceitação. “Acontecer-me isso não é uma desgraça”,
dizia, “mas suportá-lo corajosamente é uma felicidade”.
Marco
Aurélio era o que hoje talvez se chamasse de holístico. Acreditava no que
designava como “a natureza do todo” e proclamava para o universo: “Tudo o que
harmoniza contigo, harmoniza comigo. Nada que para ti esteja em tempo é muito
cedo ou muito tarde para mim”.
Para
ele, a morte não era “a angústia de quem vive”, que era para Vinicius. Ao contrário,
Marco Aurélio ensinava: “Assim como a mutação e a dissolução dos corpos abrem
caminho para outros corpos condenados a morrer, assim almas que deixam o corpo
depois da existência terrena transmutam-se e difundem-se na inteligência
seminal do universo e abrem caminho para novas almas. Tu, que exististe como
parte, desaparecerás naquilo que te produziu. Vive esse pequeno espaço de tempo
em conformidade com a natureza e encerra contente a tua jornada, como a
azeitona que cai da árvore quando madura, abençoando a natureza que a produziu
e agradecendo à árvore onde cresceu”.
Neste
tempo, em que o Brasil assiste ao espetáculo da dissolução moral dos poderosos,
é saudável saber que nem todo o poder do mundo é capaz de tornar mau quem
aprendeu a ser bom.
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