Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
terça-feira, 30 de novembro de 2010
30 de novembro de 2010 | N° 16535AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
De homens e livros
Mario Quintana escreveu que “o livro traz vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado”. E já que mencionei um de meus autores preferidos, peço licença para citar mais dois. Somerset
Maugham confessou que “quando leio um livro, tenho a impressão de lê-lo somente com os olhos, mas de vez em quando topo com uma frase que tem uma significação especial para mim, e ela se torna parte de mim”. Já Ernest Hemingway dizia que “todos os bons livros se parecem, por serem mais verdadeiros do que se tivessem acontecido realmente”.
Mergulhei nesses pensamentos o outro dia, ao fazer uma investida sobre minha própria biblioteca. De novo, era preciso separar um punhado de volumes para doação, já que o espaço de meu gabinete estava outra vez tomado por mais lombadas do que poderia suportar.
Me dediquei a esse exercício com um certo temor íntimo na alma. Explico: a literatura é ocupante bem-vinda de duas peças de minha casa. Mas e se eu estivesse descartando obras cujo valor não havia sabido reconhecer? E se eu estivesse me separando da criação de um gênio ainda desconhecido? E se eu estivesse expulsando um poeta de altíssimos méritos, ou um romancista de rútila imaginação?
O que mais receava era estar me desfazendo de um livro completo. Não um com duas capas e o recheio competente. Me refiro a um outro, que procuro desde sempre, e que traz a anatomia completa da condição humana. Não falo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Ana Karenina ou de qualquer das tragédias de Shakespeare. Esses são o zênite, até hoje conhecido, da trajetória do homem sobre a Terra.
Me reporto a uma obra que não foi até aqui descoberta, que sintetiza toda a amargura e o esplendor da raça humana. Algo de absolutamente único e inimitável, que se componha de amor e de ódio, de fé e descrença, de esperança e de mistério, de certeza e incertitude.
Enquanto separava os livros que iam ser doados, me perguntava se esse título realmente existe. E me assaltava a convicção de que está entre nós, talvez em minha biblioteca, talvez na fantasia da adolescente que lê sua novela inaugural.
Uma excelente terça-feira. Aproveite o dia
30 de novembro de 2010 | N° 16535
CLÁUDIO MORENO
O homem é um só
E ainda tem gente que não se deu conta de que o ser humano é um só! A cena mais famosa do documentário Corações e Mentes (1974) deixou o mundo inteiro chocado: diante da câmera, o general Westmoreland, comandante geral das operações americanas na Guerra do Vietnã, afirma, impassível, que a vida não tem para os orientais a mesma importância que tem para nós – e a tela mostra, em seguida, em dramático contraponto, o desespero de uma mãe norte-vietnamita que tenta se atirar na cova em que o corpo do filho vai ser enterrado.
A intenção do general era desumanizar o oponente, tornando mais aceitável o bombardeio sistemático de aldeias indefesas, mas sua lógica perversa foi instantaneamente anulada pela imagem terrível daquela pobre mãe, que sofria como sofreria qualquer mãe, em qualquer tempo, em qualquer lugar.
Pai e filho? Pois seja do outro lado do mundo, seja no passado longínquo, pai sempre foi pai, filho sempre foi filho – como podemos ver neste quadro doméstico que nos soa tão familiar: “Onde te meteste? – Em lugar nenhum; não saí. – Não saíste? E por que ficas zanzando por aí, como um vadio?
Anda, pega tua mochila, vai para a escola e te apresenta ao professor. Faz anotações na tua tabuinha e recita tuas lições. Quando terminares, volta para casa, sem vagabundear pelas praças e pelas ruas.
Ouviste bem o que eu disse? – Sim, ouvi. Se quiseres, até repito. – Então repete, para eu ver. – Já vai; não estou com pressa. – Anda, repete! – Tu me mandaste ir à escola, recitar as lições e anotar a matéria nova; depois, voltar direto para casa. Não foi isso? – Foi. Isso é importante, meu filho.
Eu nunca te obriguei a trabalhar em nosso campo, nem a ajudar nas despesas da casa, como os teus colegas. Se seguires nosso exemplo, o meu e o de teu avô, só terás a ganhar”. E assim seguem neste diálogo atualíssimo, encontrado pelos arqueólogos em escavações na Suméria, escrito em tabuinhas de argila há mais de 3.500 anos.
Certo e errado? A linha que separa um do outro pode variar segundo a época e o local, mas a Humanidade parece compartilhar de um fundo comum de valores. Em outro texto quase tão antigo – uma prece do Livro dos Mortos do Egito, em que a alma pede a clemência de Osíris –, temos uma ideia bem clara do que não se devia fazer: “Venho diante de vós, Grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça. Eu sou puro! Deixai minha alma ir até vós, pois não cometi crime algum.
Não fraudei meu semelhante, não atormentei a viúva, não menti no tribunal. Não fui negligente, nem ocioso. Não impus jornada excessiva a meus trabalhadores, nem usurpei a terra dos outros. Não desviei a água do campo do vizinho, nem tirei o leite da boca da criança. Não causei fome ou qualquer sofrimento a meu próximo. Não matei”. Item por item, a lista vale até hoje.
30 de novembro de 2010 | N° 16535
PAULO SANT’ANA
O helicóptero blindado
O Rio de Janeiro viveu cenas memoráveis durante a invasão dos morros.
Os jornais, nos dias seguintes, mostravam manchetes desse tipo: “O Rio está de alma lavada”.
Chega a ser estupefaciente que consumidores de droga festejem a fuga e a prisão dos seus fornecedores.
Sou alertado por diversos leitores de que os culpados pelo tráfico de droga não são os traficantes. E sim os consumidores.
Obrigado pela ressalva, mas ela já estava presente em minha ideia.
E a questão é a seguinte: se não vão acabar com os consumidores, sempre haverá traficantes. Se não for na favela A, será na favela Y.
O tráfico não acabará nunca.
A não ser que tornem lícitas as drogas, isto é, que não seja crime nem usar nem vender droga. Por sinal, muita gente ilustre, culta e idônea está pregando a descriminalização das drogas, como tanto já abordei aqui nesta coluna.
Não há dúvida de que é a única solução à vista.
Na hora do pega pra capar da invasão pela polícia do Morro do Alemão, houve traficantes que tentaram fugir vestidos de garis, de mata-mosquitos, de entregadores de pizza.
Muitos foram presos, outros fugiram, centenas deles ainda se encontram lá, abrigados em casebres de moradores. Afinal, no complexo residem mais de 100 mil pessoas, muito mais gente que na maioria dos municípios do RS.
Houve traficantes que fugiram ou tentaram fugir pelos bueiros dos esgotos. Os que foram surpreendidos estavam sujos de cloaca.
O grande momento da invasão policial foi minutos antes da invasão, quando o enorme helicóptero blindado da Polícia Civil começou a sobrevoar, iluminado, as favelas do complexo.
Era a senha para a invasão, que se iniciou com 300 policiais civis, os que afinal cravaram as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro no cume do morro.
Interessante é que no Rio de Janeiro, talvez pela evolução do crime, a Polícia Civil se entrega a operações de polícia ostensiva, fardada, com armamento pesado, em tudo igual à Polícia Militar.
Lá, a Polícia Civil não é só judiciária.
Os traficantes, no início da invasão, imaginando que a polícia estivesse se entregando a outra ação rápida e profilática, tentaram enfrentar as forças de segurança, disparando seus fuzis e metralhadoras.
Mas, quando viram que eram milhares os policiais e não estavam para brinquedo, trataram de fugir e salvar suas vidas.
Tudo é uma questão de número. Quando em ação durante as 24 horas do dia há mais traficantes que policiais, vence o tráfico.
Quando as forças de segurança se reúnem e assim se tornam mais numerosas que os traficantes, vencem temporariamente as forças do mal.
Só para os leitores desta coluna que não assistem ao Jornal do Almoço: eu ontem entrei no programa com um brinco na orelha direita.
A Cristina Ranzolin perguntou desde quando eu começara a usar brinco.
Eu respondi:
– Desde sexta-feira, quando minha mulher, furiosa, achou este brinco dentro do meu carro e me perguntou de quem era o objeto. Eu disse que era meu. E agora me obrigo a usá-lo sempre.
30 de novembro de 2010 | N° 16535
MOACYR SCLIAR
Lições do Rio
Olhando as imagens dos carros e ônibus incendiados no Rio de Janeiro, lembrei-me de uma cena similar que presenciei há anos em Montevidéu. Caminhávamos pelo centro da capital uruguaia quando encontramos uma pequena e barulhenta manifestação dos tupamaros, à época um dos movimentos mais radicais da esquerda latino-americana.
Em meio à gritaria, um deles jogou gasolina sobre um pequeno carro que estava ali estacionado e ateou-lhe fogo, sob os aplausos dos companheiros que depois seguiram seu caminho.
Ou seja: esquerdistas e traficantes usando os mesmos métodos, ainda que com propósitos diferentes. No primeiro caso tratava-se de transmitir uma mensagem de conclamação à mudança social, no segundo, de fazer uma advertência à polícia.
Mas o resultado prático foi o mesmo: um automóvel destruído, um veículo que não mais transportaria pessoas. Veículo este, é bom assinalar, que resultava do trabalho de operários que nele tinham deixado uma parte de suas vidas.
O episódio é um exemplo dos erros que uma parte da esquerda comete, confundindo banditismo com contestação; o caso das Farc, associadas ao tráfico de drogas e ao sequestro. O raciocínio é sempre o mesmo: os fins justificam os meios, o importante é mudar a sociedade, não importando o que se faça para isso.
Só que os meios acabam por deturpar os fins. O crime e a violência passam a dominar o processo e se tornam objetivos em si próprios, como mostraram as incontáveis vítimas do stalinismo ou do Khmer Vermelho.
Um outro erro está na interpretação do crime como resultado automático, inevitável, da má distribuição de renda; obra de bandidos sociais, para usar a expressão do grande historiador marxista Eric Hobsbawn.
O qualificativo “sociais” está aí bem empregado; de fato, existe uma base social, ou econômica, ou cultural, para a transgressão. Mas isto é uma explicação, não uma justificativa; mesmo com base social, o bandido continua sendo bandido, assaltando, queimando carros, matando pessoas, aterrorizando a população.
A polícia nem sempre é inocente, mas isso não reabilita o criminoso, nem o torna um Robin Hood, aquele que roubava dos ricos para dar aos pobres. Se a polícia tem problemas, o jeito é enfrentá-los e resolvê-los.
Conclusão: não é queimando carros, ou jogando bombas, ou intimidando gente pacata que se vai mudar o país ou o mundo. Para isso, temos a democracia, temos o voto. Aliás, no Uruguai, elegeu-se José Mujica, que já é o segundo presidente de esquerda da história uruguaia.
À época da ditadura, Mujica, que integrava o movimento dos tupamaros, participou em atentados e assaltos; foi preso várias vezes, ficou 13 anos na prisão. Hoje, é um defensor do regime democrático. Ou seja: estamos melhorando, e o apoio da população carioca à luta contra o crime é uma prova disso. O resto é sofisma.
domingo, 28 de novembro de 2010
Texto Raphaela de Campos Mello
10 filmes que vão fazer a sua cabeça
Antes de apertar o play, saiba que você corre o risco de ser arrebatada. Justamente porque o cinema tem o poder de transformar o olhar do espectador, indicamos produções que prometem tocar sua alma. Você só tem de aceitar o convite, apagar as luzes e deixar a trama rolar.
A sétima arte é uma rainha cheia de caprichos. Faz a gente rir, chorar, perder o fôlego, pensar por dias, semanas, meses. “Além do prazer estético, qualquer tipo de arte propicia uma maior e melhor compreensão interna de nós mesmos. Isso acontece porque os artistas conseguem expressar em suas obras as verdades mais íntimas e secretas do ser humano”, avalia o psicanalista Sérgio Telles, autor de O Psicanalista Vai ao Cinema– Volumes I e II (ed. Casa do Psicólogo).
No caso específico do cinema, ele explica, a identificação com a trama justifica a atração e o encantamento que sentimos por determinada produção. “O espectador tem a oportunidade de se reconhecer no enredo e no comportamento dos personagens, bem como nos conflitos interpessoais construídos pelo autor. Assim, consegue acessar conteúdos de sua própria mente, dos quais até então, talvez, não tivesse conhecimento”, esclarece Sérgio.
É por isso que, dependendo do impacto causado por uma película em nosso mundo interno, podemos carregar os louros dessa experiência pela vida afora. A seguir, dez sugestões para você se emocionar, refletir ou, simplesmente, se divertir. A pipoca está liberada.
1 MUITO ALÉM DA RAZÃO
Um amor improvável, proibido e autêntico. Assim é o sentimento que une o cirurgião Timoteo (Sergio Castellitto) e Itália (Penélope Cruz). Sabemos do romance quando a filha do médico sofre um acidente e só resta a ele esperar pelo fim da cirurgia.
Nesse momento, Itália toma os seus pensamentos e, a partir daí, a difícil saga dos amantes é reconstituída. Prepare-se para se emocionar com o encontro de uma mulher machucada pela vida com um homem disposto a amá-la, apesar de suas diferenças sociais. Não Se Mova (Drama, Itália, Imagem Filmes, 2004).
2 LUTO E TRANSCENDÊNCIA
É com imensa delicadeza que a diretora alemã Doris Dörrie aborda um tema espinhoso: a dor provocada pela perda de um ente querido. Trudi (Hannelore Elsner) ouve dos médicos que seu marido, Rudi (Elmar Wepper), tem pouco tempo de vida. Dali em diante, guarda consigo a sentença, evitando compartilhá-la com sua família. Seu desafio é convencer o parceiro, um senhor metódico e ranzinza, a se aventurar numa viagem para longe do cotidiano regrado.
Num segundo plano, emerge outra temática: a relação entre pais e filhos adultos. Enquanto a vida se esvai, os personagens se debatem entre o amor que sentem, mas desaprenderam a expressar, as mágoas do passado e o individualismo do presente. Profundo e muito tocante! Hanami – Cerejeiras em Flor (Drama, Alemanha/ França, Filmes da Mostra, 2008).
3 O AMOR ESTÁ NO AR
Quem nunca sonhou em viver um romance na capital francesa? Se você faz parte desse grupo, irá se deliciar com Paris, Te Amo. Mas saiba de antemão que não encontrará aquele monte de clichês relacionados à Cidade Luz. O filme é uma colagem de 18 curtas-metragens dirigidos por grandes cineastas, como Walter Salles e os irmãos Cohen. São histórias de encontros, desencontros, solidão e incomunicabilidade. Uma ótima pedida para se apaixonar por Paris, claro! Paris, Te Amo (Romance, França, Imagem Filmes, 2006).
4 JUNTOS, ACIMA DE TUDO
Dizem que toda família tem seus dramas. Só mudam os endereços. No caso dos Hoover, os problemas são acachapantes, como também o amor e a solidariedade que os une, literalmente, já que passam quase todo o filme dentro de uma Kombi. A viagem tem um motivo: levar a caçula Olive (Abigail Breslin) para participar de um concurso de beleza. Detalhe: a garota não se encaixa nos padrões estéticos vigentes. Uma maneira bem-humorada de criticar a sociedade americana, abordando temas como a obstinação pelo sucesso e a velhice. Pequena Miss Sunshine (Comédia dramática, EUA, 20th Century Fox Film, 2006).
5 ELES FALAM SOBRE ELAS
O diretor espanhol Pedro Almodóvar, astuto desbravador da alma feminina, volta sua câmera, dessa vez, para a cumplicidade masculina. Lado a lado, vivendo situações similares, estão Benigno (Javier Cámara), um jovem enfermeiro, e Marco (Dario Grandinetti), escritor. Ambos acompanham o calvário de duas mulheres hospitalizadas em estado de coma.
Enquanto atravessam esse período de incertezas, tornam-se amigos e confidentes. Benigno, o mais terno, instiga o colega, anestesiado em face da fatalidade, a exercitar sua sensibilidade, na tentativa de aproximar-se de sua esposa. Essa é a deixa para os dois trocarem impressões sobre as mulheres. Para eles, seres complexos e misteriosos. Com isso, o sexo feminino acaba, como sempre, ocupando o centro da narrativa. Fale com Ela (Drama, Espanha, 20th Century Fox Film, 2002).
6 CORAGEM NAS ALTURAS
Nada como admirarmos a saga de uma pioneira para saírmos do cinema dispostas a conquistar o mundo. É assim que você vai se sentir depois de conhecer a biografia de Amelia Earhart (Hilary Swank), a lendária aviadora que desapareceu enquanto sobrevoava o Oceano Pacífico em 1937. Destemida, ela queria contornar o planeta, depois de ter-se tornado a primeira mulher a fazer a travessia do Oceano Atlântico no comando de um avião. No campo afetivo, Amelia dividiu-se entre dois grandes amores: o marido George Putnam (Richard Gere), relações públicas e magnata do mercado editorial, e o piloto Gene Vidal (Ewan McGregor), amigo de longa data. Amelia (Drama, EUA/Canadá, 20th Century Fox Film, 2009).
7 VIDA REFEITA
Depois do divórcio, a vida da escritora Frances (Diane Lane) perde a cor. Mas as luzes da Toscana a aguardam. Ela não sabe disso quando embarca numa excursão para a terra dos girassóis. Do outro lado da tela, saboreamos cada passo da sua jornada de reconstrução. A começar pela compra de uma casa antiga. Após a aquisição, começam seus esforços para se colocar de pé, bem como para restaurar a deteriorada edificação. O medo e a solidão logo são afugentados com a chegada de novos amigos, sabores e amores. Sob o Sol da Toscana (Romance, EUA, Buena Vista, 2003).
8 O FEMININO FERIDO
A sinopse de Lemon Tree prepara o espectador a encarar um filme sobre o conflito entre Israel e Palestina. A surpresa, emocionante, por sinal, é perceber a certa altura o recorte sensível do roteiro: a opressão do feminino por duas culturas belicosas e patriarcais. Salma, uma viúva palestina, vê sua plantação de limoeiros ser ameaçada quando o Ministro de Defesa de Israel se muda para a casa ao lado.
As árvores, às quais dedica todo seu zelo, colocam a segurança do político em risco. Para que não sejam derrubadas, a protagonista se lança numa batalha judicial. Com o fervor de uma mãe em defesa de seus filhos, ela rompe o silêncio imposto às mulheres e se faz ouvir. Lemon Tree (Drama, Alemanha/França/Israel, Imovision, 2008).
9 GUERRA DOS SEXOS
A vida a dois tem nuances ora hilárias, ora dramáticas. Cenas patéticas de ciúmes, ataques de carência, distanciamento, dúvidas, inseguranças. Todas as gradações do amor estão presentes neste filme, que revelou o cineasta Woody Allen. Alvy Singer (Allen) e Annie Hall (Diane Keaton), ele, comediante, ela, cantora, se conhecem, se apaixonam e, em pouco tempo, passam a dividir o mesmo teto.
Eis que as diferenças emergem, desestabilizando a união do casal. Alvy é inseguro, atrapalhado e receoso de perder sua liberdade. Annie, por sua vez, é jovem, intensa e impulsiva. As agruras do casal rendem diálogos satíricos, bem-humorados e inteligentes, com recorrentes alusões à psicanálise, marca inconfundível desse cineasta novaiorquino. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Comédia, EUA, 20th Century Fox Film, 1977).
10 DIVA EM AÇÃO
Quem não conheceu o glamour da década de 1950 precisa assistir a essa deliciosa comédia, centrada no brilho de Marilyn Monroe. A loira fatal interpreta a cantora Sugar, líder de uma banda composta apenas por integrantes do sexo feminino. No meio do batalhão de mulheres, os músicos Joe (Tony Curtis) e Jerry (Jack Lemmon) fazem malabarismos para conquistar a beldade.
Mas aí que está a graça da trama. Eles não podem revelar suas verdadeiras identidades, já que estão disfarçados de donzelas. Medida desesperada após terem acidentalmente testemunhado uma chacina cometida por gângsteres na violenta Chicago de 1929. Garantia de boas risadas! Quanto Mais Quente Melhor (Comédia, EUA, 20th Century Fox Film, 1959).
FERREIRA GULLAR
Morte com data certa
Na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca
ELE A viu, pela primeira vez, numa fotografia. No mezanino da escola, na parede oposta à dos janelões, havia uma série de fotos que documentavam alguns momentos memoráveis daquele estabelecimento formador de quadros políticos que teoricamente iriam mudar a face do mundo.
Não obstante, ali se realizavam reuniões festivas de que participavam diretores, professores, alunos e tradutores. Lina era uma tradutora e, sem sombra de dúvidas, a mais linda de todas.
Ela ocupava, em primeiro plano, o canto esquerdo da foto, os cabelos presos na nuca e um sorriso que lhe iluminava o rosto redondo de menina. Calçava botas de cano alto e uma saia justa que lhe deixava à mostra os joelhos.
Era como uma fada jovem, numa aparição de encanto, naquele universo político-ideológico. Suspirou, certo de que aquela mulher estava fora de seu alcance, fora do alcance mesmo de seus olhos. Seria, talvez, uma visitante, que ali aparecera como convidada em alguma das festas.
Viu a tal foto na primeira semana de sua chegada ao instituto, quando os cursos mal se iniciavam e as turmas ainda estavam incompletas. Poucos dias depois, as aulas começavam e foi aí que a viu em pessoa, lanchando na "stalovaia" da escola. Ela estava numa mesa próxima, tomando café e conversando com um grupo que falava espanhol.
Em determinado momento, seus olhos se cruzaram, mas ela logo se voltou para alguém, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e riu discretamente. De noite, na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca.
Soube depois que era tradutora encarregada dos coletivos de alunos de língua espanhola, todos latino-americanos. Como os brasileiros se enturmavam com estes, também se davam com ela e foi assim que, certa tarde, na mesma lanchonete, ela sentou-se na mesa em que ele estava com um casal carioca.
Foram apresentados e ela não pareceu dar maior importância ao fato, embora ele tivesse a impressão de que o seu olhar de algum modo a perturbava.
Por sorte, algumas semanas depois, houve uma festa promovida pelo coletivo argentino, com tangos e tudo o mais, e nessa noite ele a tirou para dançar. Disse-lhe ao ouvido que a achava linda ("ótin craciva") e ela empalideceu. Quando a festa acabou, ela, nervosa, sussurrou-lhe que a esperasse na estação do metrô. Pouco depois, tomavam o trem, desciam na estação perto da casa dela e, já de mãos dadas, penetravam num parque escuro e deserto àquela hora da noite.
Puxou-o pela mão, sentaram-se num banco e ela, sorrindo, soltou os cabelos ruivos que lhe caíram encantadoramente sobre o rosto. Tentou beijá-la, mas ela se esquivou, ergueu-se do banco e o levou pela mão até à porta do edifício onde morava. Ali, beijou-o na testa e, com um adeusinho, sumiu no portão. Ele, de volta a seu quarto na "abchejite", mal acreditava no que acabara de viver.
Ela era casada, vivia com o marido mas já não eram marido e mulher; é que, no socialismo, se o casal ganhara um apartamento, não tinha direito a outro, pouco importando se o casamento acabara ou não.
Na primeira noite em que ela o levou à sua casa, o marido ainda não havia chegado. Serviu-lhe um jantar, na cozinha, e ele, não podendo conter-se, declarou-se apaixonado por ela. Foi então que Lina lhe ofereceu a boca para um beijo que jamais esqueceria.
O marido, Andrei, chegou lá pelas nove horas. Beberam vodca juntos e, como nevasse muito, aproveitou para dormir lá mesmo, no sofá da sala. De manhã, quando o marido se preparava para ir trabalhar, fingiu que ainda dormia e só se levantou depois que ele se foi. Aí entrou no quarto, jogou-se sobre Lina na cama e se amaram loucamente.
Mas aquele amor tinha data certa para acabar: terminaria o curso e ele teria de deixar o país. Na véspera da partida, foi para a casa dela e lá ficaram, os dois, de mãos dadas, beijando-se e chorando.
Nem ele podia ficar nem ela podia mudar de país. Sem alternativa e para não perder o metrô, decidiu ir embora, sabendo que nunca mais a veria na vida. Mesmo assim, saiu e atravessou o parque, como um autômato.
Na manhã seguinte, como um autômato, foi para o aeroporto, entrou no avião e partiu. Faz 37 anos e seis meses. Nunca mais se viram.
DANUZA LEÃO
Liberou?
"Em condições específicas", disse o papa; e existe condição mais específica do que o desejo? E o amor?
TUDO PODE SER interpretado, veja-se o caso da escolha da nova equipe econômica. Segundo os que entendem de tudo, se para o Banco Central for A, significa que os juros vão subir, se for B, que a gastança vai continuar -ou o contrário. Se Palocci aparece mais -ou não aparece-, a interpretação vem logo: ele vai para a Casa Civil, ou não vai mais.
Como o ser humano adora interpretar, imagine o prato cheio que foi a declaração do papa, dizendo que em condições específicas -por exemplo, um profissional do sexo que seja soropositivo- o uso de preservativo é permitido. Ora, se para tudo na vida existem várias interpretações, imagina nesse assunto.
Para começar, foi uma surpresa saber que a Igreja Católica aceita que exista a prostituição. Se, para ela, o sexo é só para procriar, como admitir profissionais -homens e mulheres- do sexo?
Não vamos esquecer que houve uma pequena confusão na tradução das declarações do papa; teria ele dito "garotos de programa" ou "prostitutas"? Então a Santa Madre Igreja admite também a existência de "garotos de programa"? Moderna, não?
Agora, às interpretações. E se não for um/uma profissional do sexo, mas um empresário/a, contaminado, que saia para namorar. Nessas condições, a Igreja aceita? Mas devem existir casos em que a pessoa tem uma suspeita, mas não a certeza de ter o vírus; se for um/a profissional, pode usar camisinha. Se não for, não pode -claro, já que é pecado transar. Difícil, essa Igreja.
Li ontem que, no mundo, 15 pessoas são infectadas por dia pelo HIV. Fiquei pensando: se o IBGE fizesse perguntas sobre a vida sexual de todos os habitantes do mundo, seria possível saber quantas relações sexuais acontecem a cada 24 horas.
Sendo a população em torno de 6 bilhões, vamos fazer uma continha rápida. Digamos que 1/3 sejam crianças, 1/3 idosos; sobram 2 bilhões de adultos. Supondo que, desses 2 bilhões, 100 mil sejam sexualmente ativos -portanto, 50 mil casais -, e que esses casais transem uma vez por mês.
Seriam quase 2.000 transas diárias, o que nem é tanto assim, mas não acredito que todas tenham a intenção de procriar. E não acredito, mas não acredito mesmo, que por mais religiosas que sejam as pessoas, na hora do desejo elas se contenham, lembrando que é pecado. Lamento, mas não dá.
"Em condições específicas", disse o papa; e existe condição mais específica do que o desejo? E o amor? São as duas condições mais específicas que existem, e é triste ver como a Igreja ainda encara o sexo: ou é para ter um filho, ou para evitar a morte. Para ser mais alegre e mais feliz, nem pensar.
Então, a pedofilia dos padres deveria mandá-los não para o inferno, mas para mil infernos, se isso fosse possível. Porque além do crime da pedofilia, eles estão abusando do poder que têm, levando risco de infecção para o garoto e ferrando com a cabeça dele para o resto da vida.
Acho que Bento 16, com aquela cara de antigo, está sendo o papa mais moderno que a Igreja jamais teve. Ele não precisa liberar geral. Mas se liberar o sexo entre as pessoas que se amam, merece ter uma longa vida para ver a volta do rebanho à Igreja.
danuza.leao@uol.com.br
ELIANE CANTANHÊDE
De leviandades
BRASÍLIA - ""O dia em que sofri mais foi no acidente de avião da TAM em Congonhas. Nunca vi tanta leviandade."
A frase de Lula, para blogueiros no Planalto, seria muitíssimo mais apropriada aos pais, mães, filhos, filhas, maridos, mulheres, amores, amigos e colegas dos 199 mortos da explosão do TAM 3054.
O caos aéreo comia solto havia dez meses, desde a queda do Boeing da Gol que matou 154 pessoas e abriu inédito caos aéreo: controladores em pé de guerra, Infraero, Anac e Decea se engalfinhando, companhias cancelando e atrasando voos, pilotos e tripulações em níveis de estresse nunca vistos e passageiros jogados no chão dos aeroportos.
O acidente do Gol 1907 foi em 29/9/2006, e o do TAM 3054, em 17/7/2007. É justamente o período de pico do caos aéreo, e Lula não mexeu uma palha para resolver a crise. Achava que as coisas se resolveriam por gravidade. Mas a gravidade foi contra e veio a tragédia de Congonhas. Só aí ele agiu.
O Airbus explodiu no dia 17 e Lula trocou o ministro da Defesa no dia 25, num reconhecimento inequívoco de que os erros começavam no próprio governo. De Waldir Pires para Nelson Jobim, a cadeia de comando foi se restabelecendo aos poucos e o caos foi simultaneamente recuando. Coincidência?
Se Lula não lê a imprensa independente e tem dúvida sobre a responsabilidade do seu governo no acidente da TAM, deve ler o relatório do Cenipa (órgão da FAB que investiga acidentes). A culpa é da posição errada dos manetes, ok. Mas havia "o momento particular" da aviação, "o clima tenso" a bordo, os passageiros "estressados".
Logo, "é possível supor que o cenário no qual ocorreu o acidente (...) tenha contribuído para sua consumação, notadamente, sob a forma de uma permanente pressão psicológica sobre seus tripulantes".
Leviandade por leviandade, a pior é a de quem permitiu que a coisa chegasse a esse ponto.
sábado, 27 de novembro de 2010
28 de novembro de 2010 | N° 16533
MARTHA MEDEIROS
Atração pelo apocalipse
Ainda é grande o número de pessoas que resiste em entrar para as estatísticas dos sem noção
Faz um tempo que estou querendo falar sobre isso, mas não sabia como, e pra falar a verdade ainda não sei. Tem a ver com a expressão todo mundo. Quem é esse tal de todo mundo?
Todo mundo está obcecado por sexo, todo mundo só dá valor ao dinheiro, todo mundo está deprimido e finge que é feliz. Será mesmo que a gente eu, você, nós todos, todo mundo caiu nessa cilada de viver de aparências?
Temos essa mania de generalizar, de passar adiante coisas que escutamos aqui e ali, de reforçar um pensamento que não é tão universal assim.
Eu mesma, às vezes, coloco tudo no mesmo saco para justificar uma ideia, mas façamos uma investigação mais minuciosa: todas as mulheres que você conhece são obcecadas por rejuvenescimento, vivem aplicando toxinas no rosto, não possuem nenhuma vida interior, nadinha? Inteligência zero?
Convivo com muitas mulheres cultas e inteligentes que são vaidosas com parcimônia e que não se rendem a métodos violentos para fingirem ser mais jovens do que são. E com homens igualmente cultos e inteligentes que são viris sem serem cafajestes. Esse “todo mundo” é uma fraude. Ainda é grande o número de pessoas que não perdeu os critérios, que resiste em entrar para as estatísticas dos sem noção e dos sem personalidade.
O que eu estou querendo dizer, caso ainda não tenha ficado claro, é que tem muita gente por aí que privilegia as coisas simples e naturais, que não faz plástica como quem faz depilação, que não transa com qualquer um só para ser moderno.
Tem muita gente que não investe todo seu salário em grifes, tem muita gente que nunca foi entrevistada, nem consultada, nem faz parte dessas estatísticas duvidosas que dizem que está “todo mundo” considerando que ser bonito e sarado é o passaporte para a felicidade.
Programas de tevê, imprensa sensacionalista, novelas, tudo isso diverte, mas nem sempre é uma amostra fidedigna do universo. Representam uma pequena parcela da sociedade que se sustenta no egocentrismo, porém por trás dos holofotes há uma imensidão de pessoas livres de pressões estéticas.
O verdadeiro “todo mundo” é amplo, imenso. Não se reduz a criaturas que dizem amém a meia-dúzia de regrinhas de revista, que seguem padrões estereotipados para se sentirem alguém. A autenticidade morreu? Morreu nada. Me recuso a acreditar que está todo mundo burro. Não estou idealizando uma sociedade heterogênea: ela é heterogênea de fato.
Chega de insistir nessa ideia de que todos são fúteis, que a sociedade apodreceu. Há muita gente por aí, uma infinidade de cabeças boas que curtem um por-do-sol, que estão se lixando para prazeres falsificados e que valorizam a paz de espírito antes de qualquer coisa.
Chega desses desenganos públicos que viram pauta jornalística, chega desse apocalipse moral vendido como regra. Há muitos estúpidos entre nós, mas eles ainda não são “todo mundo”.
Um gostoso domingo. Bom final de semana
28 de novembro de 2010 | N° 16533
MOACYR SCLIAR
Woody Allen e a velhice
O ideal seria gostar da vida e saboreá-la até o último instante
Woody Allen está com 74 anos. E não gosta da idade que tem. Mostra-o o seu mais recente filme, Você vai Conhecer o Homem de seus Sonhos (You Will Meet a Tall Dark Stranger). Como é comum no cinema alleniano, há várias histórias paralelas. Anthony Hopkins divorcia-se de sua esposa de muitos anos (Gemma Jones).
Em busca da juventude, casa com uma jovem prostituta, tem de recorrer ao Viagra e é traído. Já a ex-esposa procura uma adivinha, com a esperança de encontrar o homem de seus sonhos.
A filha de ambos (Naomi Watts, excelente) está casada com um escritor medíocre, que tenta, sem êxito, repetir o sucesso do primeiro livro; ambos, igualmente, buscam a resposta para suas inquietudes em casos extraconjugais. Mas Allen não aposta muito nisso; para ele, o tall dark stranger talvez seja, não um ideal romântico, mas o Anjo Exterminador.
Em relação à morte, disse Allen numa entrevista: Tenho uma posição definida: sou contra. Mas a velhice é inevitável: problemas de visão, de audição, de indigestão, dores (bem de acordo com aquele dito da Marieta Severo: se você está velho e acorda sem dores, provavelmente está morto). Aliás, e não por acaso, o filme cita a frase de Shakespeare em Macbeth, segundo a qual a vida é uma história /contada/ por um idiota, cheia de /som e fúria/, significando nada.
À qual o pessimista Allen acrescenta: A única maneira de ser feliz é contar a você mesmo algumas mentiras e acreditar nelas. Nem como cineasta ele se poupa: Tive completa liberdade artística, coisa que outros diretores não conseguiram; entre uns 40 filmes, deveria ter pelo menos 30 obras-primas, mas isso simplesmente não aconteceu.
Woody Allen não está sozinho em suas queixas. Num mundo que valoriza, de maneira quase religiosa, o novo e a inovação, velhice não está com quase nada; não por outra razão, usa-se as expressões “terceira idade” e “melhor idade” (esta um trocadilho patético com “maior idade”) para minimizar o desconforto sentido por muitas pessoas.
Da mesma maneira, a palavra velho admite variantes. A primeira é o diminutivo. “Velhinho” é o termo que as pessoas usam com uma mistura de afeto, de compaixão, de humor. E que tem fundamento: com a idade, a pessoa encolhe, torna-se menor. Isso sem falar em traços infantis que então emergem – essas pessoas que gostam de brincar, de dançar, de se fantasiar. O velhinho é isso, uma pessoa engraçada, simpática, comovente.
Já “velhote” tem outro significado; o velhinho é puro, inocente, alguém que, inclusive, já se livrou das constrangedoras e imorais pressões do sexo. O velhote (que podemos imaginar com cavanhaque e olhar brilhante) é um cara vivaz, meio safado, mas ainda simpático. O velhaco, não. E aí há um motivo para estranheza, porque a palavra velhaco, que designa um trapaceiro, um vigarista, não vem de “velho”. É então simples semelhança?
Ou uma associação significativa, a indicar que, para sobreviver na dura luta pela vida o velho ou o velhinho precisam se tornar velhacos, como aqueles que, na Bíblia, ficavam espiando a casta Suzana pelada no banho? De qualquer maneira há algo de admirável no velho velhaco: é o apetite pela vida, mesmo que mediado pela sacanagem.
O ideal seria gostar da vida, saboreá-la até o último instante. O ideal seria aceitar a palavra velho com a maior naturalidade possível. Ou então recorrer às variantes do termo, tentando, através deles, encontrar, se não uma explicação, pelo menos uma maneira mais divertida de viver. Uma maneira divertida como, digamos, os filmes de Woody Allen.
28 de novembro de 2010 | N° 16533
PAULO SANT’ANA | MÁRIO MARCOS DE SOUZA - INTERINO
Aos mestres, com carinho
Nunca esqueci do toque daquela mão. Quando subi uma pequena rua para meu primeiro dia de aula, estava inseguro, trêmulo, assustado, louco para soltar as mãos firmes e calejadas de marceneiro de meu pai e fugir dali. Foi então que vi o braço estendido. Foi um toque mágico.
Quando segurei a mão direita daquele mulher meiga, com cabelos claros e voz suave, perdi todo o medo e me refugiei no conforto de dona Teresinha, a mulher que seria minha professora. Foi a primeira e fulminante paixão da minha vida. Durou pouco, mas nunca mais esqueci daquele dia – e olha que já se passaram 55 anos.
Não foi a única professora a me marcar profundamente. A outra eu conheci melhor ainda – uma normalista chamada Antonina. Minha mãe. O que mais me impressionava era a relação dela com os alunos. Lembro bem do orgulho que sentia, já chegando à adolescência, quando caminhava ao lado dela e via pessoas mais velhas irem em sua direção para um cumprimento respeitoso.
Ficavam ali, muitas vezes mostrando a antiga professora para os filhos, e falando das velhas lições. Era uma conversa cheia de reverências. Parecia não haver nada mais importante na vida de cada um daqueles já senhores do que a antiga professora. Dava um orgulho danado.
As duas explicam bem o respeito e o fascínio que sempre tive pelo trabalho das professoras (sou tão fascinado por elas, que me casei com uma). Como não admirar? Elas fazem parte de uma categoria desvalorizada por sucessivos governos, desrespeitada por muitos alunos e pais, submetem-se ao esforço de trabalhar em escolas sem condições, ganham pouco e mesmo assim não desistem.
Mantêm a força e o entusiasmo para educar nossos filhos – e nem sempre são devidamente reconhecidas. Não há uma pessoa que não tenha a imagem de uma professora ou de um professor bem guardada lá naquela zona cerebral dos afetos.
Por isso, se tivesse direito de fazer um único pedido ao futuro governador Tarso Genro, seria este: encare o magistério como a primeira de suas prioridades. Tudo começa por aí. Melhore os salários e as escolas, acabe para sempre com este equívoco da enturmação, rejeite aquela ideia típica de gestores de que o Estado tem de funcionar como uma empresa. Nem sempre. Se houver uma única criança em uma escolinha da zona rural, lá deve estar um professor.
Esta é a obrigação do Estado, dar educação a seus jovens, não importa se a planilha de custos desça alguns graus. Não se pode raciocinar com a cabeça dos xerifes do cofre quando o investimento envolve a educação das pessoas.
Nem precisamos olhar para países ricos para buscar exemplos. Cuba, que é pobre, com número de habitantes semelhante ao do Rio Grande do Sul, mantém turmas de no máximo 20 crianças por sala.
Seus especialistas concluíram que todos ganham, professores e alunos. Lá não há crianças abandonadas, nem pedintes, como qualquer turista pode comprovar, mesmo os que repudiam o regime político do país. Por quê? Porque todas estão nas escolas, das 8h às 16h.
Se Cuba consegue, por que nós ficamos tão longe disso? Invista na área, governador, com a certeza de que as gerações futuras agradecerão. Depois, então, quando todas as escolas estiverem em um mesmo nível, o senhor verá que nenhum professor reclamará de avaliações de mérito – e as crianças nunca mais esquecerão das donas Teresinhas e Antoninas de suas vidas.
28 de novembro de 2010 | N° 16533
DAVID COIMBRA
A pergunta do menino do Morro da Cruz
00 “Tu já usou drogas?”
Pergunta objetiva, formulada no português mal conjugado dos gaúchos, saída da boca de um menino de, sei lá, 14 ou 15 anos. Nos olhos dele rebrilhava a luz da malícia, sinal do caráter decisivo da pergunta. Uma espécie de cilada, mas, de alguma forma, parecia ser realmente importante para ele saber se eu já havia usado drogas ou não. Para ele e para os outros, dezenas de meninos e meninas que me ouviam, estava dando uma palestra em uma escola do Morro da Cruz.
E agora? A resposta óbvia seria: “Jamais! Imagina!” Mas seria resposta de candidato a vereador, insatisfatória, insincera. Ali estavam crianças acostumadas com o ambiente das drogas. Sabia disso. Como eles, fui criado na rua. Conheci traficantes, vaporzeiros, drogaditos, alguns de meus companheiros de infância hoje são presidiários.
Mas dizer a adolescentes que já usei drogas não seria uma liberação para que eles também usassem? Não seria um mau exemplo?
Todas as crianças me encaravam, expectantes. Resolvi ser honesto:
– Já experimentei drogas. Não algo violento como o crack, que faz grande mal desde o primeiro contato. Mas experimentei, sim, e foi por fraqueza, levado pela turma. Agora: sabem por que não usei mais?
Produzi uma pausa para causar impacto. Eles esperavam, interessados. O que se deve dizer a um adolescente para fazer com que ele não queira usar drogas? Que a droga é ruim? Balela: se fosse ruim, ninguém consumia. Que faz mal à saúde? Inútil: adolescentes se julgam imortais. Fui honesto de novo:
– Não usei mais drogas por que quem usa drogas é otário. Vocês conhecem algum grande traficante que seja drogado? Claro que não: traficante não se droga. Traficante é espertalhão. Vocês conhecem algum viciado com mais de 40 anos de idade? Claro que não: viciados com mais de 40 anos de idade estão todos mortos. Por isso, quem usa drogas é otário. Eu não sou otário.
Não tenho certeza de ter sido convincente, mas tenho certeza de que eles perceberam que falava a verdade. Que lhes expus a realidade. Porque eles, aqueles meninos do Morro da Cruz, eles sorvem todos os dias a realidade mais dura da vida urbana. Sei que alguns daqueles meninos se tornarão drogados e traficantes.
Sei até que um deles, meses depois, se suicidou, na certa por não suportar a tal realidade da vida urbana. Mas sei, também, que muitos serão homens e mulheres decentes e criarão os filhos para que sejam melhores do que eles, como anseiam todos os pais.
O que faz a diferença? O que salva uma criança e o que a torna vítima do mundo-cão?
Uma família bem constituída é a resposta óbvia, mas é igualmente óbvio que famílias bem constituídas são raridade no século 21.
Mas existe algo que pode fazer desses meninos verdadeiros cidadãos: são escolas como a do Morro da Cruz, são professores como aqueles que lá cumprem a sua missão. A Educação, ou seja, o Estado atuante, pode fazer a diferença a favor das crianças do Brasil.
Mas, se o Estado não age para salvar as crianças, o que acontece com elas é o que se viu na TV durante esta semana: elas se transformarão em homens como aqueles bandidos de bermuda e sem camisa, com fuzis no ombro, que se esgueiraram feito ratazanas de um morro para outro, no Rio conflagrado.
A guerra do Rio vem sendo definida como a luta do “bem” contra o “mal”. Os jornais festejaram que o crime foi encurralado, que o “Dia D” do enfrentamento contra os bandidos chegou, que o Rio está se debatendo para “voltar à paz”. E, sobretudo, estão especulando se o Rio poderá sediar a Olimpíada, se a Copa do Mundo brasileira não sofrerá prejuízos com tal situação.
Ingenuidade.
Se todos aqueles milhares de bandidos forem mortos ou presos, todos eles sem exceção, se TODOS forem eliminados, nada mudará. Em seis meses, os níveis de criminalidade retornarão aos atuais patamares. Porque o fornecimento de material humano para a bandidagem não foi interrompido.
Só será interrompido quando todos os meninos como aqueles do Morro da Cruz forem atendidos integralmente pelo Estado. Quando nenhum menino sequer tenha curiosidade de saber se um adulto já usou ou não drogas.
A Copa do Mundo brasileira não corre nenhum risco. A Olimpíada brasileira não corre nenhum risco. Tudo continuará igual. O risco, quem corre, são os meninos do Brasil. Que são o próprio Brasil.
Travessia de volta
Nico Fagundes conta como enfrentou “a sanga escura e funda” que o abateu durante 10 dias
Não é fácil morrer. Parece fácil, mas não é. Em dois casos: quando os melhores recursos médicos estão disponíveis e quando o enfermo é amparado por uma verdadeira corrente humana e espiritual de parentes, amigos e admiradores. A isso se soma ainda o natural instinto de sobrevivência que normalmente é tão forte em cada ser humano.
No meu caso foi assim. Atravessei uma sanga escura e funda e muita gente boa achou que eu não completaria a travessia: uma vil bactéria me deu um pealo de cucharra, e eu quase não chego do outro lado. Aos 76 anos, afinal de contas, não sou mais guri, obviamente não tenho a resistência que me fez atravessar até aqui todas as sangas, folheirito no mais.
Não foi fácil, claro. Durante 10 dias, curti dores atrozes, entrei e saí de coma, delirei como um alucinado, mas venci. Poderia dizer como Jean Mermoz: “O que eu fiz, palavra que nenhum bicho – só um homem poderia ter feito”.
Ao longo desses dias, nas horas de desespero, eu me grudava nas mãos da minha Anitinha como um náufrago ao escolho e ela ali, firme, impávida, procurando transmitir serenidade, sem nunca deixar de acreditar em mim. Nunca duvidou e nunca abandonou seu posto, às vezes usando com habilidade a network de sua capacidade de fazer amizades e conquistar pessoas, sobretudo os médicos e as enfermeiras do Hospital Moinhos de Vento.
Quer dizer: conquistou assim, e acredito que para sempre, a minha família e os meus amigos que até agora não cessam de elogiar a sua atuação na crise. Porque a minha família sempre esteve ali. Os Fagundes são uma “societas” como as “sceleres” da Roma antiga, só que no nosso caso o que nos une é o amor. É incrível e indestrutível o profundo amor que une um Fagundes aos outros. Acho que é coisa do velho Euclides e da Dona Mocita. Um amor disciplinado pela Igreja Metodista, que é a nossa confissão religiosa.
Lá estavam os meus irmãos Aldo e Bagre (o Júlio César e o João Batista ligavam de longe), lá estavam Marlene Villaverde Fagundes, a mana Florinha (a mana Irlê telefonava do Alegrete, a mana Elida, que é Presbítera da nossa igreja me mandava a bênção de Gideon “Deus está contigo, homem valente” e sustentava a Anitinha com seu conforto espiritual). Os sobrinhos, Neto, Ernesto, Paulinho e Luciana, não arredavam o pé do hospital, onde o Pastor Ivo entrava e saía tanto como os médicos do Moinhos de Vento.
Pessoas queridas saíam chorando ao ver que o amigo estava morrendo. Muita gente deve ter surpreendido os visitantes com suas lágrimas: Rodi Pedro Borghetti, Carlos Castillo, o Bibiko da Sauna (“Te Larguei”), o querido Andre Sacola, Carlinhos Castillo, que é ateu assumido, se pegou num mano a mano com Deus para salvar o amigo... De longe, o padre Mário Scopel dos Cavaleiros da Paz rezou uma missa inteira em latim para salvar o seu Comandante.
Mas foi fundamental o atendimento de primeira hora da dra. Jane Costa do Hospital de Caridade ainda em Santa Maria, do prefeito Cezar Schirmer, do apoio da RBS TV, que nunca deixa a sua peonada de a pé (gracias, Neymar e Márcia). Da RBS, os grandes Nelson e Jayme Sirotsky, Alice Urbim e equipe do Galpão Crioulo eram constantes.
E me comoveu muito saber agora que o Jorginho e o Maguila do Galpão Crioulo choravam como crianças pensando que perdiam o amigo. O Clube de Truco Pitoco esteve sempre lá, capitaneado pelo dr. Nei Machado.
O dr. Cyro Leães, que comandou essa operação de guerra, teve o seu nome trocado pelo Bagre: agora é Dr. Salvador. Que Deus abençoe sempre e muito aquelas pessoas maravilhosas que desde longe, até da Europa e da Argentina, no lombo do cavalo fizeram círculo de orações. Eu estava exagerando no trabalho e Deus me mandou um alerta. Combinamos a Anitinha e eu diminuir o ritmo.
A lição valeu.
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES
JOSÉ SIMÃO
Rio Fogo! Chama a Mangueira!
A ironia tragicômica: um táxi foi incendiado. Sabe como como era o nome do taxista? Ricardo Cinzas!
BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!
Rio 400 Graus! Rio em Chamas! CHAMA A MANGUEIRA! Rarará! Apela pra escola de samba: Chama a Mangueira!
E sabe qual a diferença entre São Paulo e Rio de Janeiro? É que São Paulo tem a Marginal parada. E o Rio tem marginal correndo.
E o site manourbano lançou um novo videogame: "PLAYPOBRE STATION! Tropa de Elite em 3D. Breve na porta da sua casa. Traficantes, Bope, tanques, carros incendiados e muito mais".
E parece filme mesmo. Ontem aqui em casa, quando os bandidos saíram fugindo da polícia, todo mundo gritou, levantou e bateu palmas! E a charge do Bessinha com o piloto: "Senhores passageiros, estamos sobrevoando a cidade maravilhosa do Rio de Jan... cof cof cof!".
Só falta o Pão de Açúcar entrar em erupção. Até o túnel Rebouças pegou fogo. Diz que o Lula vai lançar o REBOUÇAS FAMÍLIA: todo carioca terá direito a ver uma luz no fim do túnel. É um carro pegando fogo! Rarará!
E aquele carioca em chamas gritando: "Incendiaram minha camisinha". Mas a melhor manchete da semana é a do Sensacionalista: "Bandidos incendeiam Corcel 72 e dono agradece". Rarará!
E a ironia tragicômica: um táxi foi incendiado. Sabe como se chama o taxista? Ricardo Cinzas!
E o Rio tem que peitar esses bandidos virados na porra! O Anarcotráfico! E o trem-bala? Como disse o outro: "Só falta o trem". Rarará!
Trem-bala! Só falta o trem! Mas não é mais trem-bala. É trem à prova de bala! Trem-bala Perdida: sai do Rio e ATINGE São Paulo. E São Paulo devolve bala! ABALA!
E eu quero fazer uma pergunta pro papa: "Camisinha sabor morango pode?". Rarará!
E mais um predestinado. É que saiu um livro chamado "Sexo Trocado". Autor americano escreve sobre menino que fez cirurgia de reconstrução do pênis. Como é o nome do autor? John COLAPINTO! Rarará!
Cirurgia de reconstrução do pênis com John ColaPinto. Rarará! A situação está ficando psicodélica. Ainda bem que nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
simao@uol.com.br
27 de novembro de 2010 | N° 16532
NILSON SOUZA
Cortina de fumaça
Saí do hospital e fui ao supermercado.
Próximo à entrada do templo de compras, encontrei quatro adolescentes, dois meninos e duas meninas, todos lindos, sorridentes, felizes com a própria perfeição – peles lisas, cabelos bem cuidados, olhos brilhantes de vida e futuro.
Sentaram-se descontraidamente na calçada e, um a um, começaram a acender seus cigarros. Quando olhei para trás, aqueles belos rostos estavam encobertos por uma espessa cortina de fumaça que logo se dissiparia no ar seco do sábado ensolarado.
Pensei em voltar. Se não estivesse tão amargurado, acho que teria voltado. Então, pararia diante daqueles garotos desconhecidos até que fixassem em mim seus quatro olhares desconfiados. Aí eu abriria o meu próprio sorriso, já um tanto usado e meio sem graça, mas ainda autêntico, e diria com a voz mais natural possível:
Posso me sentar entre vocês e contar-lhes uma história?
Caso assentissem, e não me julgassem maluco, começaria por perguntar o nome de cada um deles, para conquistar alguma simpatia. Então, me apresentaria, diria que contar histórias faz parte deste ofício que exerço com paixão há mais de quatro décadas.
Diria mais, sempre cuidando para não assustá-los com explicações excessivas, que tenho o costume de anotar fatos, paisagens e movimentos humanos para recriá-los em outros formatos no mundo das palavras. Por fim, explicaria que naquele exato momento eles, os quatro jovens, já então possivelmente interessados na minha conversa, estavam se transformando em personagens para esta crônica.
Ah, e a história? Na UTI do hospital que eu recém visitara, estava um homem lutando bravamente em busca de ar para seus pulmões doentes. Conheço bem aquele homem. Posso descrever com detalhes quase todos os passos de sua existência.
Foi um menino esperto e ativo, um adolescente inquieto, um jovem bonito e namorador, um chefe de família responsável. Em algum momento de sua juventude, porém, deixou-se iludir pelo feitiço da fumaça prazerosa, pelo qual paga agora com a moeda do sofrimento. É muito doloroso vê-lo na situação em que se encontra.
Aquele homem é meu irmão.
Todos os homens e todas as mulheres são meus irmãos. Talvez eu devesse ter voltado para conversar com os meninos desconhecidos, mas estava com o coração pesado e tudo que eu dissesse poderia parecer um sermão inútil.
Calei, mas meu espírito de cronista me obrigou a fazer este registro. Quem sabe – tênue esperança de um escriba sufocado pela amargura – algum deles venha a ler este texto e conclua que a vida é preciosa demais para ser desperdiçada numa ilusão feita de fumaça.
27 de novembro de 2010 | N° 16532
PAULO SANT’ANA | MÁRIO MARCOS DE SOUZA
José e Pilar
Homem fascinado pelos mistérios da alma, o titular deste espaço deveria reservar duas horas de seu dia, suspender a tentação de fumar e assistir ao documentário José e Pilar. É um filme comovente sobre as últimas décadas da vida de José Saramago – aquelas que começaram aos 63 anos, quando ele conheceu e se apaixonou pela jornalista espanhola Pilar Del Rio, 28 anos mais jovem. Foi uma relação intensa, cúmplice, apaixonante.
– Se eu tivesse morrido aos 63 anos, antes de lhe ter conhecido, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora –, dizia Saramago, diante de uma Pilar agradecida.
– É um filme dolorosamente real e poético – reagiu a própria Pilar, ao destacar o trabalho do diretor português Miguel Gonçalves Mendes.
Sant’Ana nunca mais esqueceria.
A primeira surpresa para quem assiste ao filme é perceber como o diretor e sua equipe entraram na vida do casal. Aos poucos, depois dos primeiros contatos, Mendes passou a fazer parte da rotina de José e Pilar, a tal ponto, que em certas passagens fica a impressão de que não percebiam mais a presença da câmera.
Lá está ela enquanto eles assistem aos programas de TV, debatem política, vão ao banheiro, se aprontam para sair, viajam, cumprem uma agenda estafante. A câmera marca presença até mesmo quando Saramago passa três meses doente. Em algumas passagens, você chega a imaginar que há algum equipamento oculto, como aquele que os repórteres investigativos usam, não percebido pelos personagens. A câmera está lá – sempre ao lado do Prêmio Nobel e de sua parceira.
José e Pilar, nas viagens ou na casa da ilha espanhola de Lanzarote, mostram a cumplicidade que todo casal deveria ter. De alguma maneira, eles descobriram a fórmula de uma relação intensa, afetiva e quase perfeita. A genialidade e o humor de Saramago combinaram como nunca com a inteligência de Pilar, uma jornalista espanhola que um dia marcou uma entrevista com o escritor porque queria conhecê-lo – e nunca mais se separou dele.
– Quando a vi chegar, percebi que seria outra coisa – explica Saramago.
Por uma feliz iniciativa da administração da Vila de Azinhaga, onde nasceu, Saramago e Pilar são nomes de ruas na comunidade – e elas se cruzam em determinado ponto. Seguem juntos para sempre.
Sant’Ana vai descobrir, principalmente, que o documentário confirma uma tese defendida por ele neste espaço inúmeras vezes – a de que o envelhecimento não significa descarte.
A fase mais produtiva da existência de Saramago se estendeu dos 63 anos, quando conheceu Pilar, aos 87, quando morreu. Neste período, conheceu Pilar, casou-se em 1988, escreveu, ganhou o Nobel de Literatura, viu o brasileiro Fernando Meirelles levar para as telas Ensaio sobre a Cegueira (o momento em que ele se emociona ao ver o filme é um dos pontos marcantes do documentário), criou sua fundação, montou uma biblioteca imensa na ilha e viajou pelo mundo todo, inclusive o Brasil.
Cumpriu uma agenda de trabalho tão intensa, que em certo momento quem assiste ao filme se angustia. Quando alguém perguntava se não era cansativo demais, a doce e firme Pilar respondia que eles teriam muito tempo para descansar depois da vida – e que se surpreendia com os jovens de hoje, quase sempre cansados.
José e Pilar é, acima de tudo, uma lição de vida.
27 de novembro de 2010 | N° 16532
CLÁUDIA LAITANO
Osso duro de roer
Ainda sem o distanciamento ideal, tanto dos fatos quanto da ficção, muita gente se perguntou esta semana se a bilheteria-fenômeno do filme Tropa de Elite 2 teria, de alguma forma, influenciado a forma como os moradores do Rio de Janeiro reagiram à compacta ação contra os traficantes que tomou conta da cidade nos últimos dias.
O apoio generalizado da população, expresso em aplausos, gestos de solidariedade e um número recorde de ligações para o Disque-Denúncia, deu ânimo à polícia e mostrou que pode estar ruindo o mito do traficante protegido pela comunidade.
Nada pode ser pior para o Estado e para o cidadão comum do que uma população que tem mais medo da polícia do que do ladrão. Esta semana, no Rio, foi dado um voto de confiança à polícia.
E o Capitão Nascimento tem algo a ver com isso? Talvez seja cedo demais para dizer. O que já é possível perceber a olho nu é que os dois filmes da série Tropa de Elite ajudaram a forjar a imagem de um policial convincentemente confiável: nem tão correto que pareça inverossímil, nem tão pragmático a ponto de já ter abandonado o ideal de derrotar o crime organizado.
É possível que a população do Rio tenha visto em cada oficial do Bope um Capitão Nascimento em potencial – um sujeito treinado, bem equipado, bom naquilo que faz e, com alguma sorte, genuinamente interessado em evitar que inocentes sejam abatidos em meio a uma guerra inevitável.
Por mas sutil que seja essa mudança cultural com relação à polícia, e se ela de fato existir, Tropa de Elite está saindo do cinema para entrar na história. Como já aconteceu antes, por exemplo, com a minissérie Anos Rebeldes (1992), da Rede Globo, até hoje lembrada como um dos fatores que criou o ambiente propício para o movimento dos caras-pintadas e a renúncia do presidente Collor.
Falando no ex-marido da Rosane, nunca é demais lembrar que o mesmo sujeito que tungou as poupanças alheias foi a mente estreita que decretou que o país não precisava de cinema. Em 1992, último ano do seu governo, um único filme brasileiro chegou aos cinemas, A Grande Arte, de Walter Salles, falado em inglês. Em 2010, foram quase uma centena – inclusive a maior bilheteria do ano até agora, superando o blockbuster Avatar.
Exatos 20 anos depois do início da Era Collor, que obrigou o cinema nacional a se reinventar artística e financeiramente e a se reconectar com o público, Tropa de Elite 2 marcha para tornar-se a maior bilheteria brasileira de todos os tempos. O recorde tem até data provável para ser batido, a primeira quinzena de dezembro, quando o Coronel Nascimento deve ultrapassar os históricos 10,7 milhões de espectadores de Dona Flor (1976).
A personagem brejeira e sensual, símbolo de um país capaz de dar um jeitinho para acomodar quase tudo, até mesmo dois maridos em uma mesma cama, vai perder seu posto de preferência nacional para um sujeito cínico e sem ilusões, mas disposto a enfrentar seus problemas de frente – mesmo, e principalmente, quando eles são osso duro de roer.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Jaime Cimenti
Somos nossas histórias e as dos outros
A obra A psicanálise na Terra do Nunca - ensaios sobre a fantasia, de Diana L. Corso e Mário Corso, parte da premissa de que a ficção é muito mais do que uma forma de diversão ou de mero aprendizado.
Para os autores a ficção é igualmente o veículo através do qual se estabelece um cânone, um padrão imaginário. Nossas histórias favoritas são decisivas para o que nos tornamos e acabam sendo fontes de inspiração e identificação.
Para criar a psicanálise e seus principais conceitos e teorias, Sigmund Freud se utilizou, muito especialmente, de obras de ficção, como a tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, por exemplo. Apesar de nossos tempos de mídias eletrônicas, por vezes utilizadas solitária e friamente, o fato é que o ser humano precisa de histórias e poemas para seguir vivendo.
Precisa ouvir, contar, recontar, inventar e reinventar histórias, para buscar sua própria identificação e encontrar seu lugar no mundo.
Diana e Mário, autores dos conhecidos livros Fadas no divã, após muitas leituras, muitos filmes e canções, proporcionam aos leitores em geral e a especialistas das áreas de psicologia, psiquiatria e pedagogia abordagens sobre a subjetividade contemporânea e conceitos da psicanálise examinados de forma amena.
A linguagem clara adotada e a popularidade das histórias analisadas, além da grande pesquisa, faz com que nos sintamos retratados através dos estudos das fantasias. A primeira parte da obra trata de representações da família, maternidade, amor, mutações e paternidade. É como se diz hoje: família é um grupo de pessoas que de vez em quando dorme debaixo do mesmo teto.
A segunda parte trata da origem e eficácia da fantasia, falando de contos de fadas, ficções sobre a adolescência, País das Maravilhas, Nárnia, brinquedos, vampiromania e outros tópicos.
Na apresentação Márcia Tiburi diz que a fantasia é parte essencial de nossas vidas, que ela faz parte do real, que filmes e livros constituem nossa identidade pessoal ou coletiva e que todos são causa e efeito do que entendemos de nós mesmos.
Márcia diz que não cansamos de perguntar sobre nossa necessidade de fantasiar e que as histórias de ficção guardam um saber que pode nos ensinar sobre nós mesmos, que são espelhos daquilo que não deve ser abandonado, de nosso desejo que precisa ser reconhecido.
Nas páginas finais, bibliografia teórica e fontes primárias de consulta. Penso-Artmed, 328 páginas, telefone 3027-7000.
Jaime Cimenti
O eterno poder da magia
Através dos milênios os eternos poderes e mistérios da magia seguem seduzindo os humanos. Mesmo depois de séculos de estudos científicos, invenções, tecnologias e mundos virtuais, as lendas, as mitologias e as histórias antigas seguem fascinando as pessoas.
Runas - A magia sempre sobrevive, da ex-professora e atualmente escritora inglesa Joanne Harris, é dessas obras que mostram ilimitadas fantasias e incríveis narrativas e o poder eterno da magia. Joanne Harris estudou línguas modernas e medievais em Cambridge e lecionou durante 15 anos antes de se dedicar exclusivamente à literatura.
Ela já lançou Chocolat, O segredo das marés e Sapatinhos vermelhos, que foram publicados em mais de 40 países e receberam uma série de prêmios britânicos e internacionais importantes.
Em Runas - A magia sempre sobrevive, a autora coloca em destaque a protagonista Maddy Smith, uma menina que não é vista com bons olhos na pacata aldeia de Malbry. Pudera. É que a garota gosta de sonhar à noite e, ainda por cima, tem o hábito de contar histórias.
Todos em Malbry sabem que esses hábitos não podem fazer bem. Para completar o quadro, Maddy, órfã de mãe e irmã rebelde e desgrenhada da garota mais popular da aldeia, traz na palma da mão um estranho sinal de nascença, cor de ferrugem.
A marca parece estar relacionada com os episódios inexplicáveis que acontecem à sua volta. Maddy possui um dom raro e, para lapidá-lo, vai contar com a ajuda do misterioso mago viajante Um Olho. Se para a família e para os vizinhos Maddy é um completo desastre, para o mago ela é a única chance de libertar o mundo e trazer o encanto de volta para a vida.
Maddy sabe que os pequeninos globins existem e estão escondidos por aí, tramando suas mil travessuras. Mas para desvendar os mistérios e percorrer os caminhos que levam ao universo das antigas lendas nórdicas, com seus deuses, globins, guerreiros e outras figuras fantásticas, a menina deverá aprender tudo o que puder sobre o poder mágico das runas.
Ela, o mago e os leitores vão embarcar, juntos, numa jornada épica e todos vão saber sobre a tentativa da Ordem de acabar com as formas de encantamento e outras coisas tenebrosas. Editora Rocco, tradução de Rafael Mantovani, Coleção Jovens Leitores, 480 páginas, www.rocco.com.br.
26 de novembro de 2010 | N° 16531
PAULO SANT’ANA | INTERINO
Espantem o abutre
Sempre que vejo imagens dos haitianos devastados pela cólera, poucos meses depois de um terremoto que arrasou com a pouca estrutura do país, lembro de um sul-africano chamado Kevin Carter (1960 – 1994). Um dia, ao caminhar perto de uma vila no sul do miserável Sudão, Carter teve sua atenção despertada pelo som de uma criança choramingando.
Viu a menina e percebeu que ela tinha se abaixado para um rápido descanso da caminhada entre sua casa e um centro de alimentação. Carter preparou sua máquina e ficou ali, à espera de um ângulo para fotografar a menina. Fez isso depois de 20 minutos – e sua foto entraria para a história como uma das imagens mais chocantes e impactantes da África.
Ela mostra a criança abaixada, em primeiro plano, e ao fundo um abutre. O impacto da foto está em sua mensagem subliminar: não se sabe se o abutre está à espera da menina ou apenas atraído pelo lixão do local.
Carter esperou 20 minutos porque tinha esperança de que a ave abrisse suas asas, mas diante da demora clicou assim mesmo. A foto foi vendida ao The New York Times e publicada em 26 de março de 1993. A repercussão foi arrasadora. Durante toda a noite, as linhas telefônicas do jornal ficaram congestionadas por pessoas aflitas, que queriam saber se a menina tinha sobrevivido – e se Carter espantara o abutre.
Sim, respondeu o jornal, o fotógrafo afastou a ave e, mesmo que não o fizesse, a menina ainda tinha forças para completar a caminhada até o centro de alimentação. O jornal só não sabia dizer o que acontecera com a criança depois da foto.
Um ano mais tarde, Carter ganhou a distinção mais cobiçada de fotografia, o Prêmio Pulitzer por Recurso Fotográfico, na Universidade de Colúmbia, em Nova York. Naquele mesmo ano, ele dirigiu até um local de sua infância, desviou a mangueira do escapamento para o interior do carro e se suicidou.
Conta a lenda que o trauma pela foto o levou a isso, mas havia mais problemas atormentando o fotógrafo. Em um bilhete de despedida, ele revela que estava sem dinheiro, sem telefone, sem amigos e castigado por lembranças de “assassinatos, cadáveres, raiva e dor”.
Nos 15 meses entre a foto no Sudão e o suicídio, Carter sofreu com as críticas e o debate do velho dilema do fotógrafo: fazer logo o registro ou interferir no fato? Nem sua garantia de que espantou o abutre serviu para acalmar os críticos. Por que a foto causou tanto impacto e rejeição a Carter?
Todos conhecem a miséria da África, todos acompanham há muito tempo histórias de crianças mortas de fome e sede em países como o Sudão, por que então a foto escandalizou tanto? Simples: é que todos se viram ao lado de Carter, olhando pelo visor da máquina.
Ao apertar o disparador, ele trouxe a miséria para dentro da casa de cada um – e poucos o perdoaram por isso. Talvez muitos tenham ajudado a África depois do choque provocado por aquela foto, mas não importa: a dor e a imagem do abutre à espreita abalaram a moral de cada um.
Carter hoje fotografaria o Haiti e seus muitos abutres. Toda aquela comoção da fase do terremoto, a mobilização de artistas e governos, foi reduzindo-se aos poucos. Foi dia 12 de janeiro deste ano, mas dá a impressão de que foi há muito tempo.
Em meio à destruição do pouco que tinham, os haitianos agora convivem com a cólera, que surge exatamente desta miséria em que vivem. Há representações de países trabalhando por lá, mas o esforço é quase nada comparado ao que o mundo poderia fazer.
É que o impacto, neste mundo de informação rápida, costuma durar apenas 48 horas, como disse o promotor americano a uma repórter condenada por não revelar sua fonte, no filme Nada mais que a Verdade. As 48 horas do Haiti já passaram – e poucos se oferecem para afugentar o abutre.
26 de novembro de 2010 | N° 16531
DAVID COIMBRA
O melhor amigo
Esse meu amigo tinha um cachorro. Não era cachorro de raça nem nada. Não passava de um vira-latinha malhado, o corpo todo manchado de preto e branco, a cara preta, só a ponta do focinho branca, assim como o contorno dos olhos. Parecia que usava óculos, aquele guaipequinha.
Meu amigo encontrou o cachorro na rua, ainda filhote. Afeiçoou-se a ele e levou-o para casa. Conviviam havia já mais de dois anos em seu pequeno apartamento. O cachorrinho era relativamente obediente e espaçosamente alegre, como em geral são os cachorrinhos.
Um dia, meu amigo encontrou uma namorada nas lides noturnas. Afeiçoou-se a ela e levou-a para casa também. Passaram a viver juntos, os três.
A mulher, porém, não gostava do cachorro. O apartamento ficava com cheiro de bicho e cheio de pelo, os latidos a incomodavam. Essas coisas que mulheres dizem de cachorros. Passaram-se meses, ela sempre reclamando, meu amigo sempre evitando o assunto. Adiando a solução. Quando o cachorrinho roeu as tiras da sandália preferida dela, ela deu um ultimato: ou ele ou eu!
Mais tarde, meu amigo confessou que, naquela hora, vacilou. Ela ou ele? Ela? Ou ele? Mas a disputa era entre um animal e um ser humano. Nesses casos, o humano quase sempre sai ganhando.
Ela ganhou.
Uma manhã, meu amigo, com o peito confrangido, o coração do tamanho de uma ervilha, a alma pesada, meu amigo colocou o cachorrinho no carro. Teria de livrar-se dele. O cachorrinho estava feliz. Gostava de passear de carro. Meteu o focinho branco para fora da janela e ficou sentindo os odores que passavam pela rua, sentindo o vento bater na cara preta e branca.
Meu amigo dirigiu até Canoas. Enveredou pelos bairros da cidade. Parou em um descampado. Desceu. Deu a volta no carro. Abriu a porta do carona. O cachorrinho pulou para fora, o rabo abanando, faceiro com a atenção que o dono lhe despendia. Meu amigo caminhou uns 30 metros. O cachorrinho o seguiu, como sempre. Meu amigo olhou para ele, pesaroso.
– Senta! – ordenou.
Ele obedeceu.
– Fica aí!
Ele obedeceu outra vez.
O cachorrinho ficou parado, enquanto ele voltava para o carro. Sentou-se atrás do volante. Arrancou. Antes de engatar a segunda marcha, parou. Olhou para trás. Viu, nos olhos do cachorrinho, a compreensão conformada, a lealdade triste. Os olhos do cachorrinho mostravam que ele sabia que seria traído. Que seria abandonado.
Como foi.
Meu amigo dirigiu uma quadra pensando naquele olhar. Então, num repente, se arrependeu. Pisou no freio. Fez o retorno, apressado. Voltou num tzin para seu companheiro. Ansiava por abraçá-lo e afagá-lo, por dar-lhe um osso novo, por pedir desculpas.
Mas não o encontrou mais. Rodou por mais de duas horas pelas imediações, e nada. Voltou para casa abatido, desencantado da vida. Até hoje ele lembra daquele olhar desapontado. Daquele olhar que expressava amizade, fidelidade e um coração partido. Até hoje ele sonha com seu cachorrinho.
A mulher continua morando no apartamento.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
25 de novembro de 2010 | N° 16530
LETICIA WIERZCHOWSKI
Minha avó e eu
Vem sucedendo uma coisa curiosa comigo. Vejo minhas fotografias recentes e, no meu lugar, encontro a minha avó quando moça. De forma sutil e curiosa, percebo os contornos do meu próprio rosto irem ganhando os jeitos que tinha minha avó Maria quando regulava de idade comigo.
Sinto uma coisa estranha, é como se a avó viesse me visitar... Como se andasse comigo pelos dias afora, olhando-me, levemente espantada, presa entre dois amigos meus, ou com um dos meus meninos no colo, nas fotografias em que quem deveria estar era eu. Estranho sim, mas não desagradável...
A avó Maria foi uma pessoa peculiar. Muito discreta, simpática e doce, andava pelas ruas de Porto Alegre com seus vestidos floreados de verão e sua bolsinha forrada de lenços de cambraia.
Adorava um papo e tinha sempre uma palavra para cada um que lhe cruzasse o caminho. Como tinha muitos netos (acho que éramos bem uns vinte primos das mais variadas idades), nossa avó Maria possuía ocupação de sobra.
Minhas irmãs e eu morávamos perto dela, mas nos víamos relativamente pouco. Lembro que fazia bifes deliciosos e maravilhosas roscas de polvilho sem as quais o meu pai não vivia. Em pequena, não lhe achei muita graça.
Faltava-me espírito para compreender seus silêncios doces, sua discrição, sua distração de menina que desconhecia a própria velhice, os lencinhos que ela distribuía entre as muitas netas, num delicado aviso de que, na vida, nem tudo são risos.
Morreu por engano, essa minha avó, num hospital onde se internara para fazer um exame de rotina, e onde, também, uma enfermeira desastrada acabou por ministrar-lhe a medicação de outrém, empurrando a doce Maria para o além antes da hora.
E ela se foi, discreta como sempre, humilde de posses, mas elegante, ereta e muito magra, balançando seu lencinho branco para filhos e netos, e para essa distraída neta aqui, que ainda nem se sabia escritora. Foi uma das pouquíssimas vezes que vi meu pai chorar...
Agora, vejam só, a boa Maria vem se imiscuindo comigo. Que eu envelheça com a sua elegância e magreza, vai ser um consolo. Difícil mesmo será ela legar-me a inabalável serenidade que sempre teve para com todas as coisas da vida – eu, que faço temporais em copos de água. Vamos ver... Se tinha uma coisa que não faltava à boa Maria, era perseverança.
25 de novembro de 2010 | N° 16530
PAULO SANT’ANA
O segredo
Tenho particularmente fascínio por um tema: o segredo.
Acho até que uma das grandes atrações da vida é poder guardar um segredo.
Há diversas nuanças entre os segredos. Vou pinçar agora uma: duas pessoas se amam e mantêm em segredo o seu amor. Ele é curtido silenciosamente entre os dois, as outras pessoas todas que vivem ao derredor desses dois enamorados desconhecem completamente que eles se amam.
Evidentemente que os compromissos e as convenções sociais impelem esses dois namorados secretos a manterem seu segredo.
Se por um lado custa-lhes muito caro manter esse segredo, que caso fosse violado ameaçaria a sobrevivência do amor oculto, por outro é extremamente delicioso para os dois amantes que eles não confiem a ninguém o seu segredo.
Os dois comparecem a reuniões, almoços, jantares, festas, ninguém desconfia deles. E eles curtindo saborosamente o seu segredo.
O diabo é que o segredo sempre carrega dentro de si uma culpa, uma vontade de desabafar, um ímpeto de gritar ao mundo que todos deveriam ficar sabendo daquilo, libertar-se assim dos grilhões que amarram o seu segredo.
“Ela sabe que eu a amo, eu sei que a amo, isto é o suficiente.” Será mesmo isso suficiente?
Quantos e quantos casos de amor inundam o cotidiano, nos quais a marca mais genuína é a confidencialidade?
Este segredo em amar é muito frequente em pessoas casadas, que querem manter seus laços conjugais e temem mergulhar nos riscos da aventura extraconjugal ou da separação, se o segredo for violado.
Mais frequente que o segredo guardado a sete chaves por duas pessoas é o segredo que pertence a uma só pessoa.
Ela ama, mas ninguém sabe que ela ama, nem mesmo a pessoa que por ela é amada.
Parece uma idiotice não noticiar a uma pessoa a quem se ama que ela é assim intensamente amada, mas não é. A vida trata ela mesma de antepor obstáculos vários entre as pessoas que amam.
Quando alguém ama e a pessoa amada não tem conhecimento disso, imaginem a tensão, o nervosismo, a intensa emoção da pessoa que ama quando se encontra com a pessoa amada, o seu constrangimento em não revelar por nenhum gesto ou palavra o seu segredo!
Sempre, o detentor de qualquer segredo é um prisioneiro dele. Ele não vai dormir por sequer qualquer noite sem preocupar-se com seu segredo.
E muitas vezes aquele segredo amassa tanto seu detentor, que ele não resiste e acaba rompendo o segredo.
Se por um lado arrastará todas as consequências da violação do seu sigilo, por outro quem conta um segredo saboreia a deliciosa sensação de liberdade, tirou de cima do seu corpo aquele fardo pesado e insuportável.
Pronto, não existe mais o segredo. Mas de que irá viver daqui para a frente quem não tem mais um segredo sob sua guarda?
O violador do segredo mergulha num escuro abismo de vazio.
25 de novembro de 2010 | N° 16530
L. F. VERISSIMO
Andamentos
Há semanas, li num jornal francês que no dia anterior havia sido paga a última parcela da reparação devida pela Alemanha aos países aliados que a derrotaram na I Guerra Mundial. A notícia estava no rodapé de uma página interna do jornal, mas o cabeçalho reconhecendo sua importância, ou estranheza, merecia uma primeira página.
Finalmente acabara a Guerra de 14! Mais de 90 anos depois da assinatura do Tratado de Versalhes, que condenara a Alemanha a pagar US$ 33 milhões de indenização pelos estragos que causara na guerra, estava saldada uma dívida que eu nem sabia que ainda existia, e aposto que você também não.
O pagamento do principal terminara em 1983, faltava pagar os juros acumulados. Foi o que aconteceu no mês passado. Nesse meio-tempo, a Alemanha voltou a tumultuar o mundo sob o comando de Hitler, cuja ascensão (ironia) se deveu em grande parte à reação alemã às sanções impostas pelo tratado, e causou estragos ainda maiores. Matou milhões, mas ninguém pode negar que nunca deixou de ser uma boa pagadora.
A notícia da liquidação da dívida tantos anos depois induz a uma reflexão sobre os diversos andamentos, no sentido musical do termo, da História. Há períodos em que a História anda num allegro assai – o ritmo maluco da revolução da informática, por exemplo – e outros em que vem num andante larghissimo.
Me lembrei da frase atribuída ao Mao quando lhe perguntaram quais tinham sido as consequências da Revolução Francesa: “Ainda é cedo para dizer”. Certo. Ainda é cedo para saber quando poderemos deduzir de algum rodapé que o século 18 definitivamente chegou ao fim, como a I Guerra Mundial com o pagamento da dívida alemã. De certa maneira, o que se discutia então é o que se discute hoje. Aquela história ainda não acabou.
No Brasil, temos nossa própria história inacabada, a dos 20 anos de regime militar. A liberação dos autos do processo do governo militar contra a Dilma conseguida pela Folha de S. Paulo pode apressar a sua resolução, se o resto da nossa grande imprensa for diligente como a Folha e cobrar toda a verdade daquele período negro.
Assim como a nação tem o direito de saber a biografia da sua presidente eleita, tem o direito de saber como era o Estado que a torturou e manteve presa, e torturou e matou outros. Até hoje tem gente esperando para saber a simples localização de corpos para poder enterrá-los condignamente, e a informação lhes é sonegada.
Neste caso, a lentidão da História também é uma forma de tortura. Até hoje tem gente esperando para saber a simples localização de corpos para poder enterrá-los condignamente
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
24 de novembro de 2010 | N° 16529
MARTHA MEDEIROS
Fator de descarte
Estávamos, eu e uma amiga, conversando sobre antigos namorados, quando ela me contou uma história engraçada que havia acontecido com ela há muito tempo. Estava saindo com um cara que já demonstrara não ser exatamente um príncipe encantado, mas vá lá, ela seguia tentando, até que um dia estavam dentro do carro e o rádio começou a tocar uma música do Tom Jobim.
Ele disse: “Não suporto esse xarope” e trocou de estação. Ela não teve dúvida: trocou de namorado. Não gostar de Tom Jobim foi o que ela chama de “fator de descarte”. Me assegurou que todos nós, homens e mulheres, temos pelo menos um fator que faz com que paremos de investir numa paquera. Um fator que é intransponível. E então ela me perguntou: qual é o teu?
Fiz um rápido retrospecto da minha vida amorosa – rápido mesmo, porque o elenco é pequeno – e cheguei à conclusão de que meu único fator de descarte seria a violência e a canalhice. Eu não me relacionaria com ninguém que ameaçasse minha integridade física e também com ninguém que não tivesse princípios éticos.
Fora isso, não me importo que o candidato a príncipe não goste de Tom Jobim ou que seja gremista, baixinho, caolho e manque de uma perna, desde que possua o meu “fator de exigência”, que é único, subjetivo e não vou revelar qual é.
Essa história de “fator de descarte” explica a existência de tantos desencontros amorosos, de tanta gente continuar comendo mosca quando poderia estar vivendo uma relação, no mínimo, surpreendente. A longa lista de “isso não tolero” é praticamente um passaporte para a solidão.
As pessoas não dão chance para os diferentes, para os que não têm o mesmo nível cultural ou o mesmo padrão econômico. Desejam alguém que pense igual, se comporte igual, tenha os mesmos gostos, o mesmo tipo de amigos, preferências idênticas.
No entanto, quem garante que um fã de Tom Jobim não possa ser um buldogue no convívio diário? E quem garante que um fã do padre Fábio de Melo não possa levar uma mulher às alturas? Hosana nas alturas!
Eu prefiro Tom Jobim a qualquer padre, pagodeiro ou sertanejo, e acredito que ter afinidades é decisivo para o sucesso de uma relação a dois, mas às vezes um prefere Paris e outro prefere acampar em Rolante, e aí, como faz?
Relacionar-se é a oportunidade suprema de invadir universos desconhecidos e extrair diversão das indiadas. Claro que há grande chance de virar um deus nos acuda, mas não se pode cultivar ideias imutáveis, tipo “jamais trocarei uma noite no Cafe de la Musique por um churrasquinho de gato na Lomba do Pinheiro”.
Exagerei, né? Churrasquinho de gato na Lomba do Pinheiro, francamente. Só se o cara – ou a fulana – cumprir muito à risca seu fator de exigência. No que diz respeito ao meu, é algo subjetivo, já falei. Altamente psicológico.
Pense naquilo que é imprescindível para justificar que você se envolva com outra pessoa a ponto de abrir mão da sua liberdade. Pois então: eis o seu fator de exigência. É isso que importa. De resto, deixe pra ouvir Garota de Ipanema em casa, Tom Jobim não vai fugir.
Ainda que com chuva um lindo dia para vc. Aproveite
24 de novembro de 2010 | N° 16529
DAVID COIMBRA
O poema dos tempos horríveis
Tempo de dor e tentação,
Época de pranto, inveja e tormento,
Tempo de langor e danação,
Época que se aproxima do fim,
Tempo cheio de horror, que tudo faz errado,
Época de mentiras, cheia de orgulho e inveja,
Tempo sem honra e sem julgamento verdadeiro,
Época de tristeza, que abrevia a vida.
Oque você diria do poema acima?
Que tempo e época são referidos pelo poeta?
Quem é ele, que escreve com tamanha amargura?
Sei o que você pensou. Que se trata de um contemporâneo discorrendo sobre as mazelas do século 21: sequestros-relâmpago, engarrafamentos de trânsito, o espaço entre as poltronas dos aviões, pessoas que ficam no MSN em mesa de bar, a grosseria que grassa, mulheres usando calças sem fundilhos, crianças abandonadas, rap, funk, axé music, literatura depressiva e, claro, a fórmula do Campeonato Brasileiro.
É mesmo um tempo de horrores.
Mas não é o do poeta. O autor dos versos é um francês chamado Eustache Deschamps. Ou era, porque ele versejou no século 14 e morreu no começo do 15, quando o Brasil nem era Brasil, não passava de uma extensão de terra sem fronteiras ou cercas, habitada por índios de tanga vivendo no Neolítico. O que prova que cada idade do mundo tem as suas mazelas, bem como cada idade do homem.
Não sou um pessimista como era Deschamps e seus amigos do fim do Medievo, mas, levando-se em conta tão-somente as amenidades do futebol, há que se reconhecer a tragédia que é o Campeonato Brasileiro.
Porque o Campeonato Brasileiro acabou.
É uma porcaria.
Um bela droga de oito meses de comprimento.
Por causa dessa fórmula burra, injusta, insossa e espúria dos pontos corridos. Uma fórmula que não apenas não premia o melhor, como, mais grave, é propícia a falcatruas e arranjos.
A fórmula é tão obtusa, tão artificialmente europeia e conservadora, que fez com que ninguém mais tenha interesse em ser campeão nacional. O Mundial de Clubes, a Libertadores, a Copa do Brasil e a Sul-americana são mais importantes do que o Brasileiro. Prova disso é que, para disputar esses certames, os clubes escalam reservas ao longo do campeonato.
Ninguém mais se importa com o Campeonato Brasileiro, proclamado pelos seus organizadores “o maior campeonato do mundo”. Puá! Repito: o Campeonato Brasileiro é uma porcaria. No sentido estrito da palavra, vá ao dicionário.
Neste ano, o Fluminense será um campeão envergonhado, como foi o Flamengo no ano passado, ambos beneficiados pelo desinteresse de outros clubes. Uma segunda fase, com semifinal e final, elimina a fraude de times reservas em jogos decisivos? Não, claro que não. Mas diminui o prejuízo.
O campeão sairá de quatro, ou seis, ou oito times completamente interessados nos louros de campeão.
Que saudade de uma final de verdade. E do tempo em que as pessoas conversavam nas mesas dos bares, em que passeavam pela rua de madrugada, em que a Varig servia refeições com talheres de inox, do velho rock and roll, das mulheres com calças jeans apertadinhas, de livros escritos por quem nunca fez sessão análise, da doce cordialidade.
24 de novembro de 2010 | N° 16529
PAULO SANT’ANA
A burrice crônica
A natureza fez homens burros e homens inteligentes. Não quero me jactar, mas não sou burro.
Posso não ser bonito, não ser forte, não ser musculoso, não ser rico, não ser jovem, mas tenho certeza de que não sou burro.
Burrice é a dificuldade em raciocinar. Eu fico espantado com a burrice de certas pessoas. É fácil chegar-se a determinada conclusão, mas essas pessoas não atinam para o que é certo ou verdadeiro.
Mas há certos tipos enganosos de burrice. Há determinadas pessoas que são eloquentes, são cultas, mas são burras. A eloquência e a cultura delas servem de verniz para sua pseudointeligência.
A burrice, por vezes, é tão ostensiva, que se torna irritante. Não se entende como é que evidentes verdades não entrem nas cabeças de algumas pessoas.
Existem no meu meio ou nas minhas circunstâncias algumas pessoas que são conhecidas como burras, sua burrice crônica tornou-se célebre nas conversas que temos sobre esse aspecto.
São burrices de doer. E são burrices ilustres, diárias, permanentes, algumas até são burrices vencedoras, conseguiram destaque no meio social através da burrice.
Para muita gente inteligente, a burrice crônica é uma chatice. Embora, para mim e para alguns escolhidos amigos meus, a burrice às vezes seja uma atração: nós nos combinamos e fazemos uma pergunta para um burro, sabemos que a resposta que ele vai dar será completamente descolada da realidade e nos divertimos muito com aquela tacanhice esférica.
Vou dar um exemplo de burro bem-sucedido: é o burro que tem memória privilegiada.
A memória é a maior auxiliar da inteligência. Minha memória é péssima. Se eu tivesse boa memória, seria um gênio.
Então, temos que um indivíduo burro que tem excelente memória pode obter sucesso em muitas áreas culturais, sociais, profissionais.
Quem tem boa memória pode muito bem enganar os outros, que pensam que estão tratando com um cara inteligente.
O exercício da boa memória se diferencia do exercício da inteligência. A memória é uma gravação na mente. Já a inteligência é um repente, um relâmpago. A memória retém, a inteligência dispara.
Uma pessoa inteligente que não tem boa memória sofre muito para vencer na vida. Ao contrário dos burros com boa memória, que às vezes se tornam até notáveis.
Não adianta virem querer me dizer que tenho boa memória porque sei 3 mil letras de música e 800 sonetos e poemas, tudo de cor.
Tenho sérios problemas de memória. Por exemplo, sempre me esqueço, invariavelmente me esqueço, do termo atávico. Sempre que raciocino em torno de caracteres que são recebidos de ascendentes remotos, procuro em vão a palavra que isso signifique e nunca topo em minha memória com atavismo.
Agora mesmo, para escrever essa palavra, tive de recorrer à memória e à inteligência do meu colega Olyr Zavaschi. É impressionante como muitas vezes me escapam palavras no breu do vazio memorial.
E tenho também péssima memória topográfica. Se vou até um endereço da cidade hoje, amanhã não sei mais como chegar lá.
E outros tipos de memória me são deficientes.
Ah, se eu tivesse memória, seria um Albert Einstein ou um Leonardo da Vinci.
Tenho certeza de que Einstein e Da Vinci, além de inteligentes, tinham memória afiada.
24 de novembro de 2010 | N° 16529
DIANA CORSO
Fora de si
Um amor se mede e se legitima pelo tanto de fora de si que exige dos envolvidos. Porém, assim como a felicidade às vezes se revela na ausência, pois quando tristes nos damos conta das ocasiões em que éramos felizes e não sabíamos, existe algo do amor que se explicita pela negatividade. É no discurso da perda, no tipo de dor que só ele é capaz de produzir que descobrimos alguns de seus segredos.
Nas palavras de Martha Medeiros, um amor nos introduz a nós mesmos, mas numa versão até então lacrada, desconhecida. Seu livro, Fora de Mim (Objetiva), conta a história de uma separação.
Trata-se do fim de um vínculo que abriu para a personagem dimensões de si mesma que aguardavam essa experiência de ser amada para surgir. Há versões de nós próprios que esperam o amor para surgir, enquanto os amigos acusam aos amantes de terem virado pessoas diferentes, de estarem se adaptando ao parceiro, de perderem a autenticidade.
Pois amar é mudar a alma de casa, dizia Quintana, eu acrescentaria de país, de cultura. Descobrimo-nos modificando o paladar, a entonação da voz, o vocabulário, o amor apresenta-nos a uma personagem a princípio estrangeira ao que conhecíamos de nós mesmos.
Tudo isso acontece de forma fulminante: quando nos damos conta, estamos adaptados ao ser amado como se tivéssemos nascido em seus braços. Até o passado é servo desse novo amo: amigos, pais, irmãos e por vezes até filhos de um relacionamento anterior serão vistos sob a ótica desse novo vínculo.
Então, por uma circunstância qualquer, uma traição, algo que se quebra, um mal-entendido intransponível, ocorre o que Martha chamou de sua morte em minha vida. Um tipo particular de fim: a morte de um amor, ao contrário, é viva.
O rompimento mantém todos respirando: eu, você, a dor, a saudade, a mágoa, o desprezo – tudo segue. A dor dessa perda, desse luto por um morto que está vivo é dilacerante, funciona como um membro fantasma, como um braço decepado que ainda dói. Porque aquele que partiu leva consigo aquela parte de nós que lhe dizia respeito, como se fôssemos um verbo, e cada amor uma conjugação que só ocorre em sua presença.
Perder um amor é perder-se, porque encontrá-lo foi transformar-se em algo que sem ele nunca seria. Martha define a perda amorosa como uma vertigem.
De fato, é como naqueles sonhos de queda livre, mas antes do momento de acordarmos assustados, constatando que não nos estrebuchamos no chão. Como em todo luto, o tempo é remédio que permite algum resgate: o náufrago Crusoe construiu seu reino de ressaca, assim, no fim, reorganizamos nossa ilha, ou outro amor.
Assinar:
Postagens (Atom)