LA VIEJA
Muita gente torceu o nariz ou debochou. Um amigo meu duvidou que ela estivesse viva. Outro, mais informado, apostou que não haveria público. A casa estava cheia. Foi emocionante. O vozeirão continua intacto. O mais interessante é que, escutando a vieja cantar, a gente sente-se jovem.
Ao menos, bem entendido, os que, como eu, já estão na chamada meia-idade. É nostalgia pura. O passado salta do baú com cheiro de centro acadêmico, movimento estudantil, camisetas de Che Guevara, gritos de 'viva a América Latina' e 'pátria livre', páginas de Eduardo Galeano, 'gracias a la vida', 'sol de alto Peru' e outras cositas más que o vento levou sem apagar da memória.
O público, evidentemente, era mais amplo e com repertórios estudantis variados. Estava-se ali pela grande artista. Que cantante! Mercedes Sosa é, ao mesmo tempo, uma voz extraordinária e o vestígio de um tempo em que se acreditava em 'todas as vozes, todas, todas as mãos, todas'.
Depois, os modernos decretaram o anacronismo dos sonhos de solidariedade latino-americana, esquecendo-se apenas de tirar, por exemplo, a Bolívia do seu atoleiro histórico. Em arte, nada é excludente. Pode-se adorar Joss Stone no Pepsi On Stage e Mercedes Sosa na Ufrgs.
Difícil mesmo para um quarentão ultrapassado é engolir Britney Spears, embora um jovem hipermoderno tenha tentado me explicar que ela representa o top do fashion radical e musicalmente inovador em termos esteticamente irados e absolutamente experimentais no próprio sistema mais amplo. Entenderam? Eu não. Pivicas!
Mas entendi perfeitamente a emoção que tomou conta da platéia de Mercedes Sosa. A vieja encarna um tempo em que certas canções se tornavam hinos. A minha geração cantou com atraso 'Pra Não Dizer que Não Falei de Flores' e 'Travessia'. Ninguém é perfeito.
Os mais utópicos, evidentemente, tomaram grandes porres no Maza, um boteco na Bento Gonçalves, em frente à PUC, repetindo 'Canción con Todos' e tentando lamentavelmente imitar a voz de Mercedes Sosa. Ao som de 'salgo a caminar/ por la cintura cósmica del sur', o berreiro era geral.
Muita gatinha da época entregou o patrimônio a rebeldes cabeludos e de coração mole depois do refrão 'Todas las voces, todas/ Todas las manos, todas/ Toda la sangre puede/ Ser canción en el viento/ Canta conmigo, canta/ Hermano americano/ Libera tu esperanza/ Con un grito en la voz'.
Hoje, acho que depois desse refrão o sujeito vai dormir sozinho. Curiosamente, foi a canção que faltou no show da vieja. Confesso meus pecados de juventude e também os de meia-idade. Voltei para casa, depois de uma garrafa de um vinho argentino, Punto Final Malbec, e escutei 'Canción con Todos' no YouTube.
É isso que Michel Maffesoli chama de pós-modernidade: a tecnologia de ponta a serviço do arcaico, ou seja, dos mais antigos sentimentos do mundo, entre os quais a agridoce nostalgia de uma época revoluta.
Como é bom, vez ou outra, sair do casulo para sentir saudades de nós mesmos, do que não conseguimos ser. Ao final, Mercedes Sosa levantou-se, para delírio de todos. La Negra resiste. La vieja encanta. Pode-se voltar para casa com uma certeza: punto final.
juremir@correiodopovo.com.br
Excelente terça-feira, especialmente para você.
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