terça-feira, 9 de setembro de 2008


Carta Capital num. 0512 - 6/9/2008 - Delfim Netto

A sociedade perfeita

Os economistas têm sido acompanhados por uma maldição: a generosa procura da sociedade perfeita, que seria construída pela aplicação rigorosa das boas leis que a ciência econômica descobriu ao longo dos séculos.

Mesmo o velho Karl Marx não resistiu à tentação e disse um dia: “O que estou fazendo é ciência, não tem nada a ver com a moralidade. É ciência, pura e simples”. (Marglin, S. – Interview, Challenge March-April, 2008:15) Deu no que deu, quando Lenin e Stalin aplicaram a ciência pura e simples.

Atingiria o tão buscado Graal a aplicação pura e simples da ciência dos nossos estadofóbicos, que crêem que o mercado deixado a si mesmo (com as instituições adequadas) produziria a auto-organização que a realizaria? Há controvérsia.

A história econômica mostra um desenrolar diferente. Não há exemplo (desde a Revolução Industrial na Inglaterra) de desenvolvimento econômico robusto e prolongado de nenhum país sem o estímulo produzido por um Estado indutor que, com políticas adequadas, críveis e coerentes, cooptou o setor privado para realizá-lo.

E não há exemplo de um Estado produtor que o tenha realizado. Estado indutor é um conceito que precisa ser explicitado.

O Estado deve cumprir eficientemente a missão de produzir os bens públicos que só ele pode fazer: a paz interna, a justiça, a segurança, a educação e a saúde universalizadas e a estabilidade do poder de compra da moeda.

Na infra-estrutura, deve cooptar o setor privado com mecanismos adequados e proteger o consumidor (presente e futuro) pela ação de agências reguladoras independentes do poder incumbente passageiro.

Para cumprir a importante missão de manter a estabilidade do valor da moeda, sem a qual o mais eficiente sistema de alocação dos recursos disponíveis, o mercado, não funciona, deve entregá-la a uma agência com autonomia (o Banco Central) e apoiá-lo com uma política fiscal conservadora que mantenha sob controle o seu endividamento interno e externo.

No mais é liberar, com estímulos e instituições adequadas, a expansão do espírito animal do empresário, que é quem toma o risco de realizar o desenvolvimento econômico, apoiado em condições objetivas.

Nada demonstra mais fortemente essa verdade do que o fantástico desenvolvimento da China, que retirou da miséria 300 milhões de pessoas nos últimos vinte anos, pela formidável expansão do comércio exterior e que, paulatinamente, a transforma em crescimento do mercado interno.

Os nossos estadofóbicos recusam-se a ver que isso foi produzido por um arsenal de medidas que se distanciam da sua boa teoria. Não se trata de propor que elas devam ser imitadas ou de sugerir que elas funcionem da mesma forma em qualquer contexto histórico, geográfico, político e cultural.

O Brasil encontra-se à frente da China em muitos aspectos: respeito constitucional à liberdade individual, independência dos Poderes, ausência de disputas étnicas religiosas e de fronteiras, uma única língua e um sistema democrático de sufrágio universal com livre disputa multipartidária.

Trata-se de reconhecer que existem diferentes caminhos para o desenvolvimento econômico, com graus variáveis de liberdade individual e de desigualdades sociais.

Os três valores perseguidos pela sociedade perfeita: liberdade individual combinada com aceitável grau de desigualdade, sustentadas por um sistema produtivo eficiente, o mercado, não são inteiramente compatíveis. Isso não é um problema econômico.

Envolve uma decisão política que a sociedade acaba explicitando periodicamente nas urnas quando o sistema é verdadeiramente democrático. Por isso, o puro economicismo, que dá o valor supremo à eficiência produtiva, compatível com a liberdade individual, mas não com a redução da desigualdade, não sobrevive nas urnas.

O desenvolvimento chinês, feito sem a liberdade individual e destruindo a igualdade que prevalecia numa sociedade agrária primitiva, mostra todas as contradições possíveis.

A radicalização do papel do mercado sem liberdade individual, o enorme aumento da desigualdade que não pode ser recusado nas urnas e o uso de tudo o que há de heterodoxo na boa teoria econômica:

controle da taxa de câmbio, regulação pesada sobre o investimento estrangeiro, desrespeito à propriedade intelectual, formidáveis subsídios à exportação e imposição de associação do capital privado estrangeiro com empresas estatais.

Nosso Estado indutor pode, provavelmente, fazer muito melhor, se não esquecer que o desenvolvimento é uma sociedade entre o Estado e o setor privado. Ele é o fator catalítico que liberta o espírito do desenvolvimento do empresário privado.

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