sexta-feira, 12 de setembro de 2008



12 de setembro de 2008
N° 15724 - DAVID COIMBRA


Aquele que só paga à vista

N a primeira vez em que morei sozinho, os meus pertences, todos, eram: um colchonete, um gravadorzinho desses de entrevista, três fitas cassete (Beatles, Belchior e João Bosco), livros e roupas, porém não muitas.

O quarto era acarpetado. Assim, podia dormir sobre o colchonete e empilhar as roupas, porém não muitas, na parede do fundo.

O problema com essas minhas posses era que uma eventual namorada torcia o nariz para o colchonete, e as fitas, de tanto ouvi-las, gastava a pilha do gravadorzinho. O João Bosco começava a cantar com voz mole: “Fascínio tenho eu por falsas loiras, uom, uom, uom...”

Bom. Uma vez, ganhei um dinheiro do jornal. Fui a uma loja no Centro e apontei para um aparelho de TV:

– Vou levá-lo. Agora!

Em outra loja, apontei para um som três-em-um:

– Quero esse já! Na terceira loja, escolhi um espesso colchão de casal:

– É meu! Paguei tudo à vista. Fiquei com fama na cidade: David Coimbra, aquele que só paga à vista. Com esses equipamentos, mais uma geladeira e um fogão usados, pronto, era tudo o que queria. Do que mais uma pessoa pode precisar?, pensava.

Corta.

Dias atrás, participei da cobertura da Olimpíada de Pequim, como você sabe de sobejo. Passa-se por muitos free-shops, até se chegar ao Oriente Longínquo.

E Pequim mesmo é uma cidade pontilhada de lojas com preços atraentes, uma vez que um único real vale não um, nem dois ou três, mas quatro yuans. Uau, isso despertou os instintos perdulários dos nossos compatriotas. Vi brasileiros comprando com denodo e fúria.

Compravam sem dar trégua, irrompiam nos free-shops e só saíam de lá açodados, sacolas pendentes dos braços. Aquilo me incomodou um pouco, mas não sabia por quê.

Descobri graças aos blackberrys.

Foi assim: o jornal nos deu blackberrys para a cobertura. Sabe o que é um blackberry? Um celular que tem MSN, imeil, internet, GPS e bibibi.

O pessoal se viciou naquele troço. Uma noite, estávamos seis na mesa de um restaurante e ninguém largava o seu blackberry. Olhei para eles: cabeça baixa, lendo e enviando mensagens.

Senti-me sozinho naquela mesa repleta. Ninguém conversava ao vivo. Então, lembrei-me do tempo em que comprei minha velha TV e o colchão e o três-em-um.

Debaixo das luzes de Pequim, não me sentia mais feliz por ter um blackberry à disposição. Ao contrário: com celulares e blackberrys e coisas a comprar as pessoas conversam muito menos, conhecem-se muito menos, pensam muito menos.

Aí compreendi: não preciso de um blackberry. Nem de mais um celular. Nem de um MP4. Nem de um laptop novo. Nem de outro tênis. Nem de jaquetas flamantes ou bonés ou camisetas ou relógios de pulso.

Não preciso descobrir novos autores, há muitos velhos que ainda não li. Tampouco preciso descobrir novas formas de arte, de música ou de informação.

Não preciso de tanta coisa para colorir a vida. Nem preciso preencher todo o tempo ouvindo música ou notícia ou seja o que for.

Posso ficar sozinho com meus pensamentos e suportar minha própria companhia. Pouco se me dá o seu blackberry!

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