quinta-feira, 31 de janeiro de 2019



31 DE JANEIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O homem bom

O Maurício Saraiva contou uma história bonita no Sala de Redação, outro dia. Contou que um ouvinte da Gaúcha teve um AVC e ficou em coma por algum tempo. Ao finalmente despertar, as duas primeiras palavras que o acamado pronunciou foram: "Maurício Saraiva".

Dito isso, o Maurício completou que não se gabava do ocorrido, mas ponderou que o episódio mostrava a importância do trabalho da emissora e tudo mais. Enquanto ele tecia esse arrazoado, o Rafael Malenotti, do outro lado da mesa, enxugava uma lágrima fortuita que lhe escorrera bochecha abaixo.

A reação do Malenotti me tocou ainda mais do que a história do Maurício. Porque, entenda, o Sala de Redação é mais ou menos a reprodução de uma mesa de bar, em que amigos discutem futebol, contando vantagem, fazendo visagem e passando rasteira, como diria o Ary Barroso.

A conversa de bar é uma arte, pena que desprezada nestes nossos tempos ásperos. Aliás, houve época em que a chamada "arte da conversação" era estudada, valia livros e compêndios. Foi no século 18, na França. O crème de la crème da sociedade se reunia em salões, em geral comandados por grandes damas. Essas mulheres eram cultas e habilidosas no trato pessoal. Deviam valer-se de coqueteria sem apelar para a vulgaridade, deviam ser atenciosas sem serem pegajosas, deviam saber escolher cada convidado na medida precisa para que a noite fosse sempre interessante, sem jamais perder a animação.

Vários autores franceses clássicos descrevem esses salões. Nas cartas de Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, os missivistas conseguem fazer o leitor sentir o clima sensual e levemente cruel das relações daquela elite pré-revolução. E mesmo depois, quando Napoleão já era o conquistador da Europa, os russos faziam o possível para imitar os franceses. Guerra e Paz, de Tolstoi, mostra a nobreza russa falando francês nos palácios de São Petersburgo e se guiando pelas mesmas normas de conduta dos antigos salões de Paris.

Nessas noitadas, alguém que sabia conversar era mais valorizado do que quem tem mais de 1 milhão de seguidores no Twitter hoje em dia.

Quando o mundo se tornou menos formal, a boa conversa dos salões foi transferida para os bares. Você leu Paris é uma Festa, de Hemingway, ou assistiu a Meia-Noite em Paris, de Woody Allen? São histórias de bares, de excitantes conversas em bares, travadas por Fitzgerald, Dalí, Buñuel, Picasso, Cole Porter, Josephine Baker.

No Brasil, pense na zona sul do Rio e em mesas frequentadas por Vinicius, Tom, Chico, Paulo Francis e Millôr.

Essa é a ideia de programas como o Sala de Redação e o Pretinho Básico: amigos em torno de uma mesa de bar. Os ouvintes acompanham nossa conversa e esperam ditos espirituosos, tiradas engraçadas, frases de estilo, opiniões diferenciadas ou, às vezes, pura discussão. Mas quase nunca esperam que um de nós se emocione com uma história contada por outro, sobretudo nesses nossos tempos que, parágrafos acima, classifiquei como ásperos, mas que, não raro, são muito mais do que isso: são perversos. Acostumados à agressividade parnasiana das redes sociais, a agressividade pela agressividade, os ouvintes se surpreendem com alguém que descortina o seu coração, como fez o Malenotti. E o Malenotti fez isso porque não está armado, não é áspero como são os tempos. Ao contrário, é homem de outra cepa, muito mais nobre do que quaisquer nobrezas de salão: o Malenotti é um homem bom.

DAVID COIMBRA

31 DE JANEIRO DE 2019
ARTIGOS

GESTÃO PARA UNIR AS PESSOAS DE BEM


O setor público está passando por um processo profundo de mudanças. Não podemos mais aceitar que os poderes não consigam cumprir de forma adequada e com qualidade o que têm como obrigação. As reformas batem à nossa porta e um amplo debate sobre questões fundamentais para o futuro de todos os gaúchos se faz necessário.

Na política, vivemos um momento de acirramento de opiniões. Estamos divididos entre direita e esquerda. Na atual democracia, nunca tivemos tamanha polarização. Mas é possível encontrar consensos. Aproximar as pessoas de bem, aqueles que pensam de forma diferente, mas buscam o melhor para todos. Depois de cinco mandatos, muito trabalho, muitas expe- riências, me sinto confiante para criar essa convergência da grande diversidade que nosso Estado historicamente produz. Uma tarefa que só quem conduz um poder democrático como a Assembleia tem a capacidade de realizar.

Esta será a legislatura com mais partidos da história, o que significa mais representatividade. E entendendo a importância disso, planejamos o futuro. Estamos implantando, a partir de fevereiro, uma gestão compartilhada, com um planejamento estratégico para um, quatro e 10 anos. Realizado por técnicos servidores da casa e estruturado pelas bancadas e próximos presidentes.

No primeiro ano, vamos trabalhar em cinco eixos: social, desenvolvimento, fiscal, cultural e gestão. Promovendo debates e campanhas sobre assuntos como: impostos, privatizações, concessões, PPPs, Semana Farroupilha, Lei Kandir e arrecadação para entidades sociais. Temas que a direita e a esquerda sabem que precisam debater com todos os envolvidos. A destinação do Imposto de Renda devido para o Funcriança, por exemplo, beneficiando instituições locais como Apae, Ligas de Combate ao Câncer e hospitais filantrópicos, é uma ação que vai unir a todos.

É cumprindo seu papel institucional de ser parte indispensável para a união das diferentes opiniões que a Assembleia terá mais valor com uma política de resultados. Na presidência, quero contar com os gaúchos, tendo a certeza de que o parlamento significa muito mais do que falar, discursar e legislar. Significa unir! 

Deputado estadual (PTB), presidente da Assembleia Legislativa do RS em 2019 -LUIS AUGUSTO LARA


31 DE JANEIRO DE 2019
PENTE-FINO NO INSS

Beneficiários com mais de 60 anos terão de agendar prova de vida

A medida provisória (MP) 871, publicada em 18 de janeiro com a intenção de reduzir fraudes contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), trouxe mudanças na prova de vida dos segurados. Essa comprovação é um procedimento obrigatório para evitar pagamentos indevidos.

De acordo com o texto, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, aposentados e pensionistas acima dos 60 anos terão de fazer agendamento prévio antes da atualização cadastral. Pelas regras atuais, o beneficiário é avisado pelo banco em que recebe os valores para ir à agência, sem hora marcada, e fazer o recadastramento.

Além disso, a MP abre a possibilidade da prova de vida ser feita na residência dos segurados que tenham acima de 80 anos. O texto especifica que "o INSS disporá de meios que garantam a identificação e o processo de fé de vida para pessoas com dificuldades de locomoção e idosos acima de 80 anos que recebam benefícios".

A MP tem validade de 60 dias, prorrogáveis por igual período, mas já tem força de lei. Entretanto, precisa ser aprovada pelo Congresso para não perder a validade. As alterações têm de ser regulamentadas pelo INSS, por isso nada muda para os aposentados por enquanto. O instituto informa que as questões "ainda estão em análise pelo presidente em conjunto com área técnica e, tão logo seja assinado, o ato será publicado no Diário Oficial da União".

IDOSOS CARENTES E PESSOAS COM DEFICIÊNCIA TERÃO DE ABRIR MÃO DE SIGILO BANCÁRIO

Há, ainda, duas mudanças da MP 871 que não entram em vigor imediatamente. O requerimento da pensão por morte por menores de 16 anos, que passou a ter prazo de 180 dias, valerá após 120 dias a contar da data da publicação. Já a autorização do requerente do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para que o INSS tenha acesso aos seus dados bancários entrará em vigor em 90 dias, também a contar de 18 de janeiro.

Esse ponto torna obrigatório que idosos de baixa renda e pessoas com deficiência abram mão do sigilo bancário se quiserem receber os valores mensais. Têm direito ao BPC, no valor de um salário mínimo (R$ 998), idosos carentes com 65 anos ou mais e deficientes na mesma situação.

Outro item no texto com a intenção de reprimir crimes previdenciários - pessoas que recebem o benefício sem ter direito ou são usadas como laranjas - é a possibilidade de ser alienado, pelo governo federal, o único imóvel da família de quem estiver enganando o INSS. O endurecimento nas regras veio com a promessa de se economizar cerca de R$ 10 bilhões.

De acordo com o advogado especialista na área criminal Tiago Turbay, em entrevista ao jornal O Globo, exigir que uma pessoa abra mão do sigilo sem entender o que isso representa abre espaço tanto para uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) como para uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Segundo ele, o cidadão pode se autoincriminar ao revelar os dados. Isso fere, no seu entender, um direito fundamental e acaba com a presunção de inocência.

Fontes ouvidas pelo jornal destacam que as duas medidas (abrir os dados bancários e possibilidade de perder o único imóvel) podem ter a constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal.

LEANDRO RODRIGUES


31 DE JANEIRO DE 2019
INDICADORES

O desastre e a inovação

Existem inúmeras tecnologias disponíveis para a prevenção de desastres e esse é um campo de dedicação de muitos pesquisadores, empresas e órgãos internacionais pelo mundo afora. Os estudos são focados, especialmente, nos desastres naturais, que são de difícil previsão e quase nenhum controle. No entanto, esse conhecimento, transformado em soluções como processos, sistemas de gestão e equipamentos, pode ser aplicado também a eventos que não sejam de ordem natural. No caso de barragens, que são em si uma tecnologia, as inovações podem ser utilizadas na prevenção de acidentes.

Já existem sensores, por exemplo, que podem medir o deslocamento linear do solo em nível micrométrico. Esse mapeamento, gerando dados de forma contínua e transmitidos em tempo real, pode alertar um sistema de controle para problemas estruturais em um talude. Sistemas de sensores podem atuar ainda na medição de umidade do solo, identificando possíveis aumentos de pressão na barragem. O acompanhamento de dados provenientes do processamento de imagens de zonas de risco também é uma oportunidade de precaução e pode fornecer valiosas informações sobre as condições das estruturas. E todo esse monitoramento pode ser feito 24 horas por dia, em tempo real e praticamente sem falhas.

Quando a prevenção já não é viável e o desastre está instalado, também é possível lançar mão de diversas tecnologias para minimizar os impactos negativos. Drones podem ser utilizados tanto para rastreamento por meio de imagens, fotos e vídeos, quanto para levar produtos às zonas de difícil acesso. Tecnologias de purificação garantem água potável em caso de emergência.

Existem muitas inovações disponíveis e várias delas dominadas por startups brasileiras. Temos no país empresas especializadas em gestão de riscos, inclusive. Mas o que ainda temos que aprender sobre inovação com os desastres? Que ela não é um fim em si mesma e tem que estar a serviço da sociedade e de seus desafios. Que seus impactos precisam ser considerados. Que, quando houver risco, o foco deve ser na prevenção. Porque, para algumas consequências, não há solução.

Gabriela Ferreira escreve às quintas-feiras, a cada 15 dias. - GABRIELA FERREIRA


31 DE JANEIRO DE 2019
PRIVATIZAÇÕES

Caixa pretende negociar quatro subsidiárias até junho de 2020

O presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, informou ontem que pretende vender todos os ativos que não fazem parte da atividade principal do banco. Segundo o executivo, serão negociadas quatro subsidiárias da instituição financeira nas áreas de loterias, seguros, cartões e gestão de recursos (asset management).

Em evento do banco Credit Suisse para investidores, em São Paulo, Guimarães explicou que a ideia não é vender 100% da participação da Caixa, mas fazer uma abertura de capitais aos poucos. Ele afirmou que pelo menos dois ativos serão negociados ainda este ano e que o primeiro deve ser o de loterias.

O dirigente destacou que, até junho de 2020, em uma previsão que ele mesmo considera conservadora, as quatro subsidiárias estarão com o capital aberto. Segundo Guimarães, a venda dessas empresas ajudará a Caixa a pagar aportes da União na instituição financeira no total de R$ 40 bilhões.

O executivo comentou não gostar do modelo de joint venture para o banco e entende que o mais viável é vender as empresas por meio de ofertas de ações. Ele disse que o banco planeja criar algum mecanismo nos papéis para atrair pessoas físicas. Também acrescentou que pretende abrir capital dos ativos nas bolsas de valores de São Paulo, a B3, e de Nova York. O objetivo do governo com a venda de ativos, acrescentou, é preparar a Caixa para o futuro.

- Para que os próximos governos consigam ter uma Caixa mais sólida em termos de capital, mais rentável - explicou.

Durante o evento, Guimarães disse também que a Caixa tem a meta de fazer R$ 100 bilhões em securitização (venda de direitos a receber) de crédito imobiliário, investir no mercado de maquininhas de cartão e cartão de crédito consignado.


31 DE JANEIRO DE 2019
L.F. VERISSIMO

Doença

Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações do homem, nenhuma era mais perigosa do que a "doença da curiosidade". Era ela que nos levava a tentar descobrir os segredos da natureza, "que estão além da nossa compreensão, que em nada nos beneficiarão e que o homem não deve saber". Em outras palavras, o mesmo conselho que Deus deu a Adão e Eva no Paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença. 

Eva - sempre elas - não se aguentou e comeu o fruto proibido. Resultado: perdemos o paraíso da ignorância satisfeita e estamos, desde então, tentando descobrir que diabo de universo é este em que nos meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instrução. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites da fé como os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício. Mas a doença da curiosidade já estava adiantada demais.

A fase mais aguda da doença chegou com a inauguração, há 10 anos, num subterrâneo na fronteira da Suíça com a França, do tal acelerador gigante que jogaria prótons contra prótons em condições inéditas para tentar reproduzir a origem do mundo, liberar uma partícula subatômica que até então só existia em teoria e chegar mais perto de descobrir como funciona o universo. 

Quer dizer, os descendentes de Adão e Eva pretendiam levar a rebeldia do casal ao máximo e espiar por baixo do camisolão de Deus. Mas 10 anos e alguns bilhões de dólares depois, fora a importante descoberta da subpartícula presumida chamada bóson de Higgs, o acelerador não tem muito a festejar no seu 10º aniversário. Não vieram o prometido redimensionamento do espaço, a explicação dos buracos negros, revelações sobre a origem de tudo. Etc.

Quanto mais se sabe sobre o funcionamento do universo mais aumentam a perplexidade e a angústia das quais Santo Agostinho quis nos poupar. Pois não se pode compreender tudo - pelo menos não com este cérebro que mal compreende a si mesmo.

Mas os efeitos da fruta proibida ainda são fortes. E a doença da curiosidade não tem cura.

L.F. VERISSIMO

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019



30 DE JANEIRO DE 2019
CAPA

Histórias planetárias

O casal que se formou na plateia exatamente 20 anos atrás e está junto até hoje, esperando para celebrar a paixão em mais um encontro diante do palco. A mãe que ficou na saída de um show esperando pelas filhas depois que a van da família estragou pelo caminho. O jovem que virou meme e foi comparado ao cantor Shawn Mendes no meio do show de Anitta. Todas essas histórias são reais e têm um ponto em comum: o Planeta Atlântida.

São lembranças como essas que marcam a experiência do festival, que terá sua 24ª edição na sexta e no sábado, na Saba, em Atlântida. Conheça algumas dessas histórias e entre na vibe que une os planetários todos os anos.

Amor de festival

Faltavam exatos três dias para o Planeta Atlântida de 1999 abrir os portões, e uma história de amor começava a acontecer. Alice Chiarel, na época com 15 anos, passeava no centro de Capão da Canoa quando encontrou um amigo que lhe apresentou para Cleber, com 16. Olhares foram trocados, mas nada se desenvolveu.

Nenhum dos dois esperava que se encontrariam no festival, na Saba. A química foi tão grande que os grupos que os acompanhavam resolveram deixá-los a sós. Ao som de Jota Quest, no meio da multidão do Planeta, rolou o primeiro beijo. Em tempos sem celulares e WhatsApp, ela lhe deu um papel com o número de telefone fixo - Cleber achou que tinha perdido, horas depois, mas reencontrou o recadinho um mês depois, no fundo de uma mochila:

- Ele precisou ligar para três finais diferentes do número do telefone, porque a tinta estava meio apagada. Nos reencontramos e saímos para um cinema - relembra Alice, aos risos.

O que era um amor de Planeta virou namoro e casamento, em 1º de fevereiro de 2012. Um ano depois, Alice precisou passar por uma cirurgia e teve quatro paradas cardíacas. Os médicos não acreditavam mais em sua recuperação, mas Cleber permaneceu firme ao seu lado:

- Ele não deixou os médicos nem meu pai desligarem os aparelhos. Até dormia no chão do hospital porque eu estava no Centro de Tratamento Intensivo, não tinha como ele me acompanhar.

Com Alice recuperada, o casal ainda teve uma filha, Eduarda, agora com dois anos. Alice já planejou a festa de 20 anos do casal: comprou ingressos de camarote para o Planeta e sonha com uma homenagem especial. Lamenta o line-up deste ano não ter Jota Quest e O Rappa, mas por que não uma mensagem do Ferrugem?

- Eu me conecto muito com as músicas dele, podia falar no microfone, qualquer coisa! E no show da Anitta, já disse que vamos requebrar até o chão (risos). Não teremos bolo, mas o Planeta é a minha vida e sou eternamente grata a ele - comemora Alice. 

JÚLIO BOLL


30 DE JANEIRO DE 2019
PEDRO GONZAGA

OS DESAJUSTADOS

Em algum momento de nossa curta história nesta bola de gás e pedra e rocha líquida, houve um refúgio para os desajustados. Anos atrás, quando o pânico me atacava às noites, fui a um médico em busca de uma explicação puramente física para tantos tremores, suores e o maxilar engripado feito a porta de uma Variant. Num mundo ideal, a medicina devia nos oferecer sempre diagnósticos como estiramento, contratura, lesão por esforço repetitivo, algum mal derribável com Amoxicilina.

Exames na mão, o homem de branco, detrás da barba experiente, com muito tato, sugeriu um transtorno de ansiedade, e me estendeu um cartão com um nome. Não há razão para enfrentar isso sozinho, ele disse. Aborrecia-me ao fim da consulta - vaidoso em meu senso de exclusividade - sofrer de uma doença da moda. Insisti que não havia dessas coisas no tempo do meu avô, devia ser o efeito das mídias sobre nós (culpadas também por nossa solidão, sobrepeso, desilusões amorosas e bancarrotas), ao que ele respondeu que havia, só não havia como entendê-las e tratá-las. Todos somos um pouco desajustados, ele continuou. Ocorre que uma grande parte desses desajustes passa despercebida. Quando comecei, ainda se dizia que um sujeito, em situação semelhante à tua, era excêntrico, hipocondríaco, dado a achaques, enfim, sofria de uma condição, não de uma doença.

Dado a achaques. Eis aí uma expressão maravilhosa, que vira e mexe volta a me visitar.

E então penso no sofrimento daqueles que não sabiam o que eram quando eram, alguns rebeldes, outros relegados a serem tios e tias bizarros, avós silenciosos, gentes a quem as gentes eram repugnantes. No entanto, se tivessem a sorte de serem deixados em paz, sofriam, parece-me, de uma solidão menor do que a nossa.

Porque hoje a excentricidade é combatida mais dentro do que fora das trincheiras. Tudo deve ser catalogado, muitas vezes pelo próprio indivíduo, cassado em seu direito à pura extravagância. Atomize-se e assuma a bandeira da tua luta, combata para ser aceito pelos outros. O discurso social falará em integração, um discurso social cuja superfície é um flamejante sim para todos, mas que não abraça ninguém. Expostos na planície, não temos tempo de entender nossas diferenças, mas devemos alardeá-las. E assim o espaço de exclusão, que antes unificava muitos seres originais, agora uniformiza cada qual em sua diferença.

PEDRO GONZAGA

30 DE JANEIRO DE 2019
INDICADORES - Ricardo Hingel - Economista

Cenários de estresse e Brumadinhos


No mercado financeiro, utiliza-se um conceito ou ferramenta denominado cenário de estresse. Quando se faz qualquer projeção ou estudo de viabilidade de investimentos ou projetos, estes são compostos por um conjunto de variáveis que representam as hipóteses que, conjugadas, determinarão sua viabilidade e levarão a decisões. O resultado obtido estará assentado na ocorrência mais provável de cada variável, que formam os chamados cenários básicos. Como se trabalha, principalmente, com probabilidades e não certezas, as projeções estão sujeitas a riscos de execução. Em função das incertezas, aplicam-se, então, os denominados testes de estresse, que buscam aferir qual o efeito do risco assumido para o investimento e qual o plano de contingência disponível para compensar parte ou o todo do prejuízo ocorrido se tudo der errado.

Trazendo esse conceito para a questão ambiental, pelo desastre de Brumadinho e, anteriormente, pelo de Mariana, com prejuízos ambientais irreversíveis e que ceifam vidas humanas, verifica-se que não se aplicaram cenários de estresse, pois riscos possíveis acabaram sendo pouco considerados e os resultados comprovaram que erraram nas probabilidades.

Os cenários de estresse dessas barragens deveriam levar em conta o risco real de seu rompimento e o que se verificou foi uma mensuração insuficiente. Os projetos de engenharia falharam e os planos de contingência para os potenciais desastres simplesmente inexistiam.

Um exemplo dos equívocos da incorreta mensuração dos riscos da barragem foi a informação constante do Relatório de Segurança de Barragens, produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA), que classificou a de Brumadinho como de baixo risco de acidentes e com alto potencial de danos. A barragem pertencente à Vale era depositária de resíduos de mineração e, se não restou dúvida quanto a seu potencial de danos, sobraram certezas de que não era de baixo risco de acidentes, que não foi devidamente avaliado e, muito menos, preparados planos de contingência, fundamentais para empreendimentos desse porte.

A mensuração dos riscos ambientais deve ser preocupação preponderante para a preservação do planeta, onde as ameaças são desconsideradas, proliferam Marianas e Brumadinhos e age-se como se não houvesse amanhã. Apenas para uma reflexão, devemos lembrar que o habitáculo que permite a vida em nosso planeta é extremamente fino. De um diâmetro de menos de 13 mil quilômetros, 80% da massa atmosférica está contida em uma fina camada de até 11 quilômetros de altitude, o que dá uma boa medida da fragilidade da vida na Terra.

Ricardo Hingel escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias.


30 DE JANEIRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

SOLUÇÃO NEGOCIADA

Só o fato de ser responsável pela geração de cerca de 3 mil empregos diretos já é suficiente para fazer com que a General Motors se constitua hoje num empreendimento imprescindível para o Rio Grande do Sul. Por isso, é importante que as negociações envolvendo o futuro da unidade do Estado sejam levadas adiante com responsabilidade e de forma transparente. As alternativas precisam contemplar tanto a necessidade de resultados financeiros da corporação, que vem alegando prejuízo no período de 2016 a 2018, quanto a segurança dos trabalhadores e da comunidade na qual está instalada.

Na época das tratativas para sua instalação no Estado, ao final dos anos 1990, a GM foi contemplada com generosos incentivos fiscais. As concessões foram aprovadas justamente pela perspectiva de geração de empregos e de riqueza no futuro, o que acabou se confirmando na prática. A planta gaúcha, que integra as operações da empresa no Mercosul, é responsável atualmente pela produção do veículo mais vendido no Brasil.

É do interesse do Rio Grande do Sul, portanto, que a GM fique no Estado. As condições para que a decisão seja nesse sentido, porém, precisam atender aos anseios de todos os envolvidos - empresa, população e poder público. Os sinais de interesse da corporação de rever os investimentos na América Latina, emitidos inicialmente nos Estados Unidos e, agora, transmitidos aos trabalhadores no Brasil, não contribuem para a construção de um clima de confiança.

Hoje, a montadora de veículos responde por cerca de 40% do retorno do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de Gravataí, além de mobilizar cerca de 3 mil pessoas entre os sistemistas. Se os planos originais de investimentos fossem mantidos, a expectativa é de que pelo menos R$ 1,4 bilhão fossem destinados à unidade gaúcha até 2020. É importante que as negociações levem em conta esses aspectos.

Os gaúchos têm orgulho da GM e o Rio Grande do Sul se mostra, cada vez mais, aberto a iniciativas inovadoras. A indústria automobilística é um dos setores de vanguarda da disrupção de modelos tecnológicos antigos. Carros movidos a energia limpa e pilotados por inteligência artificial já são realidade em outros países. Mais cedo ou mais tarde, o mercado brasileiro se beneficiará desses avanços. Queremos a GM e sua fábrica gaúcha cada vez mais sintonizadas com esta nova realidade.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019



29 DE JANEIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Houve uma vez um verão

Entre essas andanças tantas, dirigi a primeira rádio totalmente jornalística de Santa Catarina, a Eldorado, de Criciúma. Naquele tempo, anos 1990, a rádio fechava a programação às duas da madrugada para retornar às cinco, com o programa Rádio Rural, apresentado pelo jovem Silmar Vieira.

Era preciso, portanto, escolher um tema para o encerramento das atividades. Tinha de ser uma música nostálgica, de despedida, que rodaria enquanto o locutor informava, com brevidade, que a programação seria interrompida. A melodia deveria prosseguir ainda por alguns minutos, produzindo no ouvinte a sensação mansa de que um dia estava acabando, mas que outro logo viria para substituí-lo.

Eu queria a música perfeita. Para encontrá-la, fui para a discoteca da rádio, chamada de Discoteca do Bolacha.

O Bolacha era um antigo radialista da cidade, um tipo engraçado, bem-humorado, que se apresentava fazendo troça com o próprio nome:

- Eu sou o Osvaldo Costa, aquele de quem toda mulher gosta.

Na verdade, todos, homens e mulheres, gostavam do Bolacha. Ficamos, eu e ele, algum tempo fuçando nas pilhas de discos, até que achei a música que procurava.

- É essa! - gritei para o Bolacha. - É essa!

Era o tema de um dos grandes filmes do cinema, Houve uma Vez um Verão, do francês Michel Legrand.

Lembrei dessa história porque Legrand morreu no fim de semana passado. Ao ver as notícias sobre ele, senti vontade de assistir de novo a Houve uma Vez um Verão. É um filme belíssimo. O protagonista visita a praia em que viveu o ano mais importante da sua adolescência, talvez da sua existência: 1942. Em inglês, o título do filme é, precisamente, O Verão de 42. O narrador da história é um garoto de 15 anos de idade. Ele se apaixona por uma mulher mais velha, que mora sozinha em sua pequena casa desde que o marido foi lutar na II Guerra Mundial.

Vou contar o que acontece, porque não há spoiler se o filme foi lançado há mais de quatro décadas: quando ela descobre que o marido morreu em combate, entrega-se ao menino. Hoje, o autor seria acusado de pedofilia, mas é bem o contrário: trata-se de uma história delicada, de beleza agridoce e cheia de significados. No final, ela vai embora e deixa-lhe uma carta, na qual diz esperar que ele jamais sofra perdas inexplicáveis na vida. Mas a fuga dela já não é em si uma perda? E não é sempre assim? 

A vida não é, afinal, uma sucessão de perdas? Você opta por uma coisa em detrimento de outra. Você vai deixando pessoas e lugares pelo caminho, enquanto avança e avança. Para onde você avança? Talvez para algum tempo de onde você olhe para trás e, como se ouvisse uma música de Legrand, sinta a vaga saudade de algo indefinido. Então, talvez, você irá recordar, com pesar ou com alegria, que, uma vez, houve um verão.

DAVID COIMBRA

29 DE JANEIRO DE 2019
+ ECONOMIA

Renner na Argentina


Após abrir sete lojas no Uruguai, a Lojas Renner vai entrar no mercado argentino. A varejista gaúcha terá, a partir do segundo semestre, duas novas operações em Buenos Aires e uma na cidade de Córdoba, a segunda mais populosa do país vizinho. Na capital, será um ponto de rua e outro em shopping center. Em Córdoba, será de rua.

- A Argentina é um mercado bastante relevante, com 40 milhões de pessoas, e uma concorrência que não é tão acirrada - explica o diretor-presidente da rede, José Galló.

A experiência exitosa no Uruguai, onde opera em Rivera, Montevidéu (foto acima), Punta del Este e Canelones, motivou a nova expansão internacional. Por enquanto, não há previsão de ingressar em outro país do continente, assegura Galló.

O investimento por loja fica entre R$ 8 milhões e R$ 9 milhões. Foram aportados ainda R$ 10 milhões em logística e tecnologia. Embora prefira não entregar os próximos passos, Galló lembra que a Argentina tem cerca de 60 shoppings e 20 cidades com mais de 200 mil habitantes, com possibilidade de receber lojas. As constantes crises não assustam:

- Empresas que vão para lá e entendem a Argentina sempre apresentam bons resultados. É preciso adaptabilidade para estes tempos mais voláteis - diz.

O Grupo Marpa encerrou 2018 com acréscimo de 550% nos pedidos de registros de inovação junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Os números são referentes às solicitações realizadas na Capital e na Grande Porto Alegre, em comparação a 2017.

CAIO CIGANA

29 DE JANEIRO DE 2019
ARTIGO

VAMOS FALAR SOBRE SAÚDE?


O Brasil vive o início de um período de quatro anos do governo Bolsonaro, que escolheu o deputado e médico Luiz Henrique Mandetta como ministro da Saúde, reacendendo expectativas de melhores dias para a população. De imediato, porém, devemos reconhecer a exata noção de que só com o crescimento da economia teremos mais recursos para a área da saúde, tanto no setor público quanto no privado. Uma boa gestão da economia é, portanto, fundamental e obrigatória.

Considerando a Constituição de 1988, que reconhece a saúde como "direito de todos e dever do Estado", é preciso lembrar que nos últimos 30 anos o país assistiu a 20 ministros da Saúde, revelando um paralelo de inconsistência de perfis com a deficiência na execução orçamentária da pasta.

É importante ressaltar que os 46% gastos pelo governo brasileiro são para atender às necessidades de cerca de 150 milhões de pessoas. Os demais 50 milhões buscam refúgio na saúde suplementar. Sendo assim, não dá para pensar em uma solução que não passe pela discussão conjunta entre as esferas pública e privada, mesmo que, nos últimos anos, as tentativas de conversas tenham se tornado inviáveis em função de viés ideológico, sem que se chegasse a nenhuma solução para os graves problemas de financiamento.

Está claro que a medicina tem sofrido um forte impacto na sua cadeia de gastos, principalmente por conta de modificações no perfil da população brasileira. Hoje, o envelhecimento da nação demanda zelo, pois vivemos mais e isso custa mais caro. O perfil epidemiológico também tem apresentado alterações significativas, com diagnósticos cada vez mais frequentes de doenças degenerativas, oncológicas, mentais e cardiovasculares. Tudo isso demanda a utilização de tecnologia inovadora, como tratamentos oncológicos personalizados, terapias com o uso de imunobiológicos, cirurgias minimamente invasivas e robóticas. Inevitavelmente, a conta cresce.

Médico, presidente da Unimed Participações nilsonlmay@gmail.com - NILSON LUIZ MAY


29 DE JANEIRO DE 2019
CARPINEJAR

Se fosse o seu filho...

Durante a minha infância, a mãe sempre me encaminhava a um novo eletroencefalograma para ver se algum laudo dizia que eu era sadio. E todos só confirmavam que eu era retardado.

Devo ter feito quatro exames, em meses diferentes durante aquele frio ano de 1979. Tanto que ia para aula com a massinha na cabeça, herança dos eletrodos colados no couro cabeludo para medir a atividade elétrica do cérebro.

E ela recusava o diagnóstico. Não existe mulher mais teimosa. Óbvio que eu desconhecia o veredito. A minha sensação vinha a ser contrária à dela: eu jurava que realizava a bateria incansável de testes porque os médicos não localizavam o que eu tinha de errado.

Os médicos detectaram o problema desde a primeira consulta. Ela é que não acreditava, não se dava por vencida e se empenhava em alcançar uma segunda opinião.

Já estava na quarta opinião técnica e não mudava a resposta. Qualquer um mais racional e cético iria se conformar com o quadro, me encher de remédios, me colocar num atendimento especial e não estaria aqui no jornal para você.

Mas mãe é mãe, uma exceção à regra. Mãe não pensa com a cabeça, e sim com a barra do vestido do coração. Ela achava que eu estava apenas me retardando para brilhar depois, por preguiça ou transgressão.

Como não obteve o apoio da ciência, partiu para a missão de coletar provas práticas de minha saúde intelectual.

O que me levou a fazer a investigação foi o drástico atraso na escola (deixava provas em branco e errava a maior parte das palavras nos ditados). Portanto, ela tirou férias do trabalho e me ensinou a ler e escrever em casa a partir de jogos e brincadeiras. Em dois meses, voltei para a escola escrevendo e lendo melhor que os meus colegas.

Nenhuma professora mais questionou o meu desempenho. Nem solicitou ajuda médica. Fiquei livre das suspeitas.

Guardo a certeza de que a mãe nunca entregou os laudos para a escola. Não sei como desconversou a diretora, já que empaquei o andamento do conteúdo da turma na primeira série.

O mais louco é que fui considerado retardado e talvez realmente seja, apenas eu e ela fingimos bem durante todo esse tempo. Nunca houve um resultado provando o contrário.

CARPINEJAR

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019



28 DE JANEIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O que está acabando com o Brasil

Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil, dizia Saint-Hilaire. A saúva não acabou. O Brasil parece acabado, acossado por outras ameaças, menos tangíveis e muito mais insidiosas.

Ou o Brasil acaba com a impunidade, ou a impunidade acaba com o Brasil. A impunidade é uma das causas da violência urbana e foi uma das causas dos desastres de Mariana e de Brumadinho.

Como foi possível Brumadinho acontecer, depois de ter acontecido Mariana? Foi possível porque, com Mariana, houve impunidade. Se os culpados por Mariana tivessem sido responsabilizados, os responsáveis por Brumadinho não teriam sido negligentes e não se tornariam culpados.

Ou o Brasil acaba com a negligência, ou a negligência acaba com o Brasil. Foi por negligência que mais de 200 jovens morreram no incêndio da boate Kiss, há seis anos e um dia, e é por negligência que brasileiros morrem todos os dias no trânsito, nos corredores de hospitais, em tiroteios no meio da rua, soterrados pela lama tóxica de barragens malcuidadas.

Para acabar com a negligência, já sabemos, é preciso acabar com a impunidade, porque a punição serve de exemplo e evita a repetição de erros. Mas, a priori, a negligência tem de ser combatida com educação.

Um país educado sabe que existem valores universais. Sabe que o respeito às mulheres, aos negros e aos homossexuais não são causas da esquerda. São causas da humanidade. Sabe que exageros politicamente corretos são exatamente isso: exageros.

Um país educado sabe que os direitos humanos são direitos dos? humanos, não de bandidos.

Um país educado sabe que a proteção ao meio ambiente é fundamental inclusive para a riqueza da sua população. Sabe que a preservação da Amazônia, por exemplo, é essencial para o regime de chuvas, que, por sua vez, é essencial para a agricultura. Sabe que a fiscalização ambiental evita tragédias como as de Mariana e Brumadinho.

Bolsonaro, neste seu primeiro mês na Presidência, fez manifestações que preocuparam ambientalistas do mundo inteiro. Talvez a desgraça de Brumadinho seja-lhe útil, afinal. Talvez lhe mostre que cuidar do ambiente é uma dessas causas universais que têm de ser encaradas com seriedade.

Pelo menos o governo se assustou com o que houve em Minas. E reagiu rápido e bem, graças, sobretudo, à mobilização dos militares do primeiro escalão, treinados que eles são na gestão de crises.

Por enquanto, o governo está fazendo o que pode para atenuar os efeitos da catástrofe de Brumadinho. Se, além disso, realizar uma reflexão a respeito, entenderá que algumas bandeiras não são de direita nem de esquerda: são de todos. O governo pode aprender com Brumadinho. Pode crescer e se suavizar na dor. Pode controlar eventuais arroubos sectários de alguns de seus integrantes. Porque, hoje, mais do que a impunidade, a negligência, a falta de educação ou a saúva, nosso problema é o sectarismo. Ou o Brasil acaba com o sectarismo, ou o sectarismo acaba com o Brasil.

DAVID COIMBRA


28 DE JANEIRO DE 2019
MOBILIÁRIO

31 mil horas não marcadas

BUROCRACIA E FALHAS em licitações e de planejamento fazem com que a Capital esteja há três anos e meio sem relógios de rua.

Os relógios de rua da Capital já deixaram de marcar 31 mil horas desde que foram desativados, em julho de 2015, devido a uma combinação entre burocracia e falhas em licitações e de planejamento.

A prefeitura promete lançar, nas próximas semanas, novo edital destinado a instalar equipamentos capazes de informar hora, temperatura, radiação ultravioleta, além de fornecer sinal de wi-fi e contar com câmera. O governo municipal havia prometido abrir licitação no ano passado, mas resolveu esperar a aprovação da nova lei do mobiliário urbano na Câmara. O projeto foi votado em dezembro e deve ser enviado para sanção nas próximas semanas.

- A expectativa é de que a instalação dos relógios comece neste ano ainda - projeta o secretário de Parcerias Estratégicas, Bruno Vanuzzi.

A previsão é tentativa de dar corda a um projeto que se arrasta há três anos e meio. Desde então, sucederam-se três tipos de obstáculos: imbróglios judiciais, falhas em licitações e burocracia.

Mesmo quando marcavam as horas, os relógios não funcionavam nas condições ideais: a empresa Ativa explorava a publicidade sem licitação ou exigência de dividir o lucro com os cofres municipais. A intenção da prefeitura de licitar o sistema foi barrada por processo judicial que se arrastou por 16 anos, até 2015, quando a Justiça permitiu que os relógios fossem concedidos sob novo contrato. Aí houve novos problemas.

- A prefeitura tinha de ter planejado uma transição para que a população não ficasse desamparada - analisa Dannie Dubin, presidente da Associação Gaúcha das Empresas de Propaganda ao Ar Livre (Agepal).

Houve falhas conceituais e técnicas em duas concorrências. Na primeira, a prefeitura decidiu conceder não só os relógios, mas mobiliário urbano que incluía placas de rua (sem exploração de publicidade), paradas de ônibus e pontos de informação. Nenhum empresário se interessou. Após, foram licitados só relógios e placas de rua. A alteração de regras do edital levou a questionamentos do Ministério Público de Contas e do Tribunal de Contas do Estado. Tudo voltou ao começo. O ex-prefeito José Fortunati entende que não houve erro de gestão:

- Nem havia contrato com a empresa para a exploração dos relógios. Foi preciso recorrer à Justiça para regularizar essa situação. Em relação às licitações, contratamos uma consultoria. Não foi achômetro.

O governo Marchezan não conseguiu superar barreiras burocráticas. A Secretaria de Parcerias Estratégicas realizou audiência pública para definir a localização dos equipamentos, manteve o edital na Central de Licitações e na Procuradoria-Geral do Município e realizou nova consulta para colher mais sugestões. Decidiu esperar a aprovação da nova lei geral do mobiliário urbano para que o edital, quando lançado, esteja afinado com a legislação.

MARCELO GONZATTO


28 DE JANEIRO DE 2019

OPINIÃO DA RBS

O PAÍS NÃO APRENDEU A LIÇÃO

O segundo rompimento de barragem de resíduos de mineração em pouco mais de três anos, desta vez em Brumadinho e com um número superior de perdas humanas ao de Mariana, é a comprovação de que o país segue sem aprender com os erros. Os dois fatos não podem ser vistos isoladamente, como obra do acaso. Até hoje, os prejudicados pelo primeiro fato, em 2015, muitos dos quais enlutados por perdas de familiares, não tiveram sequer seus prejuízos materiais reparados. Épossível que, no caso dos ecossistemas, a restauração jamais venha a ocorrer integralmente. Ainda assim, só com muita articulação popular o país tem alguma chance de aprender com a repetição da tragédia de repercussão mundial.

A particularidade de a barragem responsável pelo vazamento de um mar de lama na última sexta- feira ter sido considerada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) como de "baixo risco de acidentes" só serve para ratificar que há falhas nos controles. É preciso que as vistorias em todo o país sejam refeitas, de imediato e com mais critério. A mineração de ferro se expandiu num ritmo acelerado demais nas últimas décadas, a ponto de a Vale do Rio Doce, responsável pelas duas grandes tragédias ambientais, ser a maior exportadora e a segunda maior do mundo na área.

Ainda assim, e mesmo depois do recrudescimento das pressões por mais rigor devido à tragédia de Mariana, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais segue ignorando um projeto de lei de iniciativa popular exigindo maior rigor no licenciamento de barragens. A necessária agilidade cobrada dos organismos ambientais para a liberação de licenças não pode ser confundida com leniência ou negligência, como vem ocorrendo. Não é essa a opção de crescimento, na qual o poder econômico se impõe sobre os demais, que o país deve fazer.

O governo federal, mesmo demonstrando pouco apreço pelas questões ambientais, agiu rápido no caso Brumadinho. Ainda assim, é preciso que a atuação seja permanente, e de forma incisiva. Não basta apenas maior rigor legal, se não há fiscais em número adequado para agir.

É preciso maior preocupação com a prevenção na área ambiental e mais rigor nos casos de crimes contra as pessoas e o meio no qual vivem e garantem o seu sustento. Desenvolvimento não pode ocorrer a qualquer custo, muito menos desconsiderar riscos previsíveis aos seres humanos.

OPINIÃO DA RBS


28 DE JANEIRO DE 2019
+ ECONOMIA

O RS TEM SITUAÇÃO MAIS DELICADA

O sócio da PwC Brasil Mauricio Colombari, responsável pela operação no Estado da consultoria britânica, entende que há otimismo dos empresários com os novos governos, mas lembra a necessidade de realização de reformas para conter a crise nas finanças no Estado e no país. Para o Rio Grande do Sul, são necessárias para retomar a competitividade. Hoje, lembra ele, o Estado atrai menos investimentos em comparação com Santa Catarina e Paraná.

Como a mudança de governo no país e no Rio Grande do Sul é percebida pelos empresários?

Sinto melhora no otimismo em relação ao ano anterior. Não diria que há euforia, até porque a situação global não é confortável e isso contamina um pouco. E pelos desafios internos, as incertezas em nível nacional. Isso afeta um pouco a situação no nosso Estado. Mas é um clima melhor do que no ano passado. Acreditamos que a situação vai melhorar a partir de 2019, principalmente no médio e longo prazo.

Como vai se refletir na economia?

Há potencial importante para melhorar investimentos, geração de empregos e, consequentemente, até mesmo na arrecadação, que vai ajudar o governo. Mas é difícil prever o impacto real no curto prazo. O importante é que as reformas nacional e estadual passem. O governador e o presidente têm capital político para isso. Assim, devemos verificar melhora na confiança de empresários e consumidores e, aí sim, veremos melhora nos empregos e investimentos, que tanto esperamos.

O que empresários esperam do Rio Grande do Sul?

Uma coisa bastante positiva é que o governo tem aberto vias de diálogo com todas as frentes, tanto na classe política como na empresarial. As mensagens que os empresários têm recebido do governo são positivas. Acho que o governo tem ido na direção certa em relação ao que esperam, que é sanear as finanças públicas. Isso não é uma solução mágica que vai acontecer da noite para o dia, mas está tomando as medidas necessárias para fazer as reformas e para que esse déficit no nosso Estado seja equilibrado. A partir daí, você consegue ter uma melhor eficiência, pensar alguma coisa de carga tributária. Enfim, criar um ambiente mais favorável para investimentos.

Qual é a diferença hoje entre Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul?

O Rio Grande do Sul tem situação financeira mais delicada. Isso mostra que temos de ser fortes e firmes na resolução dos problemas. Neste momento, os vizinhos têm condições mais favoráveis para atrair investimento, até por causa de toda a situação que eles se encontram, mas não é nada que o Rio Grande do Sul não consiga reverter com as reformas, para estar em condições de igualdade. Estamos um pouco atrás, principalmente pelo contexto. É notório que o Rio Grande do Sul está entre os Estados com situação mais complicada.

Isso afeta o ambiente de negócios?

O empresário, quando investe, considera as muitas incertezas em nível global, nacional e, se existem, locais. Aí fica difícil colocar dinheiro em um novo projeto. Ele quer previsibilidade, ou nunca terá certeza de que os seus investimentos vão dar certo. Quer condições de prever o que vai acontecer no médio e longo prazo. Quando a gente tem um Estado na situação em que estamos, fica mais difícil ter essa visibilidade. Esses fatores que o empresário não controla podem, sim, adiar tomada de decisão. Afeta a existência de novos investimentos, a confiança no futuro.

CAIO CIGANA

28 DE JANEIRO DE 2019
COLUNA

Escutemos os pássaros


Impossível passar por Sydney, muito procurada nesta época por familiares de quem mora na Austrália, e não perceber os pássaros. As aves, mais estranhas e espalhafatosas do que as nossas, estão por toda parte. De manhã cedo, já tem umas cruzando os céus em bando, às gargalhadas. Algumas chegam a tontear quem as olha, de tanta cor. Outras são pré-históricas. Todas compartilham com moradores e turistas as mesas de cafés que se espalham ao ar livre pela cidade.

Se Porto Alegre está longe, mas numa posição geográfica semelhante, por que seus pássaros são menos coloridos, menos visíveis, mais tímidos e mais comportados? Não deve ser apenas por não se localizar numa ilha-continente, nem às margens do Pacífico, mas do Atlântico.

O pássaro que ri como os humanos tem o mesmo nome de um prato à base de frango, vendido no Brasil e pelo mundo num restaurante inspirado no jeito Oz de ser. Curioso, pois o que a Austrália ainda consegue manter de autêntico é a exuberância de sua natureza, do mar selvagem, de animais nem sempre tão fofos como coalas e cangurus. E mais as aves - todas com o jeito de quem tenta nos dizer algo, mas o quê?

O restante de Sydney, pelo que se percebe assim só de olhar, de leve, é investimento estrangeiro, principalmente chinês. O que mais se vê nas lojas sofisticadas são mulheres orientais com bolsinhas minúsculas e o nome da grife em letras gigantes. Voejam como bonecas em seus vestidos de renda, misteriosas como aves migratórias.

Seria muita viagem imaginar as mesas de bares e cafés ao ar livre de Porto Alegre tomadas por pássaros? Na Padre Chagas, por exemplo. No Mercado Público. Na orla. Não apenas papagaios com todas as cores do arco-íris e outras mais. Também esses que, na Austrália, fazem lembrar maçaricos e marrecas-piadeiras, vistos pelos gaúchos apenas em banhados. Talvez uns urubus brancos que, em Sydney, não poupam nem merenda de criança na escola. E ninguém podendo fazer nada.

O historiador Yuval Noah Harari, no livro Sapiens, cita a ilha como palco da primeira grande tragédia ecológica da humanidade. Foi depois de alcançar esse país-continente que o Homo sapiens tornou-se a espécie mais mortífera da Terra. Então chegaram os ingleses, e os próprios aborígines foram dizimados.Hoje, todos são cultuados, incluindo as aves.

Difícil saber exatamente como, pois as distâncias seguem parecendo intermináveis, mas os Sapiens chegaram até o pampa. Foi o início da devastação de nossos animais pré-históricos. Depois vieram os ibéricos, e onde estão mesmo as pacas?

Não conseguimos, como a Austrália, transformar terra arrasada em civilização a serviço de todos, indistintamente. Poderíamos, pelo menos, ter respeitado as pessoas e o meio do qual fazem parte. Talvez estivéssemos vivendo hoje em maior harmonia, com mais bem-estar e reverência a nós mesmos, ao outro e ao que nos cerca.

As aves tentam nos dizer algo transcendental. As aves nos alertam sobre o que fazemos com Marianas e Brumadinhos, mas não as escutamos. Quando vamos conseguir entender o que os pássaros têm a nos revelar?

CLÓVIS MALTA

sábado, 26 de janeiro de 2019


26 DE JANEIRO DE 2019
LYA LUFT

Os desumanos


Uma amiga me pergunta se acho que os homens, no fundo, temem as mulheres. Não acho não, mas com certeza sermos diferentes provoca suspeitas às vezes irreparáveis.

Talvez na era dos trogloditas ou antes, essa criatura esquisita "que sangra todo mês e não morre", ou que de repente se retorce e dela brota um outro ser humano, deve ter causado muito assombro. Nunca saberemos. Estudiosos e entendidos falam até hoje desse estranhamento original. Teorias, desbundes, revoluções morais e imorais devem com certeza ter atenuado isso, ou liquidado de vez. Mas algo restou e ainda se revela seguidamente explodindo em violência.

Cada vez que ouço notícias de espancamento ou morte de mulheres - sim, feminicídio, usemos o termo já que ele existe -, me espanta como é possível que mulheres não débeis mentais nem fisicamente, suportem companheiros que ano após ano, dia após dia, as maltratam. E se (rarissimamente) conseguem uma ordem judicial de afastamento físico dele, o cavalheiro quase sempre a desrespeita: pois leis aqui são feitas para não se respeitar, e a punição quase inexiste. Algumas, que eu sei, depois de conseguirem afastar o truculento de casa, o chamam de volta porque não sabem viver sem ele. Dão chancela ao título de um livrinho que há muitos anos alguém me mostrou: Sou Infeliz, mas Tenho Marido.

O convívio com alguém grosseiro e violento pode ser a única saída que algumas divisam. Ou têm no fundo mais fundo algo de masoquista: apanho porque mereço, sou maltratada porque não valho grande coisa.

O assassinato de centenas, milhares de mulheres no Brasil me dá arrepios: me gela a alma saber que nos matam porque tomaram um porre, porque desejam outra, porque nossa presença, nossa voz, os irrita, porque estão de mau humor, perderam o emprego ou a amante, ou simplesmente, como disse certa vez um adolescente sequestrador de um amigo meu, "hoje a gente saiu de casa a fim de matar alguém". Quanto mais tempo - este meu tempo - passa, menos entendo muitíssimas coisas, entre elas está: o que falta em nossas leis, nossa cultura e moral, para que haja essa banalização de assassinatos de mulheres? O que sentem, pensam, os assassinos? Tive raiva, matei. Estava irritado, esfaqueei. Perdi o resto do salário no jogo, decapitei. Queria dormir e ela só reclamava, esquartejei.

Que chancela maldita dá permissão para esses horrendos fatos? Por qual parcela disso somos responsáveis, nós, mulheres, nós, vítimas? Humildade abjeta, solidão terrível, inércia, alienação, uma eterna culpa vil que nos faz oferecer o pescoço, o coração, ou a vida?

Não sei. Nunca entenderei. Mas não são só as leis profundamente falhadas, a segurança incrivelmente relapsa, a escolha trágica de parceiros monstruosos, que permitem esses crimes: alguma coisa em nós, emocional, cultural, psíquica, ancestral, nos faz vitimas fáceis?

Não sei. Não sei se quero saber. Mas, hoje, quando liguei a TV nos noticiários e mais uma vez, como quase todos os dias, ouvi falar de um assassinato de mulher por seu parceiro, não havia nada a fazer senão vir ao computador e escrever qualquer coisa para desabafar, para esbravejar, clamar, partilhar. O que há conosco, humanos tão desumanos?

LYA LUFT

26 DE JANEIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Tango argentino


Não lembro quem me disse, se foi um ex-namorado, se foi uma astróloga, se foi minha mãe (vai ver ninguém me disse, deduzi sozinha): "Você é um tango argentino". Naturalmente, a frase estava relacionada ao meu jeito de lidar com as emoções.

Elogio ou crítica? Acho que era uma crítica travestida de elogio. Alguém estava dizendo que eu era exagerada, dramática, densa - mas antes isso do que ser uma songamonga, concorda? Um tango é um tango. Inolvidable.

Não faz muito tempo, estive em Buenos Aires e assisti a dois espetáculos de tango: um mais tradicional, com bailarinos formidáveis e números de tirar o fôlego (Rojo Tango, no hotel Faena) e outro mais alternativo, um grupo musical (Orquestra Fernandez Fierro), composto por 12 tipos com pinta de roqueiros bárbaros, neanderthais manejando violinos e bandoneons ao lado de uma jovem intérprete que cantava com o nervo exposto, todos eles fazendo do tango não apenas uma declaração sofrida de amor, mas uma reivindicação social de uma amplitude quase presunçosa - o tango como expressão máxima do que nos transforma em fêmeas e machos, do que nos altera, nos encoraja, nos arrebata. 

O tango não só como manifestação sexual, mas também de cidadania, o tango como propulsor de uma mudança urgente que inicia na corrente sanguínea e acaba sei lá onde, acho que simplesmente não acaba: um tango puxa o outro.

Estava eu ali, sentada no escuro, em uma sala aconchegante e sofisticada no primeiro espetáculo, regada a vinho de muitos pesos, e em outra noite numa sala improvisada, sem ar condicionado numa noite fria, um muquifo com vinho barato e atmosfera perfeita para receber os aventureiros que transformam o mundo. Em cada um daqueles ambientes antagônicos, o tango seduzia, injetava sensualidade, dramaticidade, o inevitável chamamento ao coração. Como se dissesse: ei, você aí, não é hora de pensar. Sinta! Com força, hombre.

"Você é um tango argentino", lembrei. E concordei, em silêncio. Mas será que ainda sou um tango? Já chorei, acertei o passo, errei o passo, me iludi, me frustrei, insisti, fiz besteira, já dancei o que tinha que dançar - e fui o par perfeito para outros preencherem suas biografias com suor e lágrimas também. Somos todos amadores. Os que amam.

Hoje o tango não representa mais o que sou. Drama combina com palco, não mais com minha vida emocional. Adiós, tango. Passadas mais leves, rostos menos tensos, menos sangue, mais jinga, mais bossa, mais molecagem, mais sacanagem, mais hoje, menos eternidade. O vestido vermelho, o salto alto e o carão podem até ser usados numa mise-en-scéne, mas não durante o jantar de uma segunda-feira. Agora não saio mais da plateia. Prefiro ficar de mãos dadas com a paz, admirando os intensos protagonistas do tango a uma distância segura.

MARTHA MEDEIROS

26 DE JANEIRO DE 2019
CARPINEJAR

Chuva de arroz


O que tem no saleiro? Sal, dirá o mais apressado. Apesar da obviedade, o saleiro guarda grãos de arroz, que tiram a umidade, desfazem as bolas salinas e facilitam a saída do conteúdo.

Poucos percebem a importância do arroz para salgar a comida e não deixar ninguém pagando o mico de bater o pote histericamente na mesa, de um lado para o outro, a fim de desentupi-lo. Ele é essencial, mas invisível. Não obtém a simpatia, mas segura a barra.

Na relação, sempre destacamos o sal da vida, o sonhador, o louco, o visionário, o que não se limita à realidade. Não valorizamos em nada o arroz, aquela figura que enquadra o par, inspirando-o a colocar os pés no chão e concretizar os seus projetos um de cada vez.

Longe do arroz, o sal não sai. Desfalcado de uma pessoa mais objetiva e prática, o casamento não funciona, não será realizada coisa alguma. Haverá apenas rompantes e grandes ideias vazias. As fantasias desaparecerão com o tempo como meros impulsos.

O sal tempera a convivência com a sua criatividade e ousadia. O arroz possibilita que o sal crie condições para que venha à tona e se torne popular.

O sal inventa e não calcula as consequências. O arroz executa planilha Excel de todo gasto e evita dívidas. O sal prefere delirar; o arroz, pensar dentro do possível. O sal privilegia a intensidade; o arroz, a estabilidade. O sal quer o sucesso rapidamente, o arroz monta um plano de ação a longo prazo. O sal é a aventura, o arroz é a serenidade. O sal é destemido, o arroz é cauteloso. O sal é a superfície, o arroz é a base.

Os preconceitos recaem sobre o arroz, visto negativamente como o chato do casal. Tanto que a esposa ou o marido realista é chamado ironicamente pelos demais de "sem sal", já que ocupa o papel difícil da verdade dentro de casa e não esquece o lado ruim de qualquer quimera. Põe defeitos, previne os riscos e estraga o prazer do momento com conversas sérias sobre a longevidade de uma nova panaceia.

Porém, desprovido do arroz, o sal não será conhecido, não chegará à luz do sol, não atiçará a gula de ninguém.

Parece que brilhante é só o sal, jamais o arroz, que surge como um freio da espontaneidade.

O que não se pode esquecer é que, na saída da igreja, os noivos recebem uma chuva de arroz. Um sinal de que amor é esforço e de que a sua sorte depende de quem trabalha e refina o fluxo na sombra.

CARPINEJAR