sábado, 31 de agosto de 2013


01 de setembro de 2013 | N° 17540
MARTHA MEDEIROS

Meu coração em tuas mãos

Não é porque ele foi grosseiro comigo que eu tinha que ser grosseira com ele também, mas fiz, está feito, agora acabou, solidão pra sempre é o que me espera, assim como aquela dívida maldita que só aumenta, meus credores não têm nenhuma compaixão, vou ter que vender meu carro para pagá-la, e essa tosse insistente só pode significar que estou condenada, sem falar que minha filha ainda não voltou da festa, pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, como está quente nesse quarto, eu nunca mais vou conseguir dormir, nunca mais, vou acordar com olheiras até o queixo, sou uma miserável que... zzzzzz.

E então você acorda, abre as cortinas da janela, e recebe um telefonema do seu amor reconhecendo que andou abusando da sua paciência e que está morrendo de saudades, e entra um trabalho freelancer que ajudará a pagar a conta atrasada, e a tosse passa com Melagrião, e a filha está dormindo feito um anjo no quarto ao lado, e as suas olheiras estão aparentes mesmo, mas nada que um corretivo não disfarce. Olhe só, suas preocupações ficaram desse tamanhozinho, de quem foi a mágica?

Do primeiro raio de sol. Durante o dia, nossa cabeça pensa melhor e as soluções aparecem no decorrer das horas. A mente ajusta o foco e não dá trela a fantasmas. Já a madrugada não conhece a palavra sanidade.

A escuridão e o silêncio transformam pequenas chateações em dramas diabólicos, e a gente cai nessa cilada, achando mesmo que estamos lidando com o pior da vida. Mas que vida? Hipercansados, ansiosos, deprimidos, paranoicos, isso é vida? A insônia desperta em nós a morte, isso sim. Ficamos todos ferrados não pela falta de sono, mas pelo excesso de dilemas. Como disse Dostoievski, ser extremamente consciente é uma doença. A gente morre por pensar demais. E pensar é só o que nos resta durante uma insônia.

Mas é possível controlar esses pensamentos malditos.

Em vez de permitir que o cérebro maximize nossos problemas, o melhor seria transformar nossa miséria noturna em algo produtivo. Porém, nem todos conseguem levantar da cama – ainda mais no inverno – a fim de guerrear com seus demônios. Até porque sempre há a esperança de se conseguir dormir pelo menos por uma ou duas horas, o que não acontecerá no caso de acendermos as luzes para pintarmos quadros, escrevermos poemas, fritarmos omeletes, cortarmos o próprio cabelo – ai, não corte o cabelo às quatro da manhã, vá por mim.

Posso fazer uma sugestão? Sem precisar levantar, sem acender a luz, jogue “stop” mentalmente com você mesmo. Países: a, Alemanha; b, Bélgica; c, Canadá; d, Dinamarca... Há grande chance de, antes de chegar no p, Portugal, você já ter adormecido. Se não, siga com o jogo, fazendo seu a-b-c para títulos de livros, comidas, profissões, ruas da cidade. O truque é simples: trocar de preocupação. Ou você prefere continuar fazendo o a-b-c das doenças que poderá contrair ou das pessoas a quem já magoou?

Parece bobagem, e é, mas quase sempre funciona. Jogue “stop” noturno com você mesmo, e stop a insônia.



01 de setembro de 2013 | N° 17540
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meu coração em tuas mãos

– Escute meu coração! – ela me pediu.

Achei bobagem. Concluí que era coisa de criança, que adultos não deviam perder tempo ouvindo o coração. Lembrava uma infantilidade, uma doçura extravagante. Apesar de minha recusa, ela colocou minha palma esquerda sobre seu peito.

Fingi interesse até que a sequência virou música. Fazia muito que não ouvia o coração com as mãos. A mão é o ouvido perfeito. A mão é uma concha natural; o oceano nos dedos.

Naquela hora, eu capturei o animal acelerado, seu silêncio enervado, seu desejo correndo para todas as veias da boca. Espantei-me com a banalidade, a redescoberta do óbvio, como se estivesse aprendendo a amarrar os cadarços depois de velho.

Eu entendia o que ela estava sentindo melhor do que se falasse. Eu via que ela era real, e que ela era possível. As palavras foram se tornando palpáveis. As frases cresciam em sentido. É como um coro que desmancha a solidão do pensamento.

Eu me apavorei com o meu desconhecimento do gesto. Por que não cumprimento as pessoas escutando seu coração? Por que abandonei o hábito de pequeno? Por que reservei a mecânica ao médico?

Por que não me permitia ser despudoradamente emocional? Ouvir o coração é como acompanhar os passos num piso de madeira. A gente identifica o familiar avançando pela casa, somos capazes de adivinhar o cômodo em que se encontra.

Ouvir o coração é como ouvir um órgão numa igreja, não um piano. Há uma diferença de fundo. Os tubos de metal e de madeira ressoam como um segundo sino, em caixas de cinco andares.

Ecoa um planger épico, inevitável. O corpo já treme ao andar. O coração é mesmo um altar, mas quem ainda escuta? Ouve-se o batimento da criança no ventre, os pais se emocionam com os primeiros sinais de vida de seus filhos, mas nos desacostumamos com o próprio ritmo. Ninguém nos inspira ou exige sua consulta.

Esquecemos de conferir o beijo, o abraço e o toque registrados lá, na linha cardíaca.


Com o coração dela em minhas mãos, compreendi qual o nosso medo. Quem escuta o coração não machuca o outro. Será responsável pela fraqueza. Sofrerá esperando o próximo suspiro do som. Estará consciente do intervalo de cada batida. Tem noção do que é ferir, e como dói ser sozinho.

01 de setembro de 2013 | N° 17540
VERISSIMO

O náufrago

Um náufrago é resgatado de uma ilha deserta. Não consegue dizer quanto tempo passou na ilha. Perdeu a noção do tempo. Pelo seu aspecto ao ser encontrado a barba quase no umbigo, as roupas reduzidas a fiapos, a pele curtida pelo sol e o sal foram muitos anos. Mas quantos? Ele não se lembra do naufrágio. Não se lembra do nome do navio, do tipo do navio, do que fazia a bordo... Não se lembra nem de onde é.

– Que língua eu estou falando? – Inglês. Mas com sotaque. – Sotaque de onde?

– É difícil dizer... – Estranho. Não me ocorre nenhuma outra língua além do inglês, embora eu sinta que não é a minha língua materna. Talvez seja por causa de Pamela...– Pamela? – A mulher que eu fiz, de areia. – Você fez uma mulher de areia?

– Você não sabe o que é a solidão numa ilha deserta.

Ele precisava de companhia humana. No princípio, só precisava de sexo. Fizera um buraco na areia. Mas, com o tempo, sentira que precisava de mais do que apenas um buraco. Construiu um corpo de mulher em torno do buraco. Seios, grandes seios. Quadris, uma cintura delgada, coxas longas. Sempre gostara de coxas longas. Mas logo sentira que ainda faltava algo. E fizera uma cabeça para sua mulher de areia. Um rosto, com feições, nariz, boca.

Um rosto bonito, cuidadosamente esculpido, e que ele retocava constantemente, consertando os estragos feitos pelos caranguejos e o vento. O rosto de uma mulher satisfeita. O rosto de uma mulher que o amava, que mal podia esperar pelas noites de paixão sob as estrelas, com ele. Mas...

– Mas o quê? – O corpo desmentia o rosto. O corpo era estático e sem vida. Não se mexia, não acompanhava o meu ardor, permanecia ausente e frio. O corpo negava o brilho faiscante das conchas azuis que eram os olhos de Pamela. – Por que “Pamela”?

– Porque decidi que, fria daquela jeito, só podia ser inglesa. Eu tinha feito uma inglesa! Deve ser por isso que conservei o meu inglês. Era a língua com a qual eu fazia declarações de amor a Pamela e tentava despertar no seu corpo a calidez que o rosto prometia. Ela não reagia. Ela não me respondia. Ficava muda e distante. Também não respondeu quando eu comecei a gritar com ela, e a xingá-la, e acusá-la.

– Acusá-la de quê? – De me trair. Pamela estava me enganando.

– A mulher de areia estava enganando você? – Estava! – Com quem?

– Não tenho a menor ideia. Eu só não tinha dúvida de que, com o outro, ou com os outros, ela se mexia. Uma loucura, eu sei. Mas eu tinha pedido aquilo. Eu tinha criado o meu próprio tormento. Não se tem companhia humana impunemente. Onde há um outro, há confusão, há conflito, há desgosto. E há traição.

– O que você fez?

– Um dia, destruí a Pamela a pontapés. Só deixei o buraco no chão. Mas no dia seguinte a reconstruí, os grandes seios, as longas coxas, pedindo perdão, jurando que aquilo nunca mais aconteceria. E no dia seguinte a destruí a pontapés outra vez.

– Grego. – Hein? – O seu sotaque. Pode ser grego. – Hmmm. Grego. É possível. Me sinto muito antigo. – Qual é a última lembrança que você tem do mundo, antes de naufragar?

– Deixa ver... Rita Pavone. Não tinha uma Rita Pavone?


Decidiram não contar nada ao náufrago sobre o 11/9 e a Rita Pavone até ele estar completamente recuperado. E o resgataram, apesar da sua insistência em levar o buraco junto.

01 de setembro de 2013 | N° 17540
PAULO SANT’ANA

O autocanalha

Estive matutando sobre por que as pessoas mentem.

É óbvio, mas mentem para fugir à responsabilidade. Mentem para escapar de serem acusadas de falar a verdade, e nada mais dói muitas vezes do que expor a verdade.

Eu, por exemplo, me sinto incapaz física e espiritualmente de saber a verdade a meu respeito. Tenho medo de que, dizendo o que pensam de mim, as pessoas de repente me revelem um salafrário, um sacripanta, um inconfiável.

Já pensaram os meus leitores sobre o que pensam sobre eles as outras pessoas? Será que estamos preparados para o golpe brutal de nos conhecermos a nós próprios pelo que pensam de nós os outros?

Nós podemos ter uma bela ideia sobre nós que será energicamente desmentida pela opinião dos outros. Que choque gigantesco essa opinião alheia produziria sobre nós!

Estaria eu, por exemplo, gabando-me a mim mesmo do meu excelente caráter, quando sobreviriam opiniões de pessoas que me conhecem bastante e que atestariam que tenho um péssimo caráter. Já pensaram na pororoca que isso poderia causar em mim?

Eu me achava solidário e as pessoas vieram me dizer que sou um egoísta. Eu me achava caridoso e as pessoas se prontificaram a me atirar na cara que todo o dinheiro que junto reverto para meu bem pessoal e não tiro nem um naco das minhas economias para ajudar os outros.

Eu me considerava altruísta e as pessoas me provaram que meus sentimentos são rasteiros e que não tenho princípios, navego na existência ao sabor dos ventos sem fixar-me nas mais elementares regras de solidariedade humana.

Vejo agora, confrontando o que penso de mim e o que pensam os outros, que não tenho clemência, que não tenho paciência com os outros e, principalmente, desconheço a regra primária de colocar-me no lugar dos outros antes de eu julgar seus atos.

É muito chato a gente bater de frente assim com a própria consciência. Tudo o que queria era poder não ter de defrontar-me assim com minha consciência.
Que os outros me julguem, isso eu tiro de letra, mas ter, de repente, de julgar-me a mim próprio é um exercício que está se tornando cruento para mim: o bom, o confortável é julgar os outros – e de repente sou chamado pela consciência a julgar-me a mim próprio.

Será que tenho isenção para julgar a mim próprio? Não correrei o risco da autoindulgência? Da autocompaixão?  Faltar-me-á certamente isenção para um autojulgamento. Será que nesse encontro comigo mesmo não acabarei concluindo que sou um canalha?

Ou, então, que estarei sendo um patife ao me preocupar mais comigo do que com os outros?

Ou, então, que é um argumento de escape meu considerar que tenho mais obrigações comigo do que com os outros, definindo-me como um canalha perfeito quando digo que, se eu não cuidar dos meus interesses, os outros é que têm menos dever de fazê-lo, ora bolas!


Não é essa uma posição confortável em que sempre se colocam justamente os antissolidários?

01 de setembro de 2013 | N° 17540
CARTA DA EDITORA | MARTA GLEICH

Mais espaço para assuntos digitais

A partir desta edição, o assunto digital ganha muito mais espaço em Zero Hora. A ideia é ter, todo dia, alguma reportagem ligada a vida digital, tecnologia, aplicativos, novos aparelhos e tendências. Há alguns meses, a Redação discutia o seguinte dilema: deveríamos concentrar os assuntos digitais no caderno semanal de quatro páginas das quartas-feiras, restringindo a um nicho de leitores esses conteúdos, ou distribuir o tema por todo o jornal?

Afinal, tecnologia e vida digital podem estar relacionadas à economia, ao esporte, a comportamento, à saúde, à educação, a qualquer coisa. E é por isso que resolvemos encerrar o caderno Digital e, ao mesmo tempo, semeá-lo por todo o jornal, em reportagens identificadas pelo logotipo

Além de aparecer em todas as editorias, o assunto ganhará dois espaços fixos: às quartas-feiras, a coluna Digital, escrita por Marcelo Sarkis, trará as principais novidades da semana e as tendências do mundo digital, em parceria com Vanessa Nunes, que já assina a coluna Tecnologia na Cabeça. A coluna de games, assinada por André Pase, passa para o Segundo Caderno, sempre às segundas-feiras.


Não perca a primeira reportagem sobre vida digital nesta edição. Nela, você conhecerá a geração de jovens nascidos a partir do ano 2000, conhecidos como geração Z. Assim como o conteúdo digital em Zero Hora, eles estão por toda a parte e lidam naturalmente com tecnologia, ultrapassando os limites entre o online e o offline. Confira nas páginas 4 e 5.

Além da Vida - Paula Fernandes e Victor Chaves

Air

Andre Rieu - Ave Maria (Maastricht 2008) DIGITAL TV

Andre Rieu - Il Silenzio (Maastricht 2008) DIGITAL TV


João Chagas Leite-Primavera
RUTH DE AQUINO
28/08/2013 13h12 - Atualizado em 28/08/2013 14h26

Ser ou não ser Patriota: eis a “não-questão” na lambança do eixo Dilma-Morales

O confinamento numa sala de 20 metros quadrados sem direito a nada por 452 dias não é DOI-Codi mas é "DÓI-Tudo". Está longe de ser o céu.

452 dias numa sala de 20 metros quadrados da embaixada brasileira em La Paz. Repetindo: 452 dias. É muito. Pode não ser o DOI-Codi mas é o DÓI-Tudo, mente insana corpo insano. Se a presidente Dilma disse, com conhecimento de causa, que o DOI-Codi é tão distante das condições em que estava confinado nosso asilado boliviano Roger Pinto Molina “como é distante o céu do inferno”...então isso significa que o senador “procurado” pelo governo muy amigo de Evo Morales estava no “céu” todo esse tempo.

Era um céu pequenininho, sem direito de ir e vir nem de receber visitas. Molina estava confinado no céu desde que pediu proteção ao Brasil, alegando risco de morte após denunciar o envolvimento de integrantes do governo Evo Morales com o narcotráfico.

Será que por isso Molina entrou em depressão e queria se suicidar? O céu não é suficiente para um dissidente de Morales a quem o Brasil de Dilma Rousseff concedeu asilo por não considerá-lo um criminoso comum e sim um perseguido político? O que Molina quer? Inferno? Muita ingratidão do senador, separado de sua família no Acre por apenas 452 dias, à espera de uma intervenção divina – que surgiu na pessoa do ministro Eduardo Saboia. Ele era o encarregado de negócios substituindo o embaixador brasileiro Marcelo Biato, afastado por exigência do governo boliviano.

Dilma revoltou-se com razão com a lambança que passou por baixo de suas pernas. A presidente disse que fazia questão de “proteger a vida” do boliviano. Saboia achou que a intenção de Dilma não era suficiente e que o governo brasileiro era insensível às normas de bons tratos a asilados. E levou Molina para Corumbá. Uma “fuga espetacular” sem que ninguém soubesse! Bond, mi nombre es James Bond.

O governo de Evo Morales está fulo da vida. Morales é o mesmo que desapropriou refinarias da Petrobras e que mandou revistar com cães farejadores o avião da FAB em que o ministro da Defesa, Celso Amorim, retornava de Santa Cruz de la Sierra. O líder indígena Morales (ou “indígena” é politicamente incorreto?) já tinha deixado claro, por meio de suas autoridades, que o senador Molina “podia apodrecer na cadeia”. São palavras do pai do diplomata Eduardo Saboia, o embaixador aposentado Gilberto Vergne Saboia, que se diz orgulhoso da ação do filho, “legítima e legal”.

O governador de Pernambuco e presidente do PSB, Eduardo Campos, já meteu sua colher nessa sopa indigesta do Itamaraty: “Salvamos uma vida e cumprimos uma tradição que é própria do povo latino e do brasileiro, que é de abrigar. Essa é uma causa humanitária”. E a presidente Dilma com mais essa agora?

O chanceler Antonio Patriota foi defenestrado por causa do imbroglio, no exílio dourado de Nova York. Esse é o verdadeiro salvo-conduto de que todos precisamos quando falhamos, não? Foi ruim mas foi bom.
Caracas!!! Existe ou não a Convenção determinando que, se um país concede asilo diplomático, o outro hermano dá o salvo-conduto? Amigos amigos, asilados à parte para Evo Morales. Dançou o nosso chanceler.

Mas muita gente boa no Itamaraty está se pintando com maquiagem de guerra porque vem chumbo grosso por aí. Conversei em off com um embaixador. Tudo precisa ser em off agora. Disse ele:

“Até agora parece-me difícil que o Saboia tenha saído com o senador sem que ninguém percebesse - e que os fuzileiros navais não tivessem comentado nada com os adidos militares e que o carro tenha passado na fronteira com o grupo e sem problemas. Está todo mundo focado na demissão do Patriota mas ninguém insiste nestas perguntas. Por que será que não? Só sei que, na rede, os diplomatas apoiam o Saboia e já existe página no Facebook se solidarizando com ele”.


Aliás, o Celso Amorim vai ser demitido porque os subalternos cometeram ato de indisciplina? Perguntar não ofende. Ou será que ofende? Eis a questão.

WALCYR CARRASCO
30/08/2013 21h27

Escravos cubanos

Se vêm para trabalhar, os médicos não deveriam estar submetidos às leis brasileiras?

Meus avós vieram da Espanha no início do século XX. Todos, por parte de pai e mãe. Foram trabalhar em plantações de café e nunca mais voltaram para sua pátria original. O Brasil se tornou sua pátria. Sempre brinquei comigo mesmo que poderia ter nascido espanhol. Tenho, é claro, uma afinidade grande por esse país.

Até orgulho da arquitetura espanhola, da arte, da literatura, do sucesso da gastronomia. Picasso, afinal de contas, não era espanhol? Mas, quando meus avós desembarcaram, imediatamente assumiram que este era seu país. Aqui viveriam, teriam seus filhos, construiriam seu futuro.

Já observei levas de imigração, inclusive para fora do país. Quando jovem, passei alguns anos no exterior. Nos Estados Unidos, cruzei com muitos brasileiros que haviam decidido se tornar americanos. Inclusive mudando de condição social. Estudantes de classe média se tornavam garçons, motoristas de limusine. Um amigo jornalista, casado com uma americana, foi trabalhar em telefonia, instalando fios, aparelhos, sem a menor frustração. Todos agiram como meus avós: submeteram-se às leis da nova pátria.

Tenho um amigo brasileiro, que também tem nacionalidade belga. Vive parte do ano em Paris. Exatamente cinco meses. Se ficar seis, ganha o direito de residência e, consequentemente, a obrigação de pagar impostos. Não só do que ganhar lá, como de suas rendas no Brasil. Foge da residência francesa que, no passado, foi símbolo de status, mas hoje, em seu entender, lhe causaria um rombo financeiro.

Sempre admirei meus avós pela coragem. Fico me perguntando: como alguém sobe num navio, rumo a um país desconhecido, deixa a família, para um futuro incerto? Italianos, japoneses fizeram isso. Judeus sobreviventes do Holocausto também vieram para cá. Todos vivem ou viveram de acordo com as leis nacionais.

De repente, levei um susto. Surge agora uma leva de imigrantes, os médicos cubanos, que se mudam para cá, mas que não viverão sob as leis brasileiras? O regime trabalhista nacional é severo. E, na minha opinião, antigo, ultrapassado, porque não prevê situações que surgiram com a evolução da sociedade. Tive uma amiga que era dona de um salão de beleza. Cabeleireiros e manicures costumam ser uma espécie de associados do salão. O empresário monta a estrutura. Os profissionais ganham uma boa percentagem por corte e por unhas, de 40% a 60%.

Mas a lei trabalhista não prevê esse tipo de situação. Depois de três meses, o profissional passa a ter uma relação estável. E processa quando vai embora, em cima de direitos sobre seus ganhos. Minha amiga levou uns três ou quatro processos. Teve de fechar o salão. Há outras profissões em que acontece o mesmo. A combinação é uma, mas depois de algum tempo é caracterizada a estabilidade, e o empregador perde qualquer processo.

Os médicos cubanos estão vindo sob outra lei. O salário deles será pago ao governo de Cuba. E o governo repassará uma percentagem aos profissionais. Estrategicamente, chamou-se de “bolsa”. Bolsa é algo que se oferece a estudantes que vão estudar, fazer especialização, se aprimorar enfim. Os médicos vêm para trabalhar ou não?

É óbvio, isso não é bolsa coisa nenhuma. É um truque semântico. Se vêm para trabalhar, não deviam estar submetidos às leis brasileiras? O argumento é que Cuba já fez esse acordo com outros países.

E daí? O que eu, cidadão, que pago meus impostos, tenho a ver com isso? Nosso governo resolveu ajudar financeiramente Cuba por meio dessa estratégia? Nosso dinheiro está sobrando? Como, se sentimos falta de tudo: segurança, hospitais, escolas? Pior que isso, se Cuba se acha no direito de vender seus cidadãos, nós, brasileiros, devemos concordar? Os médicos que se danem?

Esses médicos não formarão laços com o país, como meus avós fizeram. Estarão aqui de passagem, pois suas famílias ficarão em território cubano (reféns?). Como fincar raízes? Como amar seus pacientes, se dedicar, se não têm a dignidade de receber seu salário diretamente, como qualquer um que trabalha e vive no Brasil?


O Ministério Público contesta a questão salarial na vinda dos médicos cubanos. Ainda bem que temos um Ministério Público atuante. Mas como um governo democrático aceitou uma coisa dessas? Eu pensava que a escravidão havia acabado. Constato que os médicos cubanos se tornaram um novo tipo de escravo, vendido pelo seu país, a quem aceita pagar.

31 de agosto de 2013 | N° 17539
EDITORIAIS ZH

PELO VOTO ÀS CLARAS

Confrontado com o repúdio generalizado à manutenção pela Câmara do mandato do deputado Natan Donadon (sem partido-RO), o Congresso volta a prometer a extinção do voto secreto, prevista para as próximas duas semanas. É mais um dos muitos compromissos assumidos pelos parlamentares nos últimos anos de acabar com essa excrescência, que só tem sentido em situações muito específicas.

Já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e aguarda exame em plenário a proposta do senador Paulo Paim (PT) que reduz a possibilidade de parlamentares tomarem decisões em votações secretas no Congresso.

A proposição do parlamentar extingue o escrutínio secreto para indicações de autoridades e chefes de missões diplomáticas, exoneração do procurador-geral da República antes do término do mandato, cassação de mandato parlamentar e apreciação de vetos presidenciais. O texto deixa de fora apenas o voto secreto para eleições de integrantes das Mesas do Senado e da Câmara, cuja extinção é objeto de outro projeto.

Voto secreto, nos moldes do que existe hoje no parlamento brasileiro, só serve para acobertar quem não tem coragem de assumir perante os eleitores as consequências de atos como a preservação do mandato do deputado “reeducando” (na expressão do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello).

O voto secreto tinha por objetivo preservar a liberdade de consciência dos parlamentares em decisões nas quais uma tomada de posição pública poderia acarretar pressões de um ou outro tipo. Na prática, porém, as votações protegidas por sigilo são as que envolvem interesses corporativos.

O sistema político brasileiro é particularmente eficaz quando se trata de distorcer a finalidade de um instrumento democrático para torná-lo ferramenta do avesso da democracia. Tome-se, por exemplo, o caso das medidas provisórias, inspiradas no Direito italiano, no qual servem expressamente para dar ao presidente o poder de legislar de forma emergencial, atendidos os pressupostos de relevância e urgência. No Brasil, a medida provisória converteu-se em verdadeira mania presidencial, servindo até mesmo para criação e majoração de tributos.

O país aguarda para breve o fim do julgamento dos réus do mensalão. É óbvio que, nessas circunstâncias, a decisão de acabar com o voto secreto no Congresso só ocorrerá se a sociedade pressionar nesse sentido. Não cabe dúvida de que os cidadãos comuns são os principais interessados em jogar luz sobre esses e outros processos legislativos.


Trata-se, em primeiro lugar, de uma questão de transparência no exercício da atividade legislativa, e, em segundo, de matéria concernente ao que os americanos chamam de accountability, termo que equivale à faculdade ou efeito de prestar contas a órgãos controladores, aos representados ou à própria opinião pública.

31 de agosto de 2013 | N° 17539
ARTIGOS - José Fortunati*

Ação pela cidadania

Neste domingo, dia 1º de setembro, terá início em Porto Alegre uma ação de vários significados. Tal iniciativa resultará em maior dignidade e justiça social para trabalhadores e seus familiares, em benefício para animais, para o meio ambiente e para o trânsito e ainda atende à exigência de legislação.

Com participação de governo e comunidade, a multiplicidade também está expressa nos atores envolvidos. Trata-se da retirada gradativa de circulação de veículos de tração animal e de tração humana mais conhecidos como carroças e carrinhos das ruas da Capital gaúcha.

A partir de agora, em sete das 17 regiões administrativas da cidade Centro-Sul, Cristal, Cruzeiro, Glória, Lomba do Pinheiro, Partenon e Sul a circulação desses veículos será proibida. Até junho de 2015, a medida será implantada em praticamente toda a cidade na Extremo Sul, a restrição não será aplicada.

Na leitura mais imediata, a retirada de carroças e carrinhos significa cumprimento à Lei nº 3.581/08, do então vereador e hoje vice-prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. Mas vai bem mais adiante. Como poderíamos impedir a circulação desses veículos sem garantir a continuidade e a melhoria da atividade profissional da qual dependem, estima-se, 1,8 mil famílias?

Carroças e carrinhos são utilizados principalmente para coleta de resíduos sólidos, dentro da cadeia produtiva da reciclagem. Para responder a esse desafio, a prefeitura optou por estabelecer parcerias com a comunidade, a iniciativa privada e com outras instâncias de governo, que resultaram no Todos Somos Porto Alegre – Programa de Inclusão Produtiva na Reciclagem.

Com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Braskem e, claro, da própria prefeitura, o programa tem o objetivo de garantir inserção profissional a carroceiros e carrinheiros, pretendam eles prosseguir em atividade relacionada à reciclagem ou migrar para outra área.

O programa também contempla o bem-estar de cavalos, recolhidos juntamente com carroças, que serão encaminhados para doação e para condições de existência livre de maus-tratos e menos estafantes. A iniciativa dedica-se ainda a qualificar a atuação de centros de triagem, contribuindo para uma cidade mais limpa e sustentável.

Há pouco mais de dois anos, Porto Alegre construiu excelência com o reassentamento da comunidade da Vila Chocolatão, um triste cenário de miséria, insalubridade, dor e perigo então encravado no centro da cidade. A solução adotada foi muito além de deslocar as pessoas para outra região. Construímos, sim, uma nova perspectiva de existência para aquelas 700 famílias. E o caminho foi o mesmo que agora aplicamos à questão das carroças e carrinhos: a decisão coletiva, a ação conjunta de governo e sociedade, a democracia participativa que tão cara é à nossa Porto Alegre.


*PREFEITO DE PORTO ALEGRE

31 de agosto de 2013 | N° 17539
PAULO SANT’ANA

Espíritos de porco

O e-mail é o endereço eletrônico. Como Zero Hora põe no frontispício da minha coluna meu e-mail, põe à disposição dos leitores a comunicação comigo.

Então, correm muitos e efusivos elogios de leitores, mas, como a banca paga e recebe, vêm de sobrecarga ofensas de alguns pouquíssimos leitores.

E algumas são covardemente ofensivas. Não teriam coragem de fazê-las pessoalmente a mim, escondem-se assim atrás da correspondência, não consigo alcançá-las com os olhos, embora eu deva confessar que não se escondem no anonimato, assinam seus nomes, sabem por certo que ficarão inatingíveis por mim.

Prefiro então desconhecê-las, não pelo medo de debater com elas, embora me intimidem pessoas furiosas.

Só que apareceu nessa inana um tipo nojento, o dos que se especializaram em contrariar colunistas, só para contrariar, revelando despreparo, violência verbal, ímpeto destrutivo. A esses, só a esses, convido-os para discutirem pessoalmente e fisicamente presentes comigo, numa boa, cordialmente, embora, pelo ímpeto irracional que as move, eu adiante, primeiro, que não se atreveriam a discutir comigo e, segundo, que não teriam coragem de discutir comigo. Porque seriam irremediavelmente batidas pelo meu racionalismo e pelo irracionalismo delas, a julgar pelas mensagens infundadas que me mandam.

E, agora, o caso outro dos médicos cubanos que foram ofendidos, maltratados, humilhados ao chegarem aos aeroportos brasileiros para virem trabalhar em nosso país dentro do programa Mais Médicos.

Que culpa têm esses médicos cubanos de terem sido designados pelo governo cubano para virem tratar dos doentes brasileiros em lugares muitas vezes longínquos e quase inacessíveis?

A maioria desses desclassificados que foram aos aeroportos para ofender os médicos cubanos gostaria de empunhar – mas não tem coragem – cartazes que dissessem Menos Médicos.

Vejam bem que esses médicos cubanos que vieram para o Brasil foram designados por dois governos instalados, o brasileiro e o cubano. Não estão aqui se aventurando, vieram trabalhar.

Calcula-se na imprensa que 90% do que cada médico cubano virá ganhar no Brasil serão apreendidos pelo governo cubano.

E eu então calculo que os médicos cubanos que estão chegando ao Brasil e estão recebendo desaforos desses desclassificados que vão ofendê-los nos aeroportos brasileiros, à sua chegada, estão sendo maltratados em troca de apenas 10% do que teriam de dignamente receberem por seu trabalho.

É muito pouco. Ganhar tão pouco para ser ofendido no aeroporto por esses covardes espíritos de corpo e de porco é muito pouco.

Eu protesto pelos míseros 10%!


E quero dizer finalmente que os bravos e competentes médicos brasileiros que mourejam no serviço de saúde e nos consultórios nada têm a ver com essas agressões sórdidas.

31 de agosto de 2013 | N° 17539
CLÁUDIA LAITANO

Aspiracional

Publicitários sabem que não basta dizer que uma cerveja é boa ou que um banco vai cuidar bem do seu dinheiro. É preciso dizer isso de forma a seduzir o cliente em potencial – e para tanto deve-se oferecer mais do que uma simples informação. O que, em uma propaganda de banco ou cerveja, pode prometer mais do que um bom serviço ou uma boa bebida? É justamente essa a alma do negócio.

Não por acaso, é nesse ambiente do marketing e da propaganda que o termo “aspiracional” tornou-se mais comum. Levar em conta a “aspiração” de um determinado público é entender que você pode atingi-lo não apenas pelo que ele é, mas pelo que ele gostaria de ser.

Apesar de ter sido cooptado pelo universo do consumo, o termo se encaixa em aspectos da nossa vida que vão além da imagem que gostaríamos de passar comprando um determinado modelo de carro ou usando um determinado tipo de roupa.

Somos seres aspiracionais por excelência em quase todas as nossas escolhas: as pessoas por quem nos apaixonamos, a profissão que escolhemos, a escola em que matriculamos nossos filhos. Há em cada uma dessas decisões o componente não totalmente racional do desejo de atingirmos uma versão melhor e mais caprichada de nós mesmos, através da associação com pessoas, atividades ou instituições que admiramos.

Na última segunda-feira, no seminário Fronteiras do Pensamento, o filósofo australiano Peter Singer apresentou uma síntese de suas ideias sobre temas contemporâneos que colocam em xeque nossas convicções e nossa noção de responsabilidade. Poderíamos qualificar a ética prática de Singer como “aspiracional”.

Algumas das atitudes que ele propõe – doar parte do seu dinheiro para quem não tem nada, cuidar seriamente da saúde do planeta abrindo mão de alguns luxos ou evitar o sofrimento desnecessário de animais – parecem exóticas e extremas para a maioria das pessoas, o próprio filósofo admite. Mas se nem todos têm intenção de destinar 10% da sua renda para diminuir a miséria do mundo ou cogitam abrir mão do churrasco de domingo, apenas o exercício de pensar sobre isso talvez seja capaz de ampliar o “aspiracional moral” que nos serve de referência.


Um dos méritos da ética pragmática de Peter Singer é o de propor que cada um reflita seriamente sobre o que considera uma vida boa e justa e o que tem feito para atingi-la. Quem não faz esse exercício com alguma frequência sempre corre o risco de acomodar-se no extremo oposto – encontrando argumentos cada vez melhores e mais sensatos para ser e fazer muito menos do que aquilo que seria apenas o mínimo.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

RUBENS VALENTE - SHEILA DAMORIM - DE BRASÍLIA

30/08/2013 - 03h00
PUBLICIDADE -

Ação quer fechar correspondentes bancários

O MPT (Ministério Público do Trabalho) ajuizou uma ação civil pública na qual pede a decretação da ilegalidade dos correspondentes bancários -cerca de 165 mil postos de serviço que, contratados pelas instituições financeiras, fazem o papel de bancos em todo o país.

A ação também quer o pagamento de R$ 6,4 bilhões em indenizações por seis grandes bancos, pelo Banco Central e pelos Correios. Para o MPT, os correspondentes, que são peça-chave do programa de inclusão financeira do governo, representam uma "terceirização ilícita" da atividade-fim dos bancos e "a aniquilação da categoria dos bancários".

O argumento é que o modelo de negócio afronta a Consolidação das Leis do Trabalho ao impedir que os funcionários tenham direitos trabalhistas equivalentes aos dos bancários, como piso salarial da categoria e auxílio-alimentação.

A ação foi ajuizada contra BC, ECT e os bancos Caixa, Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, HSBC e Santander, em Rio Branco (AC), mas a intenção do MPT é que ela obtenha abrangência nacional.

O juiz trabalhista Edson Carvalho Barros Júnior decidiu enviar o processo para a Justiça Federal, ao se declarar juridicamente incompetente para julgá-lo. O MPT recorrerá da decisão, pois pretende que o processo corra na Justiça do Trabalho.

Em nota à Folha, a Febraban se manifestou em nome dos bancos citados na ação. Segundo a entidade, a contratação dos correspondentes está regulamentada por uma resolução do Conselho Monetário Nacional de 2011.

Segundo a Febraban, os correspondentes "constituem uma inovação financeira que, por diminuir a necessidade de escala na oferta de serviços financeiros, contribuem para facilitar e ampliar o acesso da população a esses serviços, principalmente em áreas distantes e carentes".

Os Correios disseram que os correspondentes estão autorizados por uma portaria do Ministério das Comunicações e duas resoluções do BC.

"Os principais correios do mundo têm importante papel na inclusão financeira de populações de baixa renda, e por esse motivo a implantação de bancos postais é incentivada pela ONU e pelo Banco Mundial."

O procurador do Trabalho que atua na ação no Acre Marcos Cutrim afirma, baseado em números da Febraban, que o número de correspondentes teve um salto de 1.103% de 2000 a 2010, enquanto as agências bancárias cresceram apenas 20,8%.


Eles hoje respondem por 62% do número total de pontos de serviço do sistema financeiro nacional, instalados em lotéricas, agências dos Correios, farmácias, papelarias e supermercados.
DE SALVADOR

'Disseram que eu tinha que dar lugar a um cubano', diz demitida

Médica em povoado do interior da Bahia será substituída por profissional do Mais Médicos

Prefeito fala em 'uma série de vantagens' com programa federal e afirma que substituto será outro brasileiro

Hoje, em Murici, povoado de Sapeaçu (município a 150 km de Salvador), será o último dia de trabalho da médica mineira Junice Moreira, 47, no posto de saúde da família.

"Eu estava de plantão na quarta-feira da semana passada quando me ligaram. Disseram que eu tinha que dar lugar a um cubano", afirma. O aviso da demissão partiu da Coofsaúde --cooperativa que faz o pagamento dos médicos que trabalham no município, por meio de contrato com a prefeitura.

A Coofsaúde confirma a saída de Junice e também que, em seu lugar, entrará um profissional do programa federal Mais Médicos. A Prefeitura de Murici nega que o substituto de Junice será um médico cubano.

Ao ser informada pela cooperativa, a brasileira diz ter se surpreendido."Respondi que não tinha entendido, que não tinha feito nada errado", afirma a médica.

"Mas deixaram claro: Está vindo aí um médico de Cuba e a senhora vai precisar ceder a vaga a ele'", completa Junice, que mora no interior da Bahia há sete anos, na vizinha Cruz das Almas.

Não teve como resistir. Desligada a tempo de não constar na folha salarial de setembro, Junice diz que seus pacientes chegaram a chorar e a levar lembranças para ela assim que souberam da demissão. "O pessoal de Murici me adora."

Ao todo, foram seis meses trabalhando no "postinho", como chama o local. Ela diz que a cooperativa até lhe ofereceu uma transferência para outro lugar, mas não aceitou. Junice faz plantão em diferentes municípios da região, como Ubaíra.

O caso chegou ao CRM da Bahia, e o presidente do conselho, José Abelardo de Meneses, encaminhou uma denúncia ao Ministério Público. "Não vai ter mais médicos', como diz o nome do programa, mas mais médicos atendendo ao governo federal", afirma Meneses.

'VANTAGENS'

O prefeito de Sapeaçu, Jonival Lucas (PTB), confirma a demissão de Junice e a chegada de um profissional do Mais Médicos para substituí-la.

Lucas afirma que a médica deixará o cargo por não cumprir a carga horária estabelecida e que o substituto será um profissional brasileiro que já atuou naquela região do interior da Bahia.

"Já estávamos procurando outro para assumir o lugar dela", diz o prefeito do município, que fala em "uma série de vantagens para o município" com o Mais Médicos.


"O programa desonera nossa folha, porque o pagamento não é mais feito por nós", afirma o prefeito.
ELIANE CANTANHÊDE

Suicídio

BRASÍLIA - Ninguém trata tão mal os políticos quanto os próprios políticos. Nem mesmo o mais ácido crítico teria tanta eficácia quanto Suas Excelências ao corroer a imagem de deputados, de senadores e, pior, do Congresso Nacional.

Há inúmeros adjetivos, além de expressões impublicáveis, para definir a decisão de quarta-feira à noite, absolvendo o presidiário Natan Donadon da cassação de mandato, mas um só basta: é inacreditável.

Os parlamentares que votaram a favor de Donadon, abstiveram-se ou ausentaram-se sem bons motivos deixam uma dúvida. Se eles são colegas de Donadon na corporação Congresso ou deveriam ser na corporação Papuda, onde o parlamentar-presidiário está preso, com uma condenação de mais de 13 anos por formação de quadrilha e desvio de dinheiro público, o popular roubo.

Para tentar contornar o clima de enterro da instituição, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, saca uma solução heterodoxa e sem respaldo no regimento, declarando o afastamento de Donadon e a convocação de seu suplente, Amir Lando. Está criada a seguinte situação: Donadon não é deputado, mas é; Lando é deputado, mas não é.

E, numa tentativa patética de reduzir as labaredas na opinião pública, o presidente do Senado, Renan Calheiros, desfralda uma "saída célere" anunciando a votação da PEC 18, que determina a perda automática de mandato, sem votação do Legislativo, em caso de condenação por improbidade administrativa e crime contra a administração pública.

Ah! Todos, claro, berram pelos salões, corredores e comissões contra o instituto do voto secreto para a cassação de parlamentares. Quem quiser se igualar a condenados, que vote pelo menos às claras.


Agora, porém, tudo isso é secundário, porque Inês é morta e Donadon está bem vivo. Mas, se alguém acha que isso pode ajudar Genoino, João Paulo Cunha e Costa Neto, está muito enganado. Ou será que não?
Jaime Cimenti

Médicos, pacientes, medicina, alegrias, tristezas, vida e morte

As relações entre medicina, médicos e pacientes sempre renderam ótimos frutos para a literatura de ficção e de não ficção, para o cinema, o teatro e as demais artes. Entre nós, os exemplos de Dyonélio Machado, Cyro Martins e Moacyr Scliar, entre tantos outros, mostram como a rica matéria-prima que é a convivência entre medicina, médicos e pacientes pode inspirar belos textos.

Frederico e outras Histórias de Afeto, do professor universitário, médico e pesquisador Gilberto Schwartsmann, coletânea de contos com toques de crônica e memorialística, mostra episódios marcantes de suas décadas de trajetória na medicina e se insere nesta tradição. Baseadas em fatos reais, as histórias revelam, sem pieguice, com realismo, solidariedade, afeto e boas percepções, momentos de alegria, tristeza, dor, prazer e graça e também medos, segredos, esperanças e tensas situações em residências, consultórios e hospitais.

A fragilidade dos pacientes e dos médicos diante das vicissitudes provocadas pelas doenças e pela morte aparece nos relatos para mostrar como podemos crescer como profissionais e como seres humanos. Medicina é arte e ciência, mas é, acima de tudo, amor ao próximo.

Membro titular da Academia Nacional de Medicina e presidente da Fundação Sul-Americana para o Desenvolvimento de Novas Drogas Anticâncer, Schwartsmann fala com sensibilidade e compaixão de suicídio, revelações de última hora, médicos dedicados que chegam a doar sangue para o paciente, diálogos essenciais e dramáticos no consultório e nos hospitais, crianças com doenças fatais e outros temas vitais.

Na apresentação, a psicóloga, jornalista e escritora Ivette Brandalise escreveu: “O afeto o levou a registros de momentos que marcam a sua trajetória na área da medicina. São histórias não datadas, em que o autor se expõe sem máscaras e sem pudores, revelando a dor dos adeuses, dos medos, revelando também esperanças, alegrias e até provocando risos. Porque há episódios engraçados quando as trocas se tornam possíveis. Há a cumplicidade, que torna único algum evento. Há até a infração, que leva às lágrimas. Há a conivência, que termina contagiando o leitor”.

Enfim, Gilberto Schwartsmann nos oferece, abertamente, muito das experiências de sua vida e de seus pacientes, para que lembremos, sempre, que somos anjos de uma asa só, que precisamos do outro para voar. Libretos, 140 páginas, Coordenação Editorial e Edição de Arte de Clô Barcellos, R$ 26,00, www.libretos.com.br


Jaime Cimenti

Reflexões sobre amor, casamento e ciúme

O Círculo Íntimo, romance do professor e escritor norte-americano T.C.Boyle, Ph.D em literatura inglesa do século XIX, acima de tudo, trata de reflexões sobre amor, casamento e ciúme, inspiradas a partir de extensas pesquisas do autor sobre os bastidores do  projeto de Alfed Kinsey, que resultou no famoso Relatório Kinsey.

O romance narra o surgimento, o desenvolvimento e a propagação da sexualidade nos Estados Unidos nos anos 1940 e 1950. T. C. Boyle nasceu em 1948, é casado, tem três filhos e leciona língua inglesa na Universidade do Sul da Califórnia. Tem obras publicadas em mais de quarenta idiomas e já recebeu mais de 30 prêmios, entre eles o PEN/Faulkner Award.

Vive próximo de Santa Barbara, Califórnia, e seus contos têm sido publicados em revistas importantes como The New Yorker, Esquire, Harper’s e Playboy. A trama se passa num momento em que sexo era assunto proibido e que as mulheres não podiam nem pensar em ter mais de um parceiro, sobretudo antes do casamento. A sexualidade infantil era tabu. A revolução sexual ainda não tinha chegado. Na história John Milk é um tímido universitário que nunca teve muito contato com as práticas sexuais, muito menos com as mulheres.

Sua vida muda por completo quando conhece o professor de zoologia da Universidade de Indiana, Alfred Kinsey. Ele fala abertamente de sexo, sem pudores ou moralismo e quer fazer ciência a respeito. Milk se envolve profissional, emocional e fisicamente com o professor, tornando-se o primeiro membro do círculo de confiança de estudiosos do projeto Kinsey para a pesquisa sexual.

O grupo é formado por casais com filhos, que estão sempre juntos, buscando entrevistas para o projeto. Viajam, fazem piqueniques com os filhos e namoram uns com os outros, sem restrições. Milk vai no embalo. Mesclando pesquisa histórica sobre as vidas de Kinsey e sua mulher com ficção, a prosa inventiva e sagaz do autor revela os bastidores de uma pesquisa científica que é discutida até hoje e que revolucionou a noção de sexualidade. John Milk tenta conciliar uma vida considerada normal, com sua mulher monogâmica, criada religiosamente sob o tacão dos valores morais, que Kinsey execra e pretende derrubar.


Ao fim, os leitores se perguntarão: Kinsey tinha curiosidade científica ou o projeto se destinava a realizar suas mais íntimas fantasias? Bertrand Brasil, tradução de Jorge Ritter, 560 páginas, R$ 60,00, mdireto@record.com.br

30 de agosto de 2013 | N° 17538
EDITORIAIS ZH

Aval à corrupção

A Câmara dos Deputados tomou a deplorável decisão de se negar a cassar o deputado federal Natan Donadon (ex-PMDB-RO), preso há dois meses por corrupção. Numa votação em que chamou atenção a significativa ausência de parlamentares de todos os Estados e partidos, incluindo quase metade da bancada do Rio Grande do Sul, a proposta de perda de mandato obteve apenas 233 votos dos 257 necessários para sua aprovação.

O parlamentar está preso há dois meses na Penitenciária da Papuda, em Brasília, e teve a desfaçatez de qualificar a vida na cadeia de desumana adjetivo provavelmente adequado, mas não há registro de ter sido utilizado por ele antes de ser condenado a pagar por seu crime e de se queixar de ter sido conduzido ao xadrez num camburão.

Cabe ressaltar que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) havia condenado e determinado à Polícia Federal que prendesse imediatamente Donadon. Cumpriu, assim, a mais alta Corte do país com seu dever de administrar justiça, em contraste com a atitude inominável da Casa Legislativa à qual cumpria privá-lo de suas funções.

Cria-se, assim, o bizarro cenário em que um parlamentar condenado no transcurso do mandato por peculato e formação de quadrilha cumpre pena privativa de liberdade ao mesmo tempo em que conserva o pleno exercício das prerrogativas parlamentares.

O resultado da votação favorável a Donadon mostrou-se possível, mais uma vez, pela deformação do voto secreto. Esse instrumento permite o anonimato aos representantes eleitos pelo voto que acobertam a corrupção e outros malfeitos. Enquanto a cortina do voto secreto não for removida, é improvável que o parlamento se disponha a colocar a ética acima do corporativismo.


Deputados são invioláveis por suas opiniões e suas atitudes no exercício do mandato. O segredo do voto parlamentar é uma excrescência que tem, nos tempos atuais, uma única serventia: a de acobertar os maus políticos. Podem e devem os congressistas eliminar, nas duas Casas do parlamento, esse instrumento perverso que mina os alicerces da democracia brasileira.

30 de agosto de 2013 | N° 17538
PAULO SANT’ANA

Gemada e clara em neve

Abriu o sol ontem pela manhã e ofereceu-se a todos em torno dos recintos da exposição de Esteio, daí que se realizou ali na Casa da RBS o Sala de Redação, no qual discutimos de tudo, inclusive futebol.

Depois fui comer com o Pedro Ernesto no Hereford by Régis. O entrecot e a picanha na brasa estavam divinos, depois encomendei uma sobremesa espetacular, que para mim consiste em claras de ovo em neve e gemada bem batida, ao Pedro Ernesto foram destinados mil-folhas de doce de leite e de morango.

A gente se encontra no parque de Esteio com as origens. Ali estão os animais vacuns, os ovinos, acho que os porcinos, e confesso que não me agradam os exercícios que fazem os ginetes com os cavalos. Não gosto de nenhuma prova que implique sofrimento nos animais e noto naqueles cavaleiros alguns que se deliciam com provas que supliciam os cavalos.

Mas, enfim, a nossa tradição muitas vezes carrega esses inconvenientes. Estava bela a manhã, a gauchada folgazã se espalhava pelo parque e foi um dia de sólida diversão.

É impressionante como há pulmões que resistem à nicotina e ao alcatrão dos cigarros durante muitos e muitos anos. E há pulmões cujos alvéolos e bronquíolos não resistem aos golpes incisivos das fumaças e fazem soçobrar os fumantes.

Assim como há fígados de alcoolistas que resistem às cargas etílicas dos bebedores de álcool, enquanto outros soçobram levando até a morte certos bêbados incorrigíveis.

Os vícios, portanto, são veículos de destruição, além de obviamente servirem de alavancas propulsoras de prazeres. Teoricamente, o prazer carrega ameaça de destruição da saúde. No caso das drogas mais pesadas, destroçamento da saúde psíquica.

Os viciados são corajosos, trocam o prazer pelo risco sério e grave à saúde. Mas aí é que eu encasqueto: todo prazer hedônico consiste em risco à saúde? O prazer originado nos produtos químicos ingeridos e em algumas ervas estupefacientes sem dúvida causam danos à saúde física e psíquica.

Então acontece que os viciados correm um risco calculado, esperam largar ali adiante o vício e se livrarem desse risco terrível à saúde.

O problema é que o viciado, não raro, afunda tanto no vício, que, quando quiser recuar, não haverá mais tempo de recuperação. É então que se verifica um contrato de risco entre o prazer e a resistência física ao dano causado pela droga.

No início, é só a intenção do novel viciado de drogar-se por curto tempo, depois promete para si mesmo largar da droga.  Mas, então, surge como um dragão a dependência.

E quem atinge os domínios da dependência está quase que totalmente ferrado. Haverá um dia em que o homem descobrirá um prazer entre as drogas, caso do fumo, que não lhe cause qualquer dano físico.


Mas, nesse caso, então não seria o mundo que se vê ao nosso redor oferecido aos viciados, mas o paraíso.