quinta-feira, 31 de março de 2016



31 de março de 2016 | N° 18487
POLÍTICA

Sindicância apura caso entre pediatra e petista

MÉDICA REJEITOU CONTINUAR tratando filho de suplente de vereadora Ariane Leitão (PT)alegando não concordar com suas posições partidárias. Gesto da profissional gerou reações
A primeira consequência administrativa no caso da pediatra Maria Dolores Bressan, que se recusou a continuar atendendo o filho da suplente de vereadora Ariane Leitão (PT), foi a abertura de sindicância pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers). A tarefa do colegiado é analisar se há indícios de que a conduta da profissional foi equivocada, o que poderá determinar a inauguração de outro processo em que há previsão de punições.

A petista protocolou formalmente denúncia no Cremers contra a profissional. Há opiniões, como a de Ariane, de que a médica lesou um direito da criança por questões partidárias. O que a sindicância discutirá é se houve quebra da ética.

Ainda não foi designado o conselheiro-relator. Será dele a tarefa de fazer a investigação, com interrogatórios das partes, recebimento da peça de defesa, coleta de documentos e busca de testemunhas. Depois, o relator apresentará um parecer, ao final, para uma câmara composta por sete conselheiros. Se o entendimento for de que existem indícios de má conduta, é instalado um processo ético­profissional, fase de julgamento de mérito. 

É reaberto o prazo para produção de provas e defesa, com aprofundamento de detalhes. No desfecho, se a decisão apontar culpa, as penas podem variar entre advertência, censura, suspensão ou cassação do direito ao exercício profissional. Em caso de absolvição, resta o arquivamento.

PRESIDENTE DO SIMERS ELOGIA PROFISSIONAL

Em entrevista ao Diário Gaúcho na terça-feira, o presidente do Sindicato Médico do RS (Simers), Paulo de Argollo Mendes, ampliou a polêmica do caso ao dizer, em nome da entidade, que a profissional “tem a nossa admiração”. O Simers publicou nota em seu site para referendar apoio à médica.

“A declaração confirma o posicionamento do Simers a respeito do cumprimento do Código de Ética Médica, o qual garante que o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”, diz a nota.

carlos.rollsing@zerohora.com.br


31 de março de 2016 | N° 18487 
CARLOS GERBASE

DA IMPERFEIÇÃO

Na orelha, Flávio Moreira da Costa adverte: “Só saem inteiros – só permanecem os mesmos – aqueles leitores que não lerem o livro”. Essa frase me fez pegar Visível Escuridão na estante do sebo. Não li O Senhor das Moscas, obra mais famosa de William Golding, de modo que eu estava penetrando pela primeira vez no universo deste inglês vencedor do Prêmio Nobel que tem uma prosa estranha e, às vezes, bem poética. Há alguns meses, defendi que o leitor deve abandonar qualquer livro se, depois de 15 páginas, não for conquistado pelo texto. Pois bem, admito, não segui minha própria regra.

Até a página 50 avancei vagarosamente, lutando contra a vontade cada vez maior de me despedir daqueles personagens indigestos, daquele cenário decadente, daquelas descrições pegajosas de uma Inglaterra envergonhada e sem saída. Mas segui em frente, talvez na esperança de um grande final. Não há grande final. Há uma tentativa de reunir todos os personagens num grande evento terrorista. Contudo, a reunião não funciona, parece artificial, e, pior, algumas pontas da trama permanecem desamarradas, frouxas, balançando no ar. Golding, o Prêmio Nobel, não teve fôlego suficiente para dar conta dos seus extraordinários personagens. E o leitor, eu, voltei para a frase de Flávio Moreira da Costa na orelha e perguntei: “Estou inteiro? Ainda sou o mesmo?”.

Aí, a surpresa. Tive que responder: “Não sou”. O livro imperfeito tinha me apresentado ao velho pedófilo Mr. Pedigree, ao místico maluco Matty e à linda e monstruosa Sophy. O livro imperfeito tinha descrito como Sophy, ainda criança, descobrira sua capacidade de fazer o mal sem qualquer remorso, matando um filhote de mergulhão, e acho que essa passagem nunca mais vai sair da minha cabeça. 

Visível Escuridão é uma prova de que, se ficarmos procurando essências, perfeições, obras inatacáveis, perderemos montanhas de coisas boas. A literatura é feita por seres humanos, que são imperfeitos, cheios de sobras desagradáveis de uma longa história evolucionária que, às vezes, gostaríamos de varrer para debaixo do tapete. Antes de procurar inutilmente a obra sem falha, ou o homem sem mácula, convém olhar em volta e descobrir as virtudes escondidas na imperfeição. E lutar por elas.




31 de março de 2016 | N° 18487 
DAVID COIMBRA

A médica que dispensou o filho da petista

Quando li a notícia sobre a médica que se recusou a atender uma criança porque a mãe dela era do PT, fiquei revoltado. “E o Juramento de Hipócrates!”, pensei, olhando para o Leste, na direção de onde suponho que se esparramem as ilhas gregas. “O que Esculápio, Hígia e Panaceia pensarão disso?”.

Pior: o presidente do Sindicato dos Médicos, Paulo de Argollo Mendes, disse que a médica estava certa em se negar a prestar atendimento. “Por favor!”, ralhei, ainda pensando na ética da velha e sábia avó Grécia. “Nem se Hitler estivesse precisando de atendimento, o médico poderia recusar!”.

Continuei com minhas exclamações, até que entrevistamos o presidente do Sindicato, ontem, no Timeline da Gaúcha.

Paulo de Argollo explicou que a médica não se negou a dar atendimento a uma emergência, nem veta petistas em geral, mas aquela em particular. O que ela fez foi solicitar aos pais da criança para que trocassem de pediatra, porque não aguentava mais a conversa deles durante as consultas.

Bem... Nesse ponto, comecei a entender a médica. É que todo sectário é um porre, seja qual for o dogma. Eles estão sempre prontos para a briga, e gente sempre pronta para a briga é extremamente aborrecida.

Reparem no atual slogan dos petistas: “Não vai ter golpe, vai ter luta”. Luta?

Contra quem eles vão lutar? Será guerra civil, é isso? Vai haver distribuição de armas nos diretórios do PT? Ou será só o exército do Stédile que vai para a frente de batalha?

Luta, luta, eles estão sempre em luta. José Dirceu é o “guerreiro do povo brasileiro”, André Vargas desafia o STF erguendo o punho fechado, eles se acham Espártaco enfrentando as legiões de Crasso em defesa da liberdade dos escravos, Zapata liderando os camponeses contra a tirania de Porfírio Diaz, Marx aconselhando os proletários do mundo a se unirem. O sonho deles é travar a luta de classes. Combater o bom combate, como disse Paulo.

Que babaquice.

Sim, existem explorados e exploradores, negros e brancos, ricos e pobres, empresários e proletários, sim, mas o mundo não está dividido apenas entre explorados e exploradores, negros e brancos, ricos e pobres, empresários e proletários. O mundo é mais sofisticado, a sociedade é mais complexa e o Brasil, felizmente, é mais variado e complicado do que qualquer fórmula maniqueísta.

Antes era mais fácil: você era contra a ditadura ou a favor da ditadura. Ponto.

Agora é preciso pensar um pouco. Quem é contra o governo do PT não é necessariamente tucano, nem simpático a Bolsonaro, nem entusiasta do futuro governo Temer. Quem considera o Bolsa Família um bom programa não é necessariamente petista. Quem é contra o aparelhamento do Estado pelo governo não é necessariamente a favor do Estado mínimo. E quem é petista não é necessariamente um chato. Mas, neste momento de ânimos espinhados, há de se reconhecer que os petistas transformaram-se em pessoas especialmente chatas.

Se você se afasta de uma pessoa de quem não gosta, você está sendo saudável; se você se aproxima, procurando o confronto, você está com problemas sérios.

Uma médica não querer atender um paciente por ele ser de determinado partido ou ter determinada opinião é totalmente reprovável. Uma médica não querer atender um paciente que a incomoda é totalmente compreensível. Importunos de todo o mundo: vade retro.



31 de março de 2016 | N° 18487 
MÁRIO CORSO

Trocando de signo


Nunca me senti à vontade no meu signo. Talvez por estar nele de uma forma intensa, dupla: Peixes ascendente em Peixes. Água com água, e, segundo essa conjunção, eu seria fluido, intuitivo, empático, místico e desapegado. Cheguei a desconfiar dos dados que meus pais me forneceram, até a possibilidade de ser adotado me passou pela cabeça. Mas as testemunhas são muitas. De fato, sou duplamente Peixes, embora não goste nem me reconheça.

Lendo, pesquisando, fazendo mapas, fui me informando aqui e ali e me descobri de Capricórnio. Um dia pensei: não tenho por que viver numa mentira. Basta da ditadura astrológica do meu nascimento, vou assumir-me como capricorniano. Troquei o dia em que festejo meu aniversário e passei a me apresentar como Capricórnio ascendente em Peixes. Algo de Peixes acreditei melhor manter.

Foi difícil e sofrido deixar para trás minha antiga identidade pisciana. Baixou minha sensibilidade para arte, a empatia para com os outros, algumas pessoas se afastaram de mim. Mas valeu cada árduo dia da adaptação, no ano seguinte me sentia diferente, livre, e melhor de tudo: determinado. Embora tenha tido anos felizes como capricorniano, especialmente no casamento e no trabalho – o capricorniano tem um autocontrole e uma determinação invejáveis –, um dia me dei conta de que esse signo tampouco respondia a meus anseios.

Primeiro pensei em voltar, mas depois me lembrei das razões de meu divórcio. Foram muitos anos decepcionantes como Peixes. Eu não podia retornar àquela vida de indecisão, procrastinação e falta de atitude mais concreta para com o mundo. Precisava seguir em frente, e quem já fez uma revolução faz outra.

Durante anos namorava a ideia de ser Leão. Observava o garbo dos leoninos com respeito, gostava de suas atitudes. Pensei: por que não posso ter isso para mim? Dito e feito, Leão foi o signo da minha maturidade. Dessa vez, abandonei o resto de Peixes, escolhi Touro para ascendente, pois me sinto melhor com algo de terra. Foi uma decisão sábia, meus melhores anos foram como leonino. Mas, infelizmente, tudo que é bom um dia acaba. Sem ressentimento, sem acusações, nada contra o signo de Leão, sou grato a ele como antes fui ao de Capricórnio, apenas já não sinto a mesma coisa por eles.

Estou à deriva de novo, busco um signo que me represente. Leio e me informo, mas nada parece me traduzir. Minha astróloga, Mayara, especialista em transmigração astral, já não me aguenta. Mas não desisto, deve haver um cruzamento zodiacal que me espelhe. Tenho algumas esperanças no 13º signo, o rebelde e enigmático Serpentário, que poucos astrólogos levam em conta. Quem sabe esse signo entre Sagitário e Escorpião me exprima, estou estudando...

quarta-feira, 30 de março de 2016



30 de março de 2016 | N° 18486 
MARTHA MEDEIROS

Labirintite

Lula contratou 21 advogados e oito escritórios para defendê-lo. O sistema de propinas da Odebrecht funcionava desde o governo Sarney. Dilma é vista como desequilibrada pela imprensa estrangeira. Golpistas do PMDB, PSDB, PP, DEM e demais partidos de direita estão a postos para assumir e continuar saqueando o país como sempre fizeram. Sergio Moro é nomeado o 13º maior líder do mundo pela revista Fortune. A revista Veja é desmentida em menos de 24 horas sobre matéria que denunciava plano de fuga de Lula para a Itália. A mãe do juiz Moro é xingada. 

A família do ministro Teori Zavascki também. Alguns políticos ladrões estão entre os que irão decidir se a presidente deve sofrer impeachment. Dilma é acusada de obstruir a Justiça. Chico Buarque proibiu o uso de suas músicas em espetáculo que atacou o PT. O esforço para retirar Dilma da Presidência é luta pelo poder e não luta contra a corrupção. A nomeação de Lula para a Casa Civil é considerada um tiro no pé. Bolsonaro teria 52% de intenções de voto caso as eleições fossem hoje. Não vai ter golpe. Não é golpe. É. Não é.

Ao deslizar pela timeline de amigos no Facebook, encontrei essas postagens embaralhadas e acompanhadas de comentários ora ufanistas, ora grosseiros, e me deu uma tontura que não sei se foi causada pela vista embaçada (é muita palavra de ordem) ou se tem a ver com a minha labirintite, que me incomoda desde a era Itamar Franco.

Quem tem razão, afinal?

Olho para a Dilma e vejo uma mulher honesta, uma bandida, uma avó zelosa, uma ciclista, um pau-mandado, uma desastrada, bem-intencionada, 100% culpada. Viro a cabeça e enxergo Lula, o melhor presidente que este país já teve, o pior presidente que este país já teve, um homem ambicioso que ajudou os companheiros a enriquecerem, que fala a língua do povo, que diminuiu a desigualdade social, que atende as demandas do empresariado, um homem correto, um homem funesto, um hipócrita, um mártir, um touro furioso.

Sergio Moro, herói destemido ou um juiz vaidoso? Imparcial ou tendencioso?

Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, Aécio Neves, Geraldo Alckmin: qual deles tem moral para apontar os erros de seus pares e assumir o comando? Se nenhum deles, quem estará apto?

Quanto custa um senador, quanto está valendo um delator, quem paga mais pelo silêncio de um denunciado, quem arca com os honorários de tantos advogados? Acabo de ver alguns empreiteiros e empresários correndo para aquele lado.

Nada está claro. Todas as acusações são rebatidas, todas as defesas questionadas, cada um de nós se transformou num magistrado e a minha labirintite piorou muito – alguém me alcance uma cadeira e me dê a mão, senão desabo.



30 de março de 2016 | N° 18486 
PEDRO GONZAGA

EM FUTURAS ESPAÇONAVES


É noite, a viagem longa. Parece impossível dormir entre os solavancos da cabine e o tremeluzir de umas quantas estrelas vagas. Talvez nos ocorra lembrar da infância, dessas mesmas estrelas lá bonitas enquanto nossos pais nos julgavam mergulhados no sono, talvez nos toque o espanto de sobrevivermos ao naufrágio de tantas possibilidades, vividas e não vividas, enquanto resta a incerteza da próxima parada.

E então um outro corpo. A sorte desse corpo que conosco segue, brevemente esquecido, mas que agora sobre nós se reclina, com sua inegável presença de carne volvida em abraço, depois a cabeça em nosso ombro e a saliva que defluirá, serena e inofensiva, porque a recompensa de nossa insônia será darmos acalanto a esta criatura e podermos estar cientes disso, até que, aos poucos, também nós encontremos o conforto da inconsciência. Trata-se de um momento humano, que, com poucas alterações, podemos imaginar praticado por nossos ancestrais desde que se colocaram em movimento em tantas terras da Terra, ao descobrirem quão sozinhos nos sentimos ao viajarmos sozinhos.

Penso que se a arte tem uma função é a de revelar momentos como esses e lhes devolver à eternidade da espécie (o que acima as palavras só foram capazes de tocar), “momentos decisivos”, como os chamou Cartier-Bresson. Porque o corpo sabe viver de suas memórias de olfato e prazer, de termodinâmica e dor. Mas para a compreensão da mente (que termina por voltar ao corpo) é preciso que experimentemos as coisas desde fora, feito um artefato, que plasme as experiências dos outros a fim de que as reconheçamos como nossas, como na fotografia do gênio francês, que agora vejo e que peço a vocês a finura de procurar: 

um casal, em um trem na Romênia, ela inclinada em diagonal sobre ele, que a envolve pelo pescoço, também adormecido, os corpos revelando uma perfeita e secreta geometria que o olho do artista flagra e preserva da ação do tempo, erguendo assim um símbolo sobre o afeto dos viajantes, sobre seus gestos corriqueiros em ônibus e trens e barcos e futuras espaçonaves, convertendo-os em um credo de que a vida vale a pena mesmo que os modelos não o possam perceber.


30 de março de 2016 | N° 18486 
DAVID COIMBRA

Quanto vale um deputado


O Peninha definitivamente é um pândego, mas conseguiu produzir clássicos sobre o descobrimento do Brasil. Neles, fica mais ou menos claro que a Cabral não foi dado o comando da sua poderosa armada pela excelência que demonstrava como soldado ou como capitão de navio, e sim por sua fidalguia.

Cabral era casado com uma mulher riquíssima e tinha influência na corte. Competentes mesmo eram alguns de seus capitães subalternos, como os irmãos Diogo e Bartolomeu Dias.

Perceba, pois, como é antiga a rejeição à meritocracia no Brasil. Uma viagem daquelas era perigosíssima. Grande parte da tripulação não voltava para casa. Um dos navios da armada de Cabral, inclusive, desapareceu logo no início da jornada. Ninguém sabe o que ocorreu, ninguém viu. Cento e cinquenta homens e uma caravela foram simplesmente tragados pelo mar.

Mesmo assim, a escolha para o comando de um empreendimento tão caro e arriscado foi política, não técnica.

Cinco séculos depois, essa continua sendo a lógica brasileira. Ontem os peemedebistas deixaram seus cargos no governo federal. Que diferença fará para a população?

Meu Deus, estamos perdendo um grande ministro do Turismo! Oh, não, justo agora que a Aviação Civil ia tão bem...

Ninguém se importa. Por quê?

Porque não tem importância.

A política, no Brasil, é uma política de classificados de jornal. Não passa de uma luta rasteira por melhores empregos.

Se você é empreendedor e está em dúvida sobre em que negócio investir, aí vai uma dica: funde um partido. É fácil, no Brasil há mais de 30. Fundado o partido, você já receberá algum do Estado. Se eleger um único deputado, você tirou o que meu avô chamaria de “sorte grande”.

Com um só deputado, você tem mercadoria suficiente para enricar como um Cabral singrando os mares. Aquele deputado vale tempo de TV durante a propaganda eleitoral e, o melhor de tudo, vale um voto.

Imagine hoje, em que a Presidência da República está em jogo, quanto valeria o voto desse seu deputado solitário. O que não lhe ofereceriam para dizer sim ou não ao impeachment.

Em qualquer outro lugar, essa negociação seria escandalosa. Em qualquer outro lugar, um regime chamado de “presidencialismo de coalizão” significaria a formação de aliança com o objetivo de atingir um fim comum. Ou seja: uma conjugação de ideias.

Digamos que você reunisse os partidos que defendem a escola pública como base para o desenvolvimento da nação. Na hora de escolher o ministro, a pergunta a ser respondida não é “de qual partido é o ministério”, mas “que pessoa é a mais indicada para tocar adequadamente nosso projeto de valorização da escola pública”.

Isso em qualquer outro lugar. Não no Brasil. No Brasil, o presidente dá um ministério em troca de apoio, como se desse uma bicicleta. O partido que ganha a bicicleta, repoltreia-se nela como bem entender.

Por que um político recebe de presente determinado ministério? Pelo seu poder de angariar votos dentro daquele partido, não por seu conhecimento da pasta. E ele toma o ministério não para fazer algo de positivo naquele setor, mas para poder distribuir empregos aos seus apaniguados.

Aquela diretoria é sua, porque você me somou um milheiro de votos. Você vai ficar com uma secretaria, porque me valeu 500.

Toda a política brasileira resume-se a uma agência de empregos. Tire deles a possibilidade de dar empregos, e a política será desratizada.

O rei dom Manuel deu a Cabral o comando da armada porque tudo lhe pertencia, ele podia, ele era o rei. Nossos presidentes dão ministérios porque tudo lhes pertence, eles podem, eles são reis. Negócios particulares, coisa de secos e molhados. É assim que é. Sempre foi. Sabemos há cinco séculos.

terça-feira, 29 de março de 2016



29 de março de 2016 | N° 18485 
CARPINEJAR

Ter razão é de menos nesta vida


Aquele que nunca deu o braço a torcer um dia dobrará os joelhos. Mesmo o mais ferrenho orgulhoso não escapará da humildade. Ninguém escapa de conhecer a si. Pode durar perturbadores 20 minutos, um breve intervalo, mas experimentará o calor do despojamento, beijará o chão de sua renúncia, os ouvidos se abrirão para as batidas na porta e as vozes na janela.

Pode ser uma consciência rápida e provisória, não importa, só que ele sentirá na pele o tamanho da falta em seu corpo, o tamanho de suas falhas, o tamanho de sua teimosia que afastou de perto todos que realmente o amavam.

Mesmo o mais frio orgulhoso perceberá – por um fundo relance – que não tinha razão, que seguiu a intolerância jurando que era temperamento, que desenvolveu o egoísmo jurando que era independência, que vigiava um túmulo jurando que era o seu berço. Estará desamparado em sua esperança, não restou sequer uma companhia para acreditar em suas mentiras.

Mesmo o mais insano orgulhoso cansará das explicações e das justificativas, dos detalhes e dos álibis para aliviar a sua responsabilidade.

Mesmo o mais endurecido orgulhoso verá em algum momento o que perdeu e o valor daquilo que colocou fora. Seus olhos brilharão confusos, vermelhos, aflitos. Terá uma clareza absurda do que foi, e da prisão que criou para a boca.

Será uma tempestade de lucidez encurvando as árvores e as certezas. Conectará os fios das lembranças fazendo a saudade funcionar plenamente, pela primeira vez, em sua casa.

Ainda que por meros minutos, receberá a paz da pobreza, a paz da pequeneza, a paz da inutilidade, a paz de não ser coisa alguma sem os outros, que o colocará a chorar compulsivamente, rebobinando o sofrimento que gerou e entendendo o quanto comprou uma briga desnecessária com o destino, o quanto não valorizou o que lhe fazia alegre, o quanto sempre se viu traído e enganado por antecipação, o quanto dedicou o tempo a se vingar e a perdurar lições a quem não concordava com as suas convicções.

Não ouvia o óbvio porque preferia falar bonito; não pedia desculpa porque não queria ser fraco; não se entregava para proteger a sua vergonha. Emburreceu a emoção procurando ser inteligente.

Tudo o que combateu racionalmente, tudo o que contestava, desaparecerá e amargará exatamente o contrário do que pregava.

Virá um arrependimento por ter se defendido excessivamente a ponto de não ouvir a posição contrária, preocupado apenas em não ceder, interessado em ganhar a discussão custe o que custasse (pena que custou a própria vida!).

O que explica pais ligando de madrugada para os filhos, sem nenhum motivo, para dizerem simplesmente obrigado; filhos surgindo na residência dos velhos pais cheios da gentileza do remorso; ex mandando mensagem, décadas depois, do nada, para se penitenciarem de uma deslealdade.

O desespero não tem hora para derrubar as reservas e defesas. O desespero é sol de noite, é luz da pele no quarto escuro.

Nem o orgulhoso mais renitente foge do encontro com a verdade. Pois Deus vem, sempre virá, na forma de terapia ou simpatia, na bênção ou no isolamento. Nunca é tarde demais para Deus.



29 de março de 2016 | N° 18485
ARTIGO - DENIS LERRER ROSENFIELD*

ADEUS

A presidente Dilma, o ex-presidente Lula e o PT estão se despedindo do poder. Cada um, a seu modo, está dizendo adeus, de olho em um futuro que tem as eleições de 2018 como horizonte. Melhor qualquer esperança futura do que a ruína do presente.

A ruína foi produto do modo petista de governar, com o abandono de qualquer ideia sensata de gestão da coisa pública. As ideias de esquerda, implementadas, produziram 9,5 milhões de desempregados, com tendência crescente, PIB em queda livre, inflação em alta e quebra generalizada de expectativas.

Sobrou à miopia esquerdista nada mais do que a velha narrativa de luta contra o “neoliberalismo”, como se fosse a política “neoliberal” que teria conduzido o país a esse precipício. Mudar reside em uma simples alternativa entre a sensatez e a insensatez. Não se trata de uma opção entre esquerda e direita, mas de simples bom senso.

O bom senso foi perdido a partir do segundo mandato do ex-presidente Lula, ganhando contornos dramáticos neste início – já terminal – do segundo mandato da presidente Dilma. A velha corrupção patrimonialista mudou de forma. Ela ganhou um sentido ideológico, como se fosse o instrumento de administração – na verdade, de apropriação – da coisa pública.

A coisa pública foi apropriada partidariamente, privadamente. Em seus primórdios, o PT e Lula conseguiram conquistar a – incauta – opinião pública graças a um discurso salvacionista de redenção dos pobres. Apresentavam um futuro de bem-aventurança enquanto se apropriavam, para si, a coisa pública, o Tesouro.

Ocorre que o charme desapareceu. O cristal do messianismo se despedaçou. O PT ficou sem discurso, embora ainda guarde a cidadela, personificada por um Palácio do Planalto cada vez mais deserto. Os aliados estão se apressando a sair. O grupo de apoio está sendo reduzido a um grupo de convictos.

Estão desacorçoados. Não lhes resta nenhuma narrativa para o exercício do poder, para o bem comum. Restou-lhes, somente, o discurso de uma oposição imaginária, a deles mesmos. Estão desembarcando do poder sem dizê-lo explicitamente. A narrativa do “golpe”, da luta contra o juiz Moro, do combate contra a Globo e os meios de comunicação em geral é, neste sentido, a preparação de um futuro próximo oposicionista.

Trata-se de um discurso de despedida, pretendendo arregimentar as tropas restantes para o próximo combate. É como se o presente já estivesse perdido. Para eles, está!

É a narrativa do adeus.

*Professor de Filosofia


29 de março de 2016 | N° 18485
OLHAR GLOBAL | Luiz Antônio Araujo

Bodes expiatórios


“Os cristãos do Paquistão temem ser transformados em bodes expiatórios pelos fundamentalistas islâmicos se o conflito no Afeganistão se prolongar. Muitos emigram para escapar da onda de intolerância religiosa que cresce no país. Para a maioria, porém, a proteção de Deus e a capacidade das autoridades de controlar os extremistas são as únicas esperanças.” 

Assim começava reportagem enviada de Karachi por este colunista e publicada por Zero Hora sobre o ataque contra cristãos da província paquistanesa de Punjab. Não o de domingo, mas o de 28 de outubro de 2001. Quase 15 anos depois, a violência continua assombrando a ínfima minoria cristã do Paquistão, concentrada nas grandes cidades do sudeste do país.

Alguns dos cristãos paquistaneses de Lahore descendem dos conquistadores portugueses de Goa no século 16. A história da presença católica no subcontinente indiano está cheia de tragédias tão ou mais violentas do que a do Domingo de Páscoa. Conversões forçadas atingiram não apenas indianos hindus ou muçulmanos, mas judeus sefarditas refugiados da Inquisição. À barbárie do passado, soma-se agora a do presente, ambas atrozes.

O comunicado da seita que perpetrou o ataque de domingo contém um recado ao primeiro-ministro Nawaz Sharif, da Liga Muçulmana do Paquistão (LMP-N), oriundo de uma rica família de Lahore. “Queremos dizer ao governante LMP-N (o governador de Punjab, do mesmo partido de Sharif) e ao primeiro-ministro que aterrissamos no Punjab e que o alcançaremos”, afirmam os terroristas. Desnecessário lembrar que Sharif é tão muçulmano como a maioria dos paquistaneses. 

Os grupúsculos fundamentalistas, muitos deles com influentes padrinhos nas forças armadas, odeiam-no por sua falta de interesse em uma guerra total com a Índia pela Caxemira. E os cristãos, como há 15 anos, são o bode expiatório conveniente.


29 de março de 2016 | N° 18485 
DAVID COIMBRA

Faça a coisa certa

Durante 10 verões seguidos, nós alugamos uma casa na Praia Brava, na Ilha. Nós, que digo, somos eu, meu irmão Régis, meus amigos Degô e Juninho, mais o Dinho, que vinha de Paris e se agregava por uns dias.

Esse era o núcleo. Ficávamos três ou quatro semanas na casa, recebendo amigos. Foram dias ensolarados, noites estreladas, muita diversão e alguma confusão.

Certa manhã, estávamos em grupo na praia e o Degô, sentindo uma estranha sede de algo insípido, incolor e inodoro, chamou com um “ei” o vendedor de água mineral que passava lá adiante. Tempos atrás, contei essa história. O ambulante era um negro de cabelos brancos. Tinha mais de 70 anos, certamente. Carregava nos ombros duas caixas de isopor cheias de garrafas d’água e gelo, cada caixa devia ter o peso de uma criança.

Fiquei observando, enquanto ele se aproximava. Pensei: um homem com essa idade e ainda levando seu fardo...

O Degô pegou uma garrafinha, ia pagar, mas... Cadê o dinheiro? Ele havia enrolado um maço com uns R$ 200 na bermuda, a fim de passar o dia na areia, mas sumira. Procura dali, procura daqui e, de repente, o vendedor de água mineral colheu algo da areia:

– Aqui está o seu dinheiro.

Admirei o homem. Podia ter embolsado o rolo de notas, ninguém ia ver, estávamos todos de costas, mas ele foi absolutamente honesto. O Degô, em reconhecimento, dispôs-se a pagar R$ 2 pela garrafinha de mineral, que custava R$ 1. O vendedor recusou:

– A mineral custa um real.

– Mas estou dando mais um – argumentou o Degô.

– Se o senhor quiser, pode levar duas garrafinhas.

– É só um pequeno agradecimento...

– Não precisa agradecer com dinheiro. Quero só o valor da mineral que o senhor comprar.

O Degô comprou duas garrafinhas, comprei mais duas. O homem deu o troco e se foi, com as grandes caixas de isopor nos ombros. Não havia orgulho em seu gesto, ele não estava tentando dar qualquer significado ao que fez. Fez simplesmente porque devia ser assim que sempre fazia. Era sua forma de se comportar.

Aquele homem, que dentre todos os homens devia precisar de um real a mais, recusava-se a tomar o que não fosse produto do seu trabalho.

Esse é um herói. Nesses heróis acredito. Não acredito nos que se dizem heróis.

Um homem que faz o seu trabalho, que só quer viver sua vida em paz e que tenta agir corretamente, basta isso para tornar o mundo melhor.

Os críticos de Sergio Moro dizem que ele quer ser um super-herói. Um Batman. Não é o que parece.

Provavelmente ele se deixa besuntar pela vaidade ou pela ira de vez em quando. Sendo venerado por milhões, odiado por milhares e discutido por todos, como poderia ser diferente? Mas, na essência, Sergio Moro dá a impressão de ser apenas um homem que tenta fazer a coisa certa, como aquele vendedor de água mineral.

E isso é o mais fascinante e alvissareiro: um juiz de primeira instância, um punhado de promotores e alguns policiais, pessoas comuns, que não têm discípulos ou asseclas, que não carregam bandeira nem usam esta ou aquela cor, pessoas sem capa, espada ou estrela no peito, pessoas que nunca se disseram salvadoras da pátria e que anseiam apenas fazer um bom trabalho, essas são as pessoas que estão mudando de fato o Brasil.

Não me surpreende. Os heróis do Brasil sempre foram os que não se acham heróis. Os heróis do Brasil não anseiam pelo poder. Anseiam, apenas, poder dormir em paz.

segunda-feira, 28 de março de 2016



28 de março de 2016 | N° 18484 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

O ESTRANHO MUNDO NORMAL DE FARGO


Eu demorei para ver Fargo, a série, por gostar tanto de Fargo, o filme, obra-prima dos irmãos Coen lá de 1996. Eu tinha medo do que iria acontecer comigo, do que a série poderia fazer para atrapalhar as minhas memórias do filme. O que série e filme têm em comum é o cenário, a gelada planície norte-americana do Minnesota, North Dakota e cercanias, onde as pessoas passam boa parte do ano em uma paisagem tão animada quanto a da Lua, nos bons momentos. De onde nada se espera, saem muitas coisas, é o que Fargo, série e filme, nos provam. De pessoas normais, com vidas normais em um território desprovido de emoções, se pode esperar tudo.

Em Fargo, na primeira temporada, essa estranheza é definida por Billy Bob Thornton, no papel de Lorne Marlo, um estranho pela própria natureza, um anjo vingador que produz o mal com a facilidade com que lavamos a roupa. Ele repassa sua maldade para Lester Nygaard, um pobre coitado que cansa de ser pobre coitado e vira o super-homem, infelizmente na sua versão bizarro.

Do lado do bem, como sempre, uma policial que se recusa a aceitar o crime ou o mal como inevitáveis e que sequer os compreende. Dessa dicotomia entre o bem e o mal, ambos tão absolutos quanto o clima polar em que ocorrem, vive Fargo.

As obras dos irmãos Coen têm esse componente que os americanos chamam de zany, ou algo que chega a ser cômico simplesmente por ser tão estranho. Fargo é zany, entre muitas outras coisas. Entre elas, Fargo é brilhantemente executada, belíssima em suas imagens, e impecável em sua descrição dessa maluquice generalizada também conhecida como natureza humana.

Fargo está na categoria pelamoededeusvejam. Portanto, vejam.


28 de março de 2016 | N° 18484 
DAVID COIMBRA

ENFIM A GRANDE LUTA

Dois sentimentos levaram-me ao cinema para assistir a Batman versus Superman: o entusiasmo do meu filho e uma antiga expectativa infantojuvenil. Guris do subúrbio de Porto Alegre, nós ficávamos especulando quem venceria, numa luta entre os dois. O Superman é definitivamente mais forte, mas tem a kriptonita. Todo homem tem sua kriptonita...

Hoje, também queria ver Mike Tyson contra Cassius Clay, o Santos de Pelé contra o Barcelona de Guardiola, Beatles tocando junto com os Rolling Stones, Michelângelo e Leonardo dando vida ao mesmo bloco de mármore, um concerto com Beethoven e Mozart, um debate entre Churchill e Marx.

Se bem que, às vezes, esses encontros de supers geram frustração. Dois dos maiores gênios da humanidade, ambos judeus-germânicos, juntaram-se, nos anos 30, para escrever um texto. Por que a Guerra, o título do ensaio. Daquela união de dois cérebros poderosos saiu um livro monótono, nada original e totalmente dispensável. Se Hitler e outros senhores da guerra tinham dúvidas em começar as hostilidades, o livro bem pode tê-los ajudado a se decidir a favor.

Quanto a Batman vs Superman, não posso dizer que gostei, mas meu filho adorou. Ou seja: o filme funciona.

Os americanos são gênios do lazer. Ninguém dava muita importância para a diversão antes deles. Eles transformaram a diversão em arte.

Os super-heróis foram inventados pelos americanos. Verdade que, antes, os gregos conceberam Hércules e os hebreus Sansão, mas eles não seriam páreo para o Super-Homem.

O Super-Homem é o modelo de todos os super-heróis.

Curioso que o Super-Homem tenha sido criado numa sociedade que sempre acreditou no homem comum. Os Estados Unidos, repito sempre, são o único país do mundo em que jamais houve rei ou ditador. Nos Estados Unidos, ninguém nunca foi “filho de algo”, ou fidalgo. A ideia fundadora do país é de que todos são iguais perante a lei. Quando essa lógica foi quebrada pela escravidão, quebrou-se a nação, e os Estados Unidos passaram por uma das mais sangrentas guerras civis da História, com mais de 600 mil mortos.

Por que, então, o cultivo ao mito dos super-heróis? Porque é muito humano ansiar pelo que é sobre-humano.

Você sabe dos seus conflitos e das suas dúvidas. Não seria ótimo se alguém fosse infalível? Você não precisaria mais ficar angustiado em tomar decisões, bastaria seguir o líder. Por isso que é tão fácil enganar as pessoas. Elas querem acreditar nos super-heróis.

Poucos dão valor aos heróis modestos. Aqui, nos Estados Unidos, em Ohio, está incrustada a cidade de Cincinatti, da qual Churchill gostava muito. É um lugar distante – fica numa linha diagonal oposta a Massachusetts, em direção ao Pacífico proceloso.

O nome da cidade homenageia um romano que viveu 2.500 anos atrás. Aquele Cincinatus salvou Roma duas vezes, de duas grandes crises. Os bárbaros estavam prestes a invadir a Cidade Eterna e os cidadãos, conhecendo os talentos de Cincinatus, foram buscá-lo. Nas duas vezes, encontraram-no lavrando a terra. Contrafeito, Cincinatus largou o arado, foi para a cidade, organizou o exército e a nação, liderou a reação e venceu. Nas duas vezes, ele podia ter se mantido no poder como cônsul ou ditador, mas Cincinatus preferiu voltar para casa e para a lida comum de agricultor.

Cincinatus renunciou ao poder, grandeza rara entre os homens de todos os tempos.

Esse é um herói. Falarei de outros. Amanhã.


28 de março de 2016 | N° 18484 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

O ESTRANHO MUNDO NORMAL DE FARGO


Eu demorei para ver Fargo, a série, por gostar tanto de Fargo, o filme, obra-prima dos irmãos Coen lá de 1996. Eu tinha medo do que iria acontecer comigo, do que a série poderia fazer para atrapalhar as minhas memórias do filme. O que série e filme têm em comum é o cenário, a gelada planície norte-americana do Minnesota, North Dakota e cercanias, onde as pessoas passam boa parte do ano em uma paisagem tão animada quanto a da Lua, nos bons momentos. 

De onde nada se espera, saem muitas coisas, é o que Fargo, série e filme, nos provam. De pessoas normais, com vidas normais em um território desprovido de emoções, se pode esperar tudo.

Em Fargo, na primeira temporada, essa estranheza é definida por Billy Bob Thornton, no papel de Lorne Marlo, um estranho pela própria natureza, um anjo vingador que produz o mal com a facilidade com que lavamos a roupa. Ele repassa sua maldade para Lester Nygaard, um pobre coitado que cansa de ser pobre coitado e vira o super-homem, infelizmente na sua versão bizarro.

Do lado do bem, como sempre, uma policial que se recusa a aceitar o crime ou o mal como inevitáveis e que sequer os compreende. Dessa dicotomia entre o bem e o mal, ambos tão absolutos quanto o clima polar em que ocorrem, vive Fargo.

As obras dos irmãos Coen têm esse componente que os americanos chamam de zany, ou algo que chega a ser cômico simplesmente por ser tão estranho. Fargo é zany, entre muitas outras coisas. Entre elas, Fargo é brilhantemente executada, belíssima em suas imagens, e impecável em sua descrição dessa maluquice generalizada também conhecida como natureza humana.

Fargo está na categoria pelamoededeusvejam. Portanto, vejam.



28 de março de 2016 | N° 18484 
L. F. VERISSIMO

Momento único


Gustave Flaubert escreveu, numa carta para um amigo: “Quando os deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na História, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho”.

As divindades pagãs nunca deixaram de existir, mesmo com o triunfo do cristianismo, e a Roma evocada por Flaubert era apenas Roma, não era o mundo. Mas, no breve momento de solidão flagrado pelo escritor, o homem ocidental se viu livre da metafísica – e não gostou, claro. Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as divindades convivais da antiguidade, em pouco tempo Constantino adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu o seu momento único, a oportunidade de se emancipar dos deuses.

A ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas. Copérnico cumpria seus deveres de cônego da catedral de Frauenburg enquanto bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e seu tratado revolucionário sobre o universo heliocêntrico foi dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao papa Paulo III. Galileu também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico, talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda em casa de enforcado. 

Quando foi julgado pela Inquisição, Galileu concordou em renunciar à ideia maluca de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase famosa que teria dito baixinho – “E pur se muove” – só foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois, quando provavelmente também se originou a frase “Se não é verdade, é um bom achado”.

Quando o astrônomo Edmond Halley, o do cometa, entusiasmado com a recém-publicada Principia de Isaac Newton, quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade e do movimento dos astros, disse que, com ela “fomos admitidos aos banquetes dos deuses” pois até então a ciência só especulara sobre a geometria celestial – algo como o Woody Allen dizendo que fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se na mesa dos adultos. Com Newton, passamos a conversar seriamente com os deuses. Halley preferiu “deuses” a Deus, evocando o tempo pré-cristão em que as divindades andavam entre os homens e podiam até ser seus comensais. 

O trabalho de Newton fazia parte da “filosofia natural”, o pseudônimo com que, na Europa do século 17, a ciência especulativa convivia com os dogmas religiosos. Os banquetes com os deuses não eram exatamente atos de rebeldia contra a teologia, mas uma maneira de trazer a metafísica de volta a um plano humano. Mas o momento único da emancipação possível já passara.

domingo, 27 de março de 2016



maurício stycer
27/03/2016  02h00

Humor tem lado


É jornalista, repórter e crítico do portal UOL, autor de 'História do Lance!' (Alameda Editora). 
Escreve aos domingos. Programa de humor mais contundente exibido pela Globo desde "TV Pirata" e "Casseta & Planeta", "Tá no Ar" teve a oportunidade de estrear a sua terceira temporada justamente em um momento muito conturbado do país.

Centrado na crítica à própria televisão, o humorístico criado por Marcius Melhem, Marcelo Adnet e Mauricio Farias não recuou diante do risco de ferir suscetibilidades. Ao contrário, aumentou o volume de suas ironias em três frentes.

Presente desde a primeira temporada, o quadro "Balada Vip" se tornou central em 2016. Semanalmente, um apresentador inspirado em Amaury Jr. entrevista um mesmo endinheirado paulistano, à la Chiquinho Scarpa, mostrando os seus empreendimentos dedicados com exclusividade à elite.

Ainda neste terreno, a atração apresentou há algumas semanas o musical "Chico Buarque de Orlando", com os maiores sucessos da "música popular de direita". Na recriação de "Vai Passar", Adnet cantou: "Vai passar, lá pela fila do 'não declarar', tablet, câmera de foto e vídeo, casaco com tênis e minichocolate para presentear".

Na estreia, em "Musical do jeitinho brasileiro", ele já havia cantado sobre as pequenas corrupções do dia-a-dia, como não registrar empregados domésticos, furar fila e subornar policiais.

Em outro campo, o programa reforçou o ataque ao excesso de programação religiosa na televisão. De forma ampla, os humoristas não se cansam de fazer piadas com evangélicos, católicos, muçulmanos, judeus, praticantes do candomblé, etc.

Por fim, "Tá no Ar" ampliou o espaço dedicado a tripudiar do gosto por programas policiais sensacionalistas. De um lado, segue exibindo o quadro "Jardim Urgente", uma de suas criações mais geniais, no qual Welder Rodrigues interpreta o apresentador de um programa infantil com tiques de Marcelo Rezende e José Luiz Datena.

Além dele, agora o humorístico exibe também o esquete "Pitombo Game Show", comandado por um policial militar (Melhem) que defende, sempre, as soluções irregulares e ilegais.

Sem explicitar a sua posição política, mas com alvos claramente definidos, o programa apresentou este ano um quadro no qual dois homens reproduzem opiniões a favor da violência policial e contra os defensores de direitos humanos. É a publicidade do "Activista", um iogurte para "quem quer regular a ligação entre o intestino e a boca" com a ajuda de "lactofascistas vivos".

Deixando a sutileza de lado, ao subir o tom "Tá no Ar" também perdeu a graça em vários momentos. Um quadro dedicado a rir do jornalismo de fofocas acabou soando como acerto de contas dos criadores com colunistas que os desagradam.

Aliás, os concorrentes reclamam que, ao zombar da televisão, Melhem, Adnet e Farias poupam a própria Globo. Não acho que seja verdade, mas a ênfase na própria emissora, de fato, é menor.

Em todo caso, é preciso reconhecer que "Tá no Ar" fez boas piadas este ano com o jornalismo global e, também, com o humor (ou falta dele) no Multishow.

Exibir preconceitos, expor a intolerância e apontar a ignorância podem ser funções do humor. Colocar-se ao lado das vítimas, como faz o programa, é um gesto político, que ganha outra dimensão num momento de tanta polarização. Sou fã. E desejo vida longa ao "Tá no Ar" na grade da Globo


elio gaspari
27/03/2016  02h00
Temer é solução porque evita a eleição


Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.

A Odebrecht enriqueceu o idioma politico nacional quando um de seus cleptotécnicos chamou de "Setor de Operações Estruturadas" seu departamento de pixulecos. As planilhas onde a empresa listou 316 maganos que amamentava apressaram a montagem de outro setor de operações estruturadas, poderoso e multipartidário.

Seu objetivo principal é obter a ascensão de Michel Temer à Presidência. Vale ressaltar que na planilha da Odebrecht estão os nomes de todos os marqueses dos grandes partidos, menos o dele.

Temer é um estuário de esperanças. Junta os cidadãos que detestam o PT, os eleitores que passaram a detestar a doutora Dilma, os empresários atônitos com a paralisia do Estado e sobretudo os políticos e fornecedores do governo, aterrorizados com a atividade do Ministério Público.

Temer é acima de tudo conveniente. Vota-se o impedimento da doutora, ele assume, reduz a tensão, forma um ministério de celebridades, consegue uma trégua (sobretudo na imprensa), leva para o governo gente que perdeu a eleição e impõe seu estilo tolerante, tranquilizando os comissários depostos. Se for possível, ajuda a preservar a vida pública de seus correligionários que temem a chegada dos rapazes da Federal. Essas seriam as esperanças.

Outra coisa é aquilo que o caminho do impedimento garante. Se não houver a deposição da doutora, haverá o risco da cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral, que levaria à convocação de uma eleição presidencial imediata e direta. Isso não interessa à oligarquia ferida pela Lava Jato nem ao andar de cima da vida nacional. Não interessa porque não tem candidato à mão e porque a banda oposicionista que está encalacrada na Lava Jato sabe que deve evitar a avenida Paulista e o julgamento popular.

Temer convém por muitos motivos, sobretudo porque evita a eleição. A serviço dessa circunstância move-se o setor de operações estruturadas. Ele não funciona como o da Odebrecht. Não tem sede, comando nem agenda detalhada. Toca de ouvido e conversa em silêncio. Quando foi necessário, aprendeu a conviver com o PT, dando-lhe conforto. Ele só não consegue conviver com a Lava Jato.

Ninguém quer rogar praga contra um eventual governo Temer, mas que tal um advogado de empreiteiras no círculo dos marqueses do Planalto ou mesmo no Ministério da Justiça?

ODEBRECHT

Em outubro de 2014, quando o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa contou suas traficâncias ao Ministério Público, Marcelo Odebrecht assinou uma "nota de esclarecimento" na qual queixou-se de "alguns veículos" da imprensa por tratarem como verdadeira a "denúncia vazia de um criminoso confesso que é 'premiado' por denunciar a major quantidade possível de empresas e pessoas".

Uma verdadeira aula.

Na semana passada a Odebrecht anunciou sua disposição de prestar "colaboração definitiva com as investigações da Operação Lava Jato." Quem souber o que vem a ser "colaboração definitiva" ganha um fim de semana em Angra, com direito a tornozeleira.

Continuando em seu tom professoral de 2014 a empresa diz que a Lava Jato revelou "a existência de um sistema ilegal e ilegítimo de financiamento do sistema partidário-eleitoral do país".

Tudo bem, antes da Lava Jato os doutores não sabiam de nada. Nem depois, visto que em novembro passado, com Marcelo na cadeia, continuavam aspergindo capilés.

O Ministério Público informa que não há negociação em andamento para se obter a colaboração definitiva ou provisória da Odebrecht.

RECORDAR É VIVER

Diante da planilha do "Setor de Operações Estruturadas" da Odebrecht é bom lembrar que em 1995 caiu no colo do tucanato a "Pasta Rosa", com a contabilidade político-eleitoral da Federação Brasileira dos Bancos. Ela era muito mais rica e mais bem documentada do que a papelada da Odebrecht.

O tucanato sentou gloriosamente em cima da pasta, passaram-se 20 anos e continua fingindo que não houve nada.

EXAGEROS

A doutora Dilma diz que o juiz Sérgio Moro colocou "em risco a soberania nacional" ao divulgar telefonemas em que ela estava na outra ponta da linha.

Falso como depoimento de comissário. A conversa da doutora com Lula não tratou de assunto relacionado com a soberania do país. Também não envolveu qualquer recurso criptográfico. Se Moro tivesse divulgado um trecho de telegrama secreto, esticando-se a corda, o argumento da soberania poderia ter algum valor. Quem grampeou a soberania do Brasil foi o companheiro Obama, mas essa é outra história.

Já o juiz Moro diz que os grampos divulgados por ele defendiam o interesse público. Algum dia o doutor poderá explicar que interesse público havia na divulgação do telefonema 80829474, de 9 de março.

Nele Lula e sua filha Lurian combinam que tomarão café da manhã juntos no dia seguinte. Nada mais. Dessa rápida conversa resulta apenas uma curiosidade, a senhora chama Lula de "gato".

DILMA E TALLEYRAND

Coxo, Talleyrand caminhava com um aparelho ortopédico. Seduziu tout Paris, encantando a alma de mulheres e o bolso dos homens. (Ele seria o pai do pintor Delacroix.)

Atribui-se a Talleyrand uma frase que teria sido útil para os comissários que acabaram presos por causa dos pixulecos.

Um sujeito lhe disse:

"Dou-lhe vinte mil francos e não conto a ninguém".

Ele respondeu:

"Dê-me quarenta mil e conte a quem quiser".

O NÚMERO MÁGICO É 342 E NÃO 171

A ideia de que o governo precisa de 171 votos para barrar o impedimento da doutora Dilma é verdadeira, mas incompleta. Ela é repetida com frequência, inclusive aqui.

O processo de impeachment requer dois terços dos votos da Câmara (342) para ir em frente. O número mágico é esse.

O governo não precisa de 171 votos a favor de Dilma. Essa condição seria suficiente, mas não é necessária. O que ele precisa é que a maioria favorável ao impedimento não chegue a 342.

Isso pode ser conseguido com votos contra a iniciativa (na qual o deputado se expõe), pela abstenção e sobretudo pela simples ausência. Assim, se 152 deputados ficarem a favor da doutora (19 abaixo dos 171 do terço), mas 19 outros não aparecerem na hora da votação, o pedido de impeachment vai ao arquivo.

Foi isso que aconteceu em 1984 com a emenda que restabelecia as eleições diretas. Ela precisava do voto de 320 deputados. Quem decidiu a parada foram as ausências (113). Contra, votaram apenas 65 deputados. Com 298 votos, a emenda morreu. Na hora de a onça beber água o governo pressionava deputados pedindo-lhes que não comparecessem.

No caso do impedimento de Collor, quando rompeu-se o dique de proteção ao governo eram necessários 336 votos e 441 deputados decidiram afastá-lo. 


26 de março de 2016 | N° 18483 
MARTHA MEDEIROS

O dia seguinte

Não importa qual foi a força oculta que ajudou a desanuviar o problema, o que importa é que funcionou e confirmou que é pra isso que existe o dia seguinte

Você chorou quase a noite inteira, imaginou que não haveria saída e se sentiu tão desamparado e incrivelmente só que nem se atreveu a torcer pelo telefonema que tanto desejava, mas que, surpreendentemente, chegou ainda pela manhã, acalmando toda aquela aflição. É pra isso que existe o dia seguinte.

Você se envolveu num amor que nem era amor, apenas entusiasmo, uma necessidade de superar dores passadas. Então, de uma forma madura, resolveu que era hora de deixar as coisas bem claras, mesmo provocando algum sofrimento. Sempre é melhor a verdade do que a farsa. Acordou sozinho, porém íntegro e pronto para histórias que não sejam forjadas. É pra isso que existe o dia seguinte.

Você não sabia como pagar, não sabia como argumentar, não sabia como sair daquela sinuca, e dormiu com todos os demônios rogando pragas nos seus ouvidos, até que acordou calmo como um Buda e encontrou um jeito de resolver. Talvez a solução tenha sido assoprada durante o sono, não se sabe, mas não importa qual foi a força oculta que ajudou a desanuviar o problema, o que importa é que funcionou e confirmou que é pra isso que existe o dia seguinte.

Foi a noite mais fantástica da sua vida? Valeu a pena se preparar por sete meses para viver aquele encantamento de poucas horas? Saiu tudo como o esperado? Mais espetacular impossível? Também é pra isso que existe o dia seguinte: congratular-se.

Você não devia, mas enviou aquele e-mail com palavras rudes, acusações exageradas, uma histrionice que nem combina com você, mas que saiu assim, teatral e colocando tudo a perder – e estaria tudo perdido mesmo, não houvesse o dia seguinte e a oportunidade de pedir desculpas.

Você se iludiu, como todos sempre se iludem. Acreditou em meia-dúzia de palavras sedutoras e construiu uma fantasia. Bem-vindo ao clube. Preferiria continuar fantasiando? Pra isso existe o dia seguinte: reconduzir você à realidade, que nem sempre é animadora, mas ao menos é honesta.

Foi o dia mais tedioso da sua vida, mais sem nexo, perdido em sonolência e paralisia, 24 horas inúteis, uma postergação de tudo, porém serviu para alertar que este abatimento não representa você, e o dia seguinte, mesmo não sendo tão diferente, ao menos lhe devolveu o ânimo para ler um livro, sempre há uma maneira de se salvar do nada absoluto.

E se todos os dias seguintes têm sido repetecos dos dias anteriores, se você está cansado de aguardar que o dia seguinte traga alguma novidade que lhe tire o chão e abra um novo céu, se você já se convenceu de que o dia seguinte é uma esperança que nunca se concretiza e que só serve para enganar os trouxas, ainda assim, prepare-se: um desses dias seguintes iguais a todos não terminará como você espera.



26 de março de 2016 | N° 18483 
L.F. VERISSIMO

Rimas poderosas


Uma das poucas certezas que se tem sobre a vida de William Shakespeare é a data da sua morte: 23 de abril de 1616. Todos os anos, são publicados no mundo mais de mil livros, ensaios, exegeses e ficções sobre Shakespeare, sem contar suas peças que continuam a ser encenadas e as adaptações para o cinema que continuam a ser feitas, mas contando as especulações sobre os detalhes obscuros da sua vida, como teorias sobre sua sexualidade (os sonetos teriam sido, todos, escritos para homens), sua vida conjugal (ele se vingara da infidelidade da mulher deixando-lhe como herança apenas a segunda melhor cama da casa) e seu trabalho (ele não seria o verdadeiro autor das peças, ele roubara a maioria das suas ideias, ele nem existira). Dá para imaginar o que será publicado agora, nos 400 anos da sua morte. A indústria shakespeariana estará a todo vapor em 2016.

Nenhum outro autor influenciou e continua a influenciar a literatura ocidental como Shakespeare. Tão fascinante quanto a sua obra é essa influência sobre as obras de outros. Freud era um leitor obsessivo de Shakespeare e chegou a dizer que Hamlet era o pai da psicanálise. James Joyce, no seu Ulysses, cita Shakespeare do começo ao fim, e principalmente no episódio 9, que descreve um encontro de intelectuais na Biblioteca Nacional de Dublin no qual Stephen Dedalus, um dos personagens polares do romance de Joyce (o outro polo é Leopold Bloom, cujas andanças por Dublin no dia 16 de junho de 1904, o famoso Bloomsday, formam o livro), expõe suas teorias sobre Hamlet e o fantasma do pai de Hamlet (que o próprio Shakespeare teria interpretado numa produção da peça em Londres).

James Joyce não tinha ilusões sobre a receptividade do seu livro complicado, publicado em 1922. No dia 16 de junho de 1924, escreveu no seu diário (segundo Richard Ellmann, seu melhor biógrafo): “Hoje é 16 de junho 20 anos depois. Alguém se lembrará desta data?”. Em Ulysses, Stephen Dedalus se faz a mesma pergunta, ao rascunhar linhas para um novo poema. “Quem, algum dia, em algum lugar, lerá estas palavras?”. Stephen também se lembra de que, antes de viajar para Paris, deu instruções para que, no caso da sua morte, suas epifanias fossem depositadas em todas as livrarias mais importantes do mundo, “inclusive a de Alexandria”. 

Alguém certamente as leria lá, depois de alguns milhares de anos. (Mas certamente não na livraria de Alexandria, que se incendiara séculos antes). Joyce deu as mesmas instruções quando se mudou para Paris em 1902. Tanto Joyce quanto Stephen, o criador e o personagem, poderiam se consolar com uma frase de Shakespeare:

“Nem o mármore, nem os dourados monumentos a príncipes, durarão mais do que estas rimas poderosas”.



26 de março de 2016 | N° 18483 
CARPINEJAR

Não é brincadeira


Não é o trabalho que me cansa. Não é viajar três vezes por semana e dormir três horas por dia. Não é acordar cedo e conciliar casa, filhos e contas a pagar. Não é o excesso de tarefas, de obrigações e de responsabilidades. Não reclamo por não parar quieto, por ler em trânsito, por comer voando, por render os intervalos apressados de mim para a musculação e rústica. Não reclamo das olheiras e dos cochilos de pé no ônibus.

Só me falta na vida não mais me preocupar com o amor. O que me exaure é a procura de alguém: alguém que esteja dentro da minha solidão para não precisar mais estar sozinho.

Se quem é solteiro já sofre, imagine a situação de quem ainda por cima é romântico, pretende casar e seguir um relacionamento sério.

É uma maratona que começa nos aplicativos e redes sociais, é peneirar fotos, hábitos e postagens, é convidar no Facebook, é adicionar o telefone, é manter agenda ativa de eventos, é tentar fazer uma piada que não será entendida por diferença de geração, é perdoar gente com alternância absurda de humor, é gostar daquela que não gosta de você e recusar aquela que se interessou por você, é distinguir psicopatas e doidas das intensos e apaixonadas, é não saber se segue os conselhos dos familiares (vá devagar!) ou dos amigos (não deixe de ir!), é se defender de grosserias e gratuidades, é adorar a aparência e não suportar a burrice, é admirar a inteligência e não aguentar a cafonice, 

é se arrumar todo para não conhecer ninguém interessante, é enfrentar a estranheza de um novo corpo, é receber em casa, perceber que não há futuro e gastar os bons modos fingindo simpatia, é comparar as relações de antes com os problemas de agora, é atravessar as cantadas chatas dos bares, é decodificar os gritos nas baladas, é sair para jantar, é explicar um filme, é acreditar que achou, é perceber que não achou ainda, é festejar um velório, é enterrar uma festa, é recomeçar a busca, é alternar momentos de extrema esperança e excitação com picos de desânimo e ceticismo, é temer a recaída com ex com as sucessivas desventuras, é acompanhar os colegas em fracassos, é errar a medida da bebida e arcar com a ressaca moral, é retomar a terapia, é abandonar a terapia.

Não existe canseira maior, tanto física quanto espiritual, do que a expedição pelo par ideal.

Cada mês do solteiro romântico equivale a um ano do casado, tamanha a volta na alma, os passeios pela Cidade Baixa e pelo Moinhos de Vento, as promessas infundadas e os romances abortados.

O curioso e engraçado é que, quando encontrar a minha mulher, esquecerei todo o esforço que tive, não protestarei pela demora, não xingarei os percalços. Graças a Deus, a felicidade sempre foi desmemoriada – a boba da dor é que não esquece nada e jamais perdoa.