quinta-feira, 31 de dezembro de 2015



31/12/2015 e 01/01/2016 | N° 18401
EDITORIAL

OS DESAFIOS DE 2016


Em mais uma demonstração característica do senso de humor ao qual os brasileiros costumam recorrer em momentos de maior dificuldade, muitas mensagens de congratulações na passagem de ano já desejavam direto um feliz 2017. O ano de 2016 tem pelo menos dois grandes eventos na agenda para ser simplesmente ignorado – os Jogos Olímpicos de agosto e as eleições municipais de 2 de outubro –, ainda que se inicie marcado pelo desafio da superação da crise política e econômica que caracterizou todo o 2015. Independentemente de divergências partidárias ou de qualquer outra ordem, portanto, é preciso que haja uma união de propósitos para o país superar logo esses desafios, livrando os brasileiros de um custo que vai se tornando insuportável.

Razões não faltam para explicar o impasse político e econômico que o país enfrenta hoje, no limiar do novo ano. Por conta de sucessivos equívocos na fase inicial do segundo mandato, quando não conseguiu governar, a presidente Dilma Rousseff alcançou níveis recordes de impopularidade e enfrenta a possibilidade de impeachment, da qual nem mesmo o seu vice-presidente está livre. No Legislativo, o cenário é igualmente desolador: os próprios presidentes da Câmara e do Senado se encontram ameaçados de perda do mandato, ao mesmo tempo que nada menos de um terço do Congresso está sob investigação no Supremo Tribunal Federal (STF).

Nesse cenário desolador, as expectativas se voltam para o Judiciá- rio e demais instituições que, ao longo de 2015, ampliaram o combate à corrupção, abrindo frentes de dimensões inéditas na história. Os resultados chocam os brasileiros pelas dimensões, mas, ao mesmo tempo, ajudam a reduzir a sensação de impunidade. Nunca o país tinha ousado tanto no combate às relações incestuosas entre corruptores e corruptos, a ponto de ter enfrentado mais de duas dezenas de conglomerados empresariais no âmbito da Operação Lava-Jato, que apura desmandos na Petrobras, com dezenas de condenações e mais de uma centena de prisões.

Em meio a esse processo que parece não ter fim, mas precisa ser debelado, a crise política se acirrou, testando a capacidade de resistência das instituições, e a econômica alcançou níveis alarmantes, a ponto de colocar em risco até mesmo algumas conquistas sociais relevantes dos últimos anos. Uma delas, que se constitui num desafio mais imediato para o país, é a manutenção do nível de emprego, em consequência da falta de segurança para investir, da inflação e dos juros altos, da queda nas vendas e da produção, do aumento do endividamento do poder público, em todas as instâncias da federação, da incompetência do governo federal para agir e corrigir seus próprios erros.

Poucas vezes, o país teve diante de si tantas razões para se superar com rapidez e eficiência, reduzindo o ônus imposto à sociedade por conta da crise política e econômica. Ainda é tempo de provar que 2016 será um ano de dificuldades, mas também de transformações, que permitam aos brasileiros se reconciliar com a estabilidade em todos os sentidos. Nesse processo, eventos como a Olimpíada e as eleições podem ser inspiradores em muitos aspectos.



31/12/2015 e 01/01/2016 | N° 18401 
CARLOS GERBASE

DRAMATIZANDO O TERROR


David Mamet, dramaturgo e cineasta norte-americano, tem dois excelentes livros lançados no Brasil: Os Três Usos da Faca e Sobre Direção de Cinema. Eu os sugiro para meus alunos, mesmo que não concorde com tudo que o autor afirma, em especial a sua convicção de que os melhores atores são os que quase não atuam, já que todo o drama tem que estar no roteiro. Mas concordo com uma ideia central de Mamet: a dramaturgia é feita, antes de tudo, para encantar as pessoas.

Quem quer mudar as pessoas, ou mudar o mundo, deve procurar carreira na política, no jornalismo, em relações internacionais, em serviço social, ou trabalhar numa ONG que combata injustiças. Com certeza não vai faltar serviço. Quem quer trabalhar com drama – fazendo teatro, cinema, TV ou equivalente – deve saber que seu desafio é criar um encantamento poderoso, que leve o espectador a entrar num mundo muito mais rico, complexo e divertido que este em que vivemos. Fazendo isso, diz Mamet, o dramaturgo fica dispensado de lavar a louça.

A quinta temporada de Homeland atingiu – o que não é novidade na série – pontos de extraordinária força dramática. Carrie Mathison enfrentou desafios poderosos na Alemanha, desta vez envolvendo também agentes russos e israelenses. A atuação de Claire Danes é extraordinária. Já viram como ela consegue interpretar com os músculos do queixo, que treme nos momentos mais tensos? O Mamet que me perdoe, mas a dramaturgia também é feita pelas atrizes e pelos atores.

As críticas mais fortes a Homeland são políticas. A série, que foi criada em Israel e mais tarde desenvolvida nos EUA, é acusada de (é claro que estou simplificando) mostrar os terroristas como criminosos. E, nessa temporada, sobraram alusões à Rússia como potência “do mal”. 

Os acusadores, porém, esquecem de dizer que a própria CIA é retratada como um órgão corrupto e corruptor, cheio de pessoas egoístas e mal-intencionadas e, por absoluta incompetência, responsável por muita dor em todo o planeta. Homeland é um drama televisivo feito para encantar as pessoas. Ponto. Mas, mesmo assim, faz uma força danada pra não cair em dicotomias ideológicas ou religiosas. Pra mim tá bom. Carrie, volta logo! Eu lavo a louça pra ti.


31/12/2015 e 01/01/2016 | N° 18401 
MOISÉS MENDES

O Centro


Agora que a ameaça de golpe está se afastando, posso contar o que conversei há uns dois meses numa mesa com um grupo de amigos. Especulávamos sobre o provável cenário depois de um golpe, quando alguém lançou a pergunta:

– Para onde fugiriam os considerados inimigos da pátria pelo novo regime, como aconteceu em 64?

Claro que a mesa estranhou: que regime, cara- pálida, se dizem que o golpe seria democrático, um golpe político, civil, sob a liderança do Eduardo Cunha e do Zé Agripino?

O formulador da questão insistiu. O filósofo Roberto Romano, colunista da Zero, já advertiu: “Um golpe de Estado seria uma tragédia, mas, infelizmente, não é impossível”.

Então, se houvesse um conluio civil-militar, como o de 64, onde se esconderiam os denunciados como adversários da paz, da ordem e da família brasileira?

Sugeri que fugissem para o centro de Porto Alegre. Que se misturassem ao povo que circula pelo Centro atrás de uma linha de crochê que só tem ali, ou de uma agulha que desentope boca de fogão, ou de uma liquidação de splits.

Tenho atração pelo Centro, por onde andei na terça-feira. Me sinto tentado a entrar em todas as galerias e lojas. Entrei em lojas de tecidos (descobri que há toalha de plástico importada), de lâmpadas, de conserto de óculos, de compra de ouro, de bijuterias.

A melhor coisa para sair de dentro do Facebook e entrar na vida real, pública e coletiva, é andar pelo Centro. Ser abordado por ciganas. Levar encontrão de um guri carregando caixas de sapatos na Voluntários. Sentir ao longe o cheiro do Mercado Público.

Na terça, fui fazer um exame de vista no consultório do doutor David Raskin. O doutor Raskin é o autor de Três Deuses e uma Trindade (Age Editora), publicado em 2008. É uma abordagem das religiões monoteístas – o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, na provocativa linha do “não foi bem assim”.

Conversamos sobre religião, ética, política. David e Moisés falando de Cristo, do presumível pai dele e das confusões que ele provocou. Depois de uma hora, me despedi e, quando já estava saindo, voltei e sentei ao me dar conta de que não havia consultado.

Esse é o Centro. O único lugar de Porto Alegre onde você sai para fazer um exame de vista e participa de um debate, porque o oftalmo pode ser Raskin e perscrutar o fundo do olho e da mente do paciente.

Esse Centro de múltiplas faces seria um bom lugar para alguém se esconder de um golpe brabo. Mas nem o Eduardo Cunha acredita mais em golpe. Talvez, o Zé Agripino e o Bolsonaro. Agora, imagine ter que fugir de um regime inspirado nas ideias dos mais medíocres golpistas de todos os tempos.



31/12/2015 e 01/01/2016 | N° 18401 
L. F. VERISSIMO

Recapitulando


Uma crônica escrita para ser lida no dia 31 de dezembro ou é o que se espera de uma crônica escrita para ser lida no dia 31 de dezembro – um apanhado final do que foi o ano que termina, uma retrospectiva dos seus melhores e piores momentos etc – ou um monumento à alienação. Cheguei a pensar em escolher uma figura que simbolizasse o ano e o Brasil em que estamos vivendo e estava quase me definindo pelo Japonês Bonzinho, mas acabei optando por desconsiderar a data. 

Me recuso a recapitular, ainda mais um ano de péssima qualidade como foi 2015, que, fora a volta do Botafogo à primeira divisão, não teve nada que o recomendasse. Prefiro aproveitar o espaço para fazer uma retrospectiva pessoal, de coisas que a vida me ensinou, da sabedoria acumulada através dos anos que, penso, as novas gerações podem aproveitar.

Aprendi que filosofia é tudo o que você diz com o olhar parado – a não ser que você esteja dando um pum.

Que felicidade é descobrir que ainda tem Coca na latinha que você pensava ter esvaziado.

Que a frase mais enternecedora da língua portuguesa é “esse é o colesterol bom”.

E a mais bonita é “os triglicerídios estão normais”.

Que o controle remoto é a maior invenção da humanidade desde a varinha para coçar as costas.

Que o pudim de laranja é a única prova convincente da existência de Deus.

Além da Patrícia Pillar, claro.

Que, em terra de cegos, o trânsito deve ser uma loucura e quem tem um olho abre uma seguradora.

Que algo morreu dentro de alguns brasileiros com a descoberta de que não se pode confiar mais nem em bancos suíços, e nada mais é sagrado.

Que você sabe que não está agradando quando a mulher olha para você como se tivesse acabado de tirá-lo do seu nariz.

Que você sabe que está ficando velho quando a sua memória... a sua memória... O que é que eu ia dizer, mesmo?

Que você sabe que está ficando velho quando só consegue sair da poltrona na terceira tentativa e aí esquece por que se levantou.

Que você sabe que está ficando um velho filosófico quando lhe perguntam o que você acha de viver no Brasil e você responde: “A gente acaba se acostumando...”.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015



30 de dezembro de 2015 | N° 18400 
MARTHA MEDEIROS

Não querer é poder


Fim. 2015 terminou e um novo ano vai iniciar (a velocidade desse processo tem me causado vertigem, mas isso é outro assunto). O fato é que 2016 está batendo à porta, apresentando-se para receber nossos pedidos. O que você deseja, o que você colocou na sua lista de resoluções? Seja o que for, está começando mal.

Desejar coisa nenhuma: essa é a saída para minimizar frustrações e preservar a serenidade. Decretei como tendência, tudo sob a chancela do poeta português Fernando Pessoa: segundo ele, não querer é poder.

Não sei exatamente qual foi a motivação do gajo para inverter a máxima “querer é poder”, mas o fato é que ele a inverteu em seu Livro do Desassossego. “A renúncia é a libertação. Não querer é poder”.

Muito bem. O que tenho é suficiente. Não quero mais saber de cobrar pendências do futuro, de olhar pra ele de um jeito faminto, como se ele me devesse alguma coisa. Livre de anseios: é desse modo que me preparo para atravessar a meia-noite desta quinta-feira rumo ao primeiro minuto da vida pela frente.

Em 2016, não quero que meu bem-estar esteja atrelado às atitudes de quem me cerca, não quero que minha felicidade dependa de as pessoas agirem da forma que eu considero conveniente. Preciso aceitar que elas têm seus próprios pensamentos e acreditar que suas escolhas fortalecem suas identidades, e suas identidades não são assunto meu.

Em 2016, não quero temer o calendário, não quero encarar a passagem dos dias e meses como se fossem sentenças de morte, não quero perscrutar cada parte do meu corpo em busca de sinais de traição. Seria insano acreditar que o tempo me deve um tratamento privilegiado.

Em 2016, não quero que os projetos que estão em andamento me roubem o prazer de sua execução por causa da ansiedade pela sua conclusão. Não preciso me impor prazos rígidos e mergulhar numa autocobrança aflitiva. Demito a patroa de mim mesma e promovo a estagiária que, por não ter nada a perder, se entrega com entusiasmo ao que, para ela, ainda é um mistério. cortacorrente

Não quero me exigir atualização plena e constante dos fatos que acontecem ao meu redor e também em Brasília, em Paris e em Marte. Que eu me mantenha tranquila em relação ao meu desconhecimento de tanta coisa, esse desconhecimento que se agiganta sem que, nem por isso, eu diminua. O que eu absorver naturalmente haverá de bastar.

Não é necessário me dedicar a tanto querer, a tantas vontades que me obrigariam a me deslocar de onde estou, que me fariam perseguir às cegas algo que nem sei se é destinado realmente a mim. Melhor aguardar nesse ponto suave em que me instalei e que me confere o poder invencível da paz de espírito. O que está a caminho já é meu, apenas ainda não chegou.


30 de dezembro de 2015 | N° 18400
VERÃO

A ORLA QUE VAI MUDAR CAPÃO (NO ANO QUE VEM)


REVITALIZAÇÃO À BEIRA-MAR não ficou pronta a tempo do veraneio, mas a esperança é de que obra melhore a região

A preparação segue a mesma: ainda em casa, em fila indiana, um passa protetor nas costas do outro. Cadeiras no carrinho das tralhas, guarda-sol na mão, bebidas no isopor, todos pegaram óculos de sol e bonés, é hora de partir para o mar.

Na região central de Capão da Canoa, a caminhada é tranquila até os últimos 50 metros antes da areia. A partir dali, os caminhos estão tortuosos. Do asfalto à beira, uma grande obra, que está mudando para sempre a cara desta praia, toma conta. Derrubar o clássico Baronda foi só o começo.

A revitalização da orla está a pleno, com muitas máquinas e homens trabalhando justo no período em que a população do município pula dos mais de 55 mil habitantes para cerca de 350 mil. Destes, naturalmente, a maioria está de folga e quer colocar as pernas ao ar de frente ao chocolatão.

Sem controle sobre o fervo, operários sentados no chão martelam pedras portuguesas enquanto banhistas pisam na calçada assentada há poucos minutos. Blocos de grama são pisoteados sem nem serem regados. O longo muro de contenção, que serve de banco na área de eventos já pavimentada, tem pessoas sentadas mesmo onde escoras de madeira ainda sustentam o concreto em processo de secagem. Para levar o filho de 11 meses no carrinho, o comerciante de Santa Cruz do Sul Evandro Kist precisou desviar de vergalhões de ferro (veja na sequência de fotos).

O veranista de Capão da Canoa está com aquela sensação de casa em obras, quando todos se estressam, mas guardam uma esperança: está ruim, mas ficará bom, um dia. Ninguém queria entrar o verão convivendo com a bagunça, mas a maioria concorda que é um sacrifício capaz de render prazer e tranquilidade no futuro (que chegará em março do ano que vem, essa é a promessa da prefeitura).

– Tivemos problemas na licitação, na licença e diversos outros. Gostaríamos de ter começado em maio ou junho, mas começamos em outubro, muito em cima do laço. Por isso, queremos pedir desculpa aos veranistas, aos moradores, aos que visitam Capão da Canoa pelo transtorno que está causando essa obra. Mas tenho certeza que isso é para o bem de todos – afirma o prefeito Valdomiro Novaski (PDT).

Se algo já se impõe aos primeiros olhares é a amplitude de visão da praia. Antes, com quiosques e as chamadas casas de governo (como da Brigada Militar, Corsan, entre outras), quase não se via o horizonte ao caminhar no calçadão. Dos 30 quiosques, sobrarão oito com estilo renovado, mas apenas cinco já estão em funcionamento.

– Estava poluído e tinha muitos usuários de drogas próximo aos quiosques, as famílias não podiam nem passar – lembra o prefeito.

Agora, com um amplo espaço e calçado, o mar parece ter se aproximado. Com vento suportável e lua cheia, na noite de segunda- feira, casais se sentavam para um papo ao som do mar. Mas a poucos metros, a falta de policiamento estragava a cena, com carros de som bate-estaca a pleno e baladeiros dançando e até soltando fogos.

A TRAVESSIA DA OBRA NA VISÃO DOS VERANISTAS

A maioria das dezenas de pessoas ouvidas pela reportagem assumiram um tom ponderado (seria por estarem de férias?). Foi difícil achar alguém radicalmente contra a obra. O que se escutava era até um certo alívio de que algo foi feito para dar uma cara nova a Capão da Canoa, uma das praias que mais cresce no Litoral Norte.

– Pelo que arrecadam, pelo amor de Deus. Demorou demais para melhorar, já que piorar não era possível – diz Gilberto Diehl, 68 anos, militar da reserva.

Uma declaração que resume um pouco do pensamento geral foi a de Amanda Casagranda, empresária de Anta Gorda:

– Está péssimo... Até ficar pronto. Não é desculpa para não ir à praia.

Conclusão parecida com a do médico Luciano Brum, 55 anos:

– Já era para estar pronto para receber as pessoas, mas isso é secundário. Daqui a dois, três anos, será esquecido e as pessoas contemplarão que houve progresso.

Bruno.felin@zerohora.com.br


30 de dezembro de 2015 | N° 18400
AUMENTO DO SALÁRIO

Nacional demite e torra estoque


SEM AVISAR CLIENTES, rede estrangeira Walmart encerra atividades em cinco supermercados da Capital

Grávida de oito meses, Bárbara Severo de Araújo, 21 anos, funcionária do supermercado Nacional da Rua Miguel Tostes, bairro Rio Branco, na Capital, foi surpreendida na manhã da última segunda- feira com a notícia de que a loja em que ela trabalha iria fechar em 48 horas. Mãe de dois filhos, ela foi duplamente afetada pelo anúncio, já que o seu marido, Leonel Loiola Baldes, também é empregado no mesmo lugar e será desligado a partir das 17h desta quarta-feira. De forma discreta, os gerentes repassaram a Bárbara, Leonel e aos demais colaboradores a decisão da rede Walmart logo no começo do expediente, às 7h. Para os clientes, nenhuma informação.

Em uma reunião “de piso”, eles deram aos subordinados duas opções: irem embora com os direitos trabalhistas de uma demissão ou serem realocados em outros supermercados. Conforme apurou Zero Hora em visita a 13 unidades da bandeira Nacional em Porto Alegre, estão encerradas as atividades das lojas das ruas Miguel Tostes (Rio Branco) e Francisco Trein (Cristo Redentor) e das avenidas Plínio Brasil Milano (Higienópolis), Venâncio Aires (Bom Fim) e Protásio Alves (Rio Branco). Em Santa Maria, também está confirmado o fechamento de uma loja. Cerca de 800 pessoas, entre estoquistas, caixas, empacotadores e gerentes, terão de procurar outras opções.

– Sou um cara guerreiro e batalhador. Saio tranquilo, apesar de ter sido pego de surpresa. Fui a primeira pessoa a ficar sabendo aqui na Miguel Tostes, quando o gerente me chamou e disse o que estava acontecendo. Quis ir embora – relata Leonel Baldes.

– Achei uma sacanagem fazer isso na véspera do Ano-Novo – complementa Bárbara, a quem foi oferecida realocação.

O fim das operações é parte de uma estratégia do grupo de reduzir sua presença no Brasil. Estima-se que pelo menos 30 das 66 lojas da rede Nacional no Estado e em Santa Catarina sejam fechadas, embora previsões mais pessimistas de fontes dos recursos humanos da rede Walmart digam que o número poderá ser maior.

Em nenhum dos cinco mercados que deixam de operar na Capital, há placas ou avisos comunicando os clientes sobre a decisão. Nas gôndolas, produtos com descontos de até 50% eram torrados em liquidação de última hora. Entre os funcionários que decidiram ficar, paira um clima de preocupação para os próximos meses.

– Os comentários internos são de que vai encerrar tudo em 2016. Não sabemos o que pensar – disse uma caixa na loja do Cristo Redentor.

QUATRO BANDEIRAS NÃO DEVEM SOFRER ALTERAÇÕES

A princípio, as outras quatro bandeiras da Walmart no Estado (Big, Maxxi Atacado, TodoDia e Sam’s Club) não sofrerão alteração. Em Porto Alegre, o enxugamento começou no setor administrativo da empresa na semana passada, quando dezenas de funcionários e executivos foram demitidos – a multinacional não divulga o número de desligamentos.

Em nota à imprensa, a rede Walmart informou que tomou a decisão “por conta do atual ambiente econômico do Brasil”. Apesar do elevado número de demissões, o presidente da Associação Gaúcha de Supermercados (Agas), Antônio Cesa Longo, entende que não haverá dificuldades para realocação:

– Há forte rotatividade no segmento, que agora está focado em buscar qualificação.

mauricio.tonetto@zerohora.com.br

ENXUGAMENTO NA REDE

OS MERCADOS QUE FECHAM EM PORTO ALEGRE NO DIA 30
- Rua Miguel Tostes, 176 – Rio Branco
- Rua Francisco Trein, 687 – Cristo Redentor
- Avenida Plínio Brasil Milano, 1609 – Higienópolis
- Avenida Venâncio Aires, 1211 – Bom Fim
-Avenida Protásio Alves, 940 – Rio Branco
O GRUPO NO BRASIL
- São 560 unidades e 81,5 mil funcionários em 18 Estados e no Distrito Federal.
-São nove bandeiras, entre hipermercados (Walmart, Hiper Bompreço e Big), supermercados (Bompreço, Nacional e Mercadorama), atacado (Maxxi), clube de compras (Sam’s) e lojas de vizinhança (TodoDia).
- Atualmente, o RS conta com 100 lojas de cinco bandeiras: Nacional, Big, TodoDia, Maxxi Atacado e Sam’s Club.



30 de dezembro de 2015 | N° 18400 
PEDRO GONZAGA

A VERDADE SOBRE NÓS


Três homens e um destino. Corrijo. Um homem, dois adolescentes, um destino: Mariluz. E acresço: noite de Ano-Novo, 1990.

Meu pai, meu irmão Lucas e eu, sonolentos, no esquecido balneário. Injustamente esquecido, pois creio que ainda hoje deve manter Marylight seus portentos: a Samar, palco de ameaçadores bailes de Réveillon e Carnaval; a sorveteria na Paraguassu, a primeira a ter o sabor de chocolate branco (e um gordo sempre sabe onde estão tais marcos miliários), e as cucas da Assmann, extintas em nossa mesa antes mesmo de esfriar.

Que fique claro: havia patuscadas naquela praia, nós é que elegêramos a seriedade, que parecíamos não ter herdado de meu avô o espírito pândego. Anos mais tarde, no entanto, depois de uma vida encoberta por livros e feitos intelectuais, meu pai, quando no posto de secretário de Cultura de Porto Alegre, assumiria a verdade do sangue, tornando-se o rei dos desfiles carnavalescos, sassaricando nas cinco noites, enfim liberto. 

Mas não lá, não em Mariluz. Tendo hoje quase a idade que tinhas então, perdoo-te pela cidra, pelo aperto de mão ainda antes da meia-noite, pelos votos singelos (é difícil lidar com adolescentes), mas não te perdoo pela farsa. 

Por ter-nos feito acreditar na aristocracia dos livros, por discutir conosco a Guerra do Golfo, por nos fazer ver com ironia – e não com suburbana maravilha – a disputa entre as casas da frente para mostrar qual abrigava os maiores foliões desde que os dois vizinhos, amigos de décadas, cujas propriedades sequer tinham muro divisório, haviam brigado porque um se passara com a mulher do outro numa churrascada.

Meu assunto para a última crônica deste ano do capiroto seria o despotismo daqueles que decidiram normatizar a vida dos outros nas redes. Mas não. Que importa? Acordei de um sonho revelador. Nele, com meu porte de baco de Rubens, eu dançava freneticamente entre ninfas bronzeadas com margarina e Coca-Cola, às luzes de pastilhas pisca-pisca no salão da Samar, para em seguida me refestelar entre cornucópias de coxas sobre um enorme colchão feito de cuca de uva da confeitaria Assmann.

Assim, que venha 2016, e com slogan de filme: o ano do despertar.


30 de dezembro de 2015 | N° 18400 
MOISÉS MENDES

D’Ale, Tau e Riquelme


Se eu não fosse gaúcho, talvez até pudesse ser argentino. Mas só por uma semana. Me impressiona no rio-pratense, de Buenos Aires e arredores, a intensidade que põe em tudo. Na fala, nos gestos, na política, nos amores, no futebol, na arte.

Todo argentino tem um psiquiatra ou um psicanalista, com quem conversa durante todo o dia pelo WhatsApp, porque precisa conter seus ímpetos. O argentino parece estar sempre pronto para participar de um embate, que pode ser pelas Malvinas ou por um pênalti que vira guerra num clássico Boca x River.

Achei interessante, por tudo isso, a fala de D’Alessandro depois do jogo de estrelas do Lance de Craque, domingo. O organizador da festa beneficente no Beira-Rio referiu-se a Gonzalo, o caçula da família, como “o meu filho brasileiro”.

Pensei em D’Alessandro e nos argentinos porque comecei a ler um livro que vai me dar 20 dias de prazer nas férias. Vou saborear em três semanas, asseguro, metade das 816 páginas do terceiro volume de A Fronteira, de Tau Golin (Méritos Editora). Vou ler devagar. Tau é o grande historiador do Sul há muito tempo.

O livro cobre o período de escaramuças com os espanhóis de 1763 a 1778, quando, por pouco, escapamos de sermos argentinos. Já na apresentação, Tau encaminha uma queixa: por que se exaltam tanto os que andavam a cavalo e pouco os que se movimentavam por barcos, no mar e nas lagoas?

Explica-se o gosto do historiador pela navegação. Tau aprendeu a navegar depois de quase naufragar num temporal na Lagoa dos Patos, há uns 10 anos. Se não fosse salvo por dois lobos do Guaíba, os comandantes Paulo e Kako Pacheco, da escuna Sabiá, não estaria aqui para contar os duelos com os castelhanos.

O historiador é um queixoso com os exageros criados pelos colegas e por um certo tradicionalismo em torno dos cavaleiros como guerreiros míticos, enquanto os navegadores foram afastados para um canto.

Falei do livro porque a frase de D’Alessandro (que deveria jogar no Grêmio e foi parar por engano no Inter) tem, na exaltação da promessa de brasilidade do filho, uma contribuição do futebol à permanente busca do apaziguamento.

Leia o livro de Tau, que parece uma catedral de letras, para entender a alma desses confrontos. Porque tem gente que continua peleando com os argentinos. Tanto que ouvi alguém perguntar: mas se o guri é brasileiro, nascido em Porto Alegre, por que é Gonzalo, e não Gonçalo?

É brincadeira, D’Alessandro. Boa sorte no San Lorenzo. E que Riquelme venha logo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015


Luiz Felipe Pondé
28/12/2015  02h00

A esperança de Pandora



A esperança é o último dos "males" escondidos na caixa de Pandora. Mas quem é Pandora?

Pandora é a mulher criada por Zeus para nos castigar. Pandora é uma espécie de Eva grega, com a diferença de que o culpado por ela ter sido criada para nos fazer sofrer é um "homem": Prometeu.

Sabemos que Prometeu foi aquele que nos deu a "técnica do fogo", contra a vontade de Zeus. Este, para castigar Prometeu, o teria pregado a uma pedra para ter seu fígado comido por uma ave pela eternidade. Zeus parecia acreditar que com essa "técnica do fogo" nós faríamos bobagens. Mary Shelley, no século 19, chamará seu doutor Frankenstein de "o Prometeu Moderno", numa referência clara à desmedida ("hybris") técnica do homem moderno, representada pelo médico Frankenstein, que "cria um homem", se igualando a Deus.

Na Grécia, portanto, já apareceria esse "medo" de querermos saber o que os deuses sabem. E que sofreríamos com isso. Mary Shelley, a romântica, revela o medo da ciência como ferramenta de desmedida. Esse assunto (medo da ciência) dá o que falar, mas não vou falar dele hoje. Entretanto, não tenho dúvida de que podemos arrebentar nossa vida e o mundo com essa marca de sermos seres "sem medida".

Mas voltemos a Pandora. Pandora é criada com um traço de personalidade: ela era uma curiosa. Sabendo disso, quando Zeus dá para ela a caixa e diz para não abri-la, sabe que ela o fará. E, quando o fizer, deixará escapar as misérias que atormentarão o mundo. A curiosidade de Pandora também é uma face da desmedida. Mas, pergunto eu: até onde podemos ser curiosos sem nos causar problemas? Ninguém sabe. Muita curiosidade mata, mas é sinal de vida. Pouca curiosidade faz de você uma pessoa mais cuidadosa, mas, talvez, sem vida. Um pouco de sangue nos olhos é necessário para gozar a vida?

A curiosidade de Pandora, assim como a técnica, são faces da mesma desmedida. Esse é nosso destino, segundo a visão trágica. Acho que os gregos tinham razão. Sempre andaremos em círculos, num eterno retorno do mesmo destino sem medida. Não há avanço acumulativo na história, pois o "avanço" pode ser, ele mesmo, a desmedida.

A ideia de um avanço acumulativo da história humana ou progresso em direção a um fim que revelará o sentido último da história e da vida (a "escatologia" em teologia) é fruto do mundo bíblico. Por isso a esperança como traço humano é tão diferente se compararmos Jerusalém com Atenas.

Na terra de Israel, a esperança é, justamente, o que sustenta a vida em tensão para o futuro. Um futuro que dará sentido a tudo que vivemos. Impossível não deduzir daí um sentido para a história e para a vida.

Na terra de Pandora, a esperança é um dos males que nos faz sofrer. Como a esperança pode ser um mal?

Não estou aqui pensando nesse conceito pseudopolítico e picareta conhecido como "utopia", que é, sim, um mal. Mas, como viver sem esperança? Mesmo Viktor Frankl, psiquiatra sobrevivente do Holocausto, dizia que a experiência de sentido (e a esperança é irmã do sentido) era essencial para suportar o espaço por excelência onde os judeus viveram a "utopia nazista", os campos de extermínio.

No mundo trágico, "ter esperança" é uma forma da desmedida. Eis a tragédia numa de suas representações máximas. Se, por um lado, sem esperança somos seres destruídos em nossa espinha dorsal espiritual e psicológica, por outro, "ter esperança" é uma profunda ilusão com relação ao destino humano. A esperança é uma forma de tortura justamente porque não há nenhuma esperança. Como dizia o oráculo de Delfos: somos mortais.

Vemos aqui como não se pode dizer que desmedida e pecado sejam a mesma coisa. A esperança no mundo bíblico nos aproxima de Deus e o pecado nos afasta Dele. No mundo grego, a esperança nos torna ainda mais vítimas de nosso destino sem saída e, assim, se revela como mais uma forma de castigo divino.

Afora a religião ou a filosofia, talvez a esperança seja mais uma questão de "índole", como diria nosso antropólogo Roberto DaMatta. Alguns são filhos da esperança, outros, do desespero. Enfim, bom 2016. 

29 de dezembro de 2015 | N° 18399 
CARPINEJAR

A maior intimidade


Dormir é pessoal. Dormir é um ato cheio de manias e restrições. Há o colchão de toda a vida, há o cobertor predileto, há o abajur especial da cabeceira.

O sono é regrado por simpatias inegociáveis, surgidas já na infância. São exigências para enganar a insônia e reproduzir o acolhimento da casa natal.

Tem gente que só dorme com a luz acesa. Tem gente que só dorme no escuro.

Tem gente que só dorme com frestas da persiana. Tem gente que só dorme com três travesseiros. Tem gente que só dorme abraçado ao travesseiro. Tem gente que só dorme com o travesseiro entre as pernas. Tem gente que só dorme destapado. 

Tem gente que só dorme com o rosto debaixo do braço. Tem gente que só dorme de banho tomado. Tem gente que só dorme com meditação. Tem gente que só dorme com música. Tem gente que só dorme com ar-condicionado ligado. Tem gente que só dorme com televisão acesa. Tem gente que só dorme depois de ler. Tem gente que só dorme roncando. Tem gente que só dorme falando. Tem gente que só dorme em silêncio. 

Tem gente que só dorme com remédio de nariz. Tem gente que só dorme com o despertador programado. Tem gente que só dorme com o seu gato. Tem gente que só dorme com o seu cachorro aos pés. Tem gente que só dorme de meias. Tem gente que só dorme no lado esquerdo. Tem gente que só dorme no lado direito. Tem gente que só dorme atravessado. Tem gente que só dorme com lençóis limpos. Tem gente que só dorme de portas fechadas. Tem gente que só dorme nu. 

Tem gente que só dorme de pijama. Tem gente que só dorme no sofá. Tem gente que só dorme vendo filme. Tem gente que só dorme ao rezar. Tem gente que só dorme com celular do lado. Tem gente que só dorme após um copo de leite. Tem gente que só dorme após um cálice de vinho. Tem gente que só dorme acompanhado do urso de pelúcia. Tem gente que só dorme de bruços. Tem gente que só dorme quando o filho volta da universidade ou da festa.

Por isso é que dormir com outro é muito íntimo. É e sempre será a maior intimidade que existe. Mais do que sexo.



29 de dezembro de 2015 | N° 18399
SUA VIDA | SAÚDE

Psiquiatras contestam Conanda sobre restrições ao uso de Ritalina

PREOCUPADO COM CRESCIMENTO de prescrições do metilfenidato, órgão estabeleceu que crianças e jovens diagnosticados com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade têm direito a opções
Uma resolução publicada recentemente pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) reacendeu um debate que não é novo, mas que insiste em reaparecer: a prescrição de medicamentos a crianças com problemas relacionados à aprendizagem, ao comportamento e à disciplina. O documento estabelece que é um direito de meninos e meninas o acesso a opções que não envolvam uso de remédios.

O Conanda é um órgão colegiado permanente de caráter deliberativo e composição paritária – são 28 conselheiros titulares, sendo 14 representantes do Poder Executivo e 14 de entidades não governamentais. Está ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A decisão do Conanda levou em consideração dados que mostram o aumento no consumo do metilfenidato (Ritalina), utilizado no tratamento de crianças e adolescentes com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). A argumentação leva em conta dados do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) que mostram um aumento de 775% no consumo de metilfenidato entre 2003 e 2012. Com esses números, o Brasil se tornou o segundo mercado mundial do medicamento, com cerca de 2 milhões de caixas vendidas em 2010.

Entre os principais pontos da iniciativa do Conanda, está a recomendação de que o uso desse medicamento ocorra apenas após um diagnóstico preciso, feito por uma equipe multiprofissional, de acordo com as normas do Ministério da Saúde.

– As questões ligadas à aprendizagem, ao comportamento e à disciplina muitas vezes são tratadas como problemas de saúde, o que acaba levando a medicalização de crianças e adolescentes mesmo sem uma análise aprofundada do problema – explica Rodrigo Torres, presidente do Conanda, que acredita no diagnóstico multidisciplinar como uma forma de garantir que o problema da criança é de saúde “e não um problema social, cultural, de adaptação e de integração”.

RESOLUÇÃO TRAZ PREJUÍZO, DIZ PRESIDENTE DA ABP

O presidente da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Carlos Salgado, avalia que os dados de aumento na prescrição devem ser contextualizados, pois o fato acompanharia um maior número de diagnósticos e de acesso ao tratamento. Para ele, quando uma instituição se posiciona “apenas apresentando números, sem contextualizá-los, essa conduta apressada pode aumentar o preconceito contra doenças mentais”.

– O que assistimos é o subdiagnóstico de grande parte da população e um diagnóstico discutível em algumas subpopulações mais privilegiadas, com mais acesso. Dados internacionais revisados e reafirmados pela ciência mostram que 4% das crianças têm Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nos seus vários subtipos e com impacto variáveis. Estamos prescrevendo menos do que deveria ser. Existem focos de distorção? Sim, mas isso ocorre em qualquer área – afirma Salgado.

Ele concorda que a multidisciplinaridade contribui tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento, e cita a importância de professores bem instruídos sobre o tema.

– Para o tratamento de TDAH, é bacana ter pedagogo, psicólogo, professor instruído e tolerante, capaz de manejar indivíduos desatentos, pais zelosos. Mas isso não quer dizer que não se deve fazer o diagnóstico correto e que não seja prescrito o remédio. Ele tem uma eficiência, feliz ou infelizmente, muito maior do que esses outros recursos, que complementam o tratamento de forma excelente – defende Salgado.

O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antonio Geraldo da Silva, criticou duramente a decisão do Conanda:

– Essa resolução é um grave prejuízo para quem tem TDAH, pois traz preconceito enorme. É ridículo você falar em diagnosticar uma doença como essa com uma equipe multidisciplinar. Não tem ninguém que possa fazer o diagnóstico que não o médico.

Silzá Tramontina, coordenadora do programa de Crianças e Adolescentes Bipolares do Hospital de Clínicas, tem a mesma opinião.

– Eu acho que é contra a ciência. Já há evidências suficientes para sabermos que TDAH existe, já tem tratamento instituído, então não há dúvidas quanto ao tratamento. O que acontece é que há muitas prescrições indevidas no Brasil. Isso gera um certo preconceito, o que infelizmente acontece muito com as doenças mentais. Aí os pacientes que não têm tratamento repetem o ano na escola, perdem amigos, festinhas, todo esse prejuízo aumenta o risco de usarem drogas, de não conseguirem bons empregos. O uso da medicação realmente pode mudar uma vida – afirma Silzá.

bruno.felin@zerohora.com.br


29 de dezembro de 2015 | N° 18399 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

O LENTO TEMPO DA DELICADEZA


Assim como demoro a adotar novas tecnologias, sou lento em acompanhar muito da vida cultural, filmes em especial. Quando vou ver, todo mundo já viu, ou já saiu de cartaz, só no YouTube, talvez. (Tardança: só agora dou, de público, um tchau para o excelente artista que foi Júpiter Maçã, ou Flávio Basso.)

Demorei assim para ver o grande, o sensacional filme de Mirela Kruel chamado O Último Poema, que conta com dois atores perfeitos, Janaína Kremer e Rodrigo Fiatt, para reviver – em uma torrente de imagens leves e diáfanas como cartas em papel, de imagens lindas e líricas, de tirar o ar do espectador – uma história realmente peculiar: a quase inacreditável troca de cartas, por uns 20 anos, entre o grande Carlos Drummond de Andrade, vivendo no Rio, e Helena Balbinot, professora, leitora de poesia, ela mesma poeta mas bloqueada, nascida e criada em Guaporé, RS.

O filme da Mirela faz um milagre de ser outra coisa, não uma troca de cartas em papel, mas ao mesmo tempo preserva em seu nervo justamente marcas agora já evanescentes da carta em papel, neste caso entre duas figuras tão díspares, um poeta consagrado e uma moça interiorana. A beleza das imagens que a Mirela caçou na vida real e em sua imaginação tem um peso especial – solidão, sim, mas também desolação, e igualmente a força da passagem do tempo, ao sabor do vento (isso não é trocadilho, juro).

Helena, ao formar-se professora no antigo Normal, cogitou fazer Filosofia, para aproximar-se da poesia por um caminho relevante. Não pôde, ou não quis, ou não era cabível tendo em vista o casamento, lá nos anos 1960 de sua juventude. E nasceram então as cartas, que foram respondidas e correspondidas, anos afora.

Fiquei pensando no acaso não apenas pela história linda e pungente da Helena, mas também pela história da Adélia Prado, que completou 80 anos faz pouco. Também ela fez Magistério, mas conseguiu cursar a Filosofia que Helena não alcançou. Em 1974, aos quase 40 anos, vivendo na surdina interiorana de Minas, poemas seus chegaram a Drummond, o mesmo, e este a celebrou como uma grande poeta. O resto da história de Adélia o prezado leitor conhece.

Corro o risco de estar escrevendo uma antifábula natalina, ou uma fábula antinatalina, em que no final tudo dá errado. Pode ser que sim; mas quero mesmo é dizer que, sendo eu a favor dos bons sentimentos, como aprendi naquele tempo em que o Natal e o Ano-Novo eram novidades importantes, esperadas e celebradas, a Mirela Kruel fez um serviço bárbaro pela história da Helena, da Adélia, do Drummond e de todos os usuários da língua portuguesa, sem prejuízo dos outros povos que eventualmente venham a conhecer a linda narrativa fílmica, candidata minha ao panteão das obras mais delicadas do mundo.



29 de dezembro de 2015 | N° 18399 

PAULO GERMANO

Revoltante e confortante

Esse recesso de fim de ano, que paralisa o país e interrompe um processo de impeachment para que os deputados possam comer peru, é por um lado revoltante, mas por outro é confortante. E oportuno. E agradável. E bem-vindo e conveniente e vantajoso e, pensando bem, nada pode ser melhor do que esse recesso, que na verdade é um absurdo completo.

Perdão, vou explicar.

O Brasil parou – está pendurado no pincel enquanto deputados jogam dominó de chinelo de dedo. E bem no meio de uma crise da qual precisa sair logo.

Embora a Constituição preveja convocação extraordinária do Congresso em casos de “interesse público relevante”, outros interesses têm se mostrado mais relevantes. Porque, bom, Eduardo Cunha e seus amigos tentam retardar ao máximo as votações do impeachment. Acreditam que nos próximos meses o cenário econômico vai se agravar ainda mais, o que desgastaria ainda mais a imagem da presidente.

Quer dizer: eles querem que o Brasil piore. Por isso, não suspenderam o recesso – para dar tempo de o Brasil piorar. Não há estratégia mais hedionda, não há fins que justifiquem esses meios, com representantes do povo trabalhando para arrochar o próprio povo.

Certo. (Errado, na verdade, mas quis demarcar o fim do raciocínio.)

Só que há nesse recesso um viés salutar e confortante, que já aparece nas rodas de papo, na TV da sala, na caminhada da manhã, na conversa com o barbeiro ou no elevador da firma – há um certo sossego no ar.

Uma espécie de bonança se derramando sobre os brasileiros, que ingressaram estarrecidos em um dezembro frenético que poderia ser resumido assim: deputados se estapeiam, comissão de impeachment instalada, Temer manda carta, cai o líder do PMDB, volta o líder do PMDB, Renan briga com Temer, Kátia Abreu joga vinho em Serra, polícia vai à casa de Cunha, Supremo anula comissão de impeachment, manifestações contra o governo, manifestações a favor do governo, Conselho de Ética alivia Cunha, agências rebaixam nota, 2016 vai ser pior, Levy deixa a Fazenda, Barbosa assume a Fazenda, todo mundo berra junto, o Facebook cospe fogo, então CALEM A BOCA, CHEGA, PELO AMOR DE DEUS!!!

E calaram-se.

Veio o Natal para unir as famílias. E vieram o recesso das empresas, o recesso do Judiciário, o recesso de todo o setor público, como num acordo tácito para encerrar o ano com um pingo de harmonia.

O recesso parlamentar é um descalabro – mas, entre todos os descalabros do ano, nenhum veio tão a calhar.

NOTÍCIAS DO BURACO

No domingo, a prefeitura tapou sem capricho o personagem da coluna de sábado. Ontem, sim, deu uma recauchutada no buraco.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2015


Leão serva - 28/12/2015  07h33

Em 2016, não dê felicidade ao pessimismo


Esses dias estão marcados por uma epidemia de pessimismo. O fracasso moral e administrativo da gestão federal e a crise econômica, que desemprega e tira poder de compra dos salários, contaminaram a maioria da população: o brasileiro está com medo do futuro. Alguém pode achar que sempre tenha sido assim mas, se foi, esqueceram de documentar porque, ao contrário, o otimismo sempre foi a marca conhecida e surpreendente do DNA tupiniquim.

O medo é um bom conselheiro: na hora da tempestade é preciso tomar cuidados. Paulinho da Viola escreveu versos sábios que dizem: "Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar". Estamos numa fase de economizar, cortar consumo, fazer com todos os custos o que já vínhamos fazendo com a água.

O pessimismo, no entanto, é um medo que se apossa da pessoa e a paralisa. Em vez de aconselhar cautela, produz pânico. Tira as iniciativas. E aí não dá para usufruir das boas coisas que ainda restam; não é possível nem mesmo detectar as oportunidades de superar a crise. E elas são muitas. Como diz o sempre criativo publicitário Nizan Guanaes, "enquanto eles choram, eu vendo lenços" (frase que virou título de livro).

Há sempre oportunidades na crise, mas é preciso manter a confiança para vê-las. Na hora da refrega, os mais nervosos são candidatos a fugir pela porta errada ou ficar paralisados pelo choro (vão ter que comprar lenços do Nizan).

Outro dia ouvi uma história divertida sobre o pessimismo, narrada por um padre chamado Osman, da Igreja de Santa Terezinha, em Higienópolis. Frei Osman é escritor e leitor voraz. Por isso, em seus sermões costuma incluir referências a poemas, contos e romances de toda sorte de autores. Suas homilias são pequenas aulas de literatura.

Recentemente, ao sentir a apreensão crescente em seu rebanho, saiu-se com a seguinte história: um dia estava o poeta Olavo Bilac andando pelo Rio quando encontrou um velho amigo, que pediu:

– "Bilac, preciso vender minha chácara, que só dá dor de cabeça". E reclamou um monte: "Os pássaros fazem barulho ensurdecedor, não podemos descansar. A calha está entupida pelas folhas que caem das muitas árvores. No verão, o sol exige cortinas novas e no inverno os cobertores não dão conta do frio". "Por isso", concluiu, "quero vendê-la. Você me prepara um texto convincente para um anúncio de jornal?"

Bilac pediu papel e caneta e escreveu: "Vendo uma chácara abençoada. Ao fundo da casa, no bosque, os pássaros fazem diariamente sua sinfonia; à frente, o sol aquece o terraço para iluminar a mente de seus moradores enquanto ouvem o som do regato piscoso". Entregou o papel ao amigo e se foi.

Meses depois, o encontrou novamente e perguntou: "Vendeu a chácara?" "Não, Bilac, quando me dei conta da beleza única e dos benefícios que posso ter em tão lindo lugar, nunca mais considerei me desfazer daquele pequeno paraíso".

A lição pregada pelo frei Osman é sábia e vale para um monte de gente. Neste momento em que se aproxima o início de um ano que tem tudo para ser ainda mais dramático do que 2015, é muito importante observar as oportunidades, para não ser sugado pelos problemas.

Por isso pergunto: e você, também tem pensado em vender um pedaço de sua felicidade?


28 de dezembro de 2015 | N° 18398
POLÍTICA

Concessão de rodovias é prioridade de Sartori


DOS 30 PROJETOS em pauta, repasse de estradas é aposta do Piratini para atrair recursos. Destravar as concessões de rodovias é uma das principais expectativas do governo José Ivo Sartori com o pacote que será votado a partir da tarde de hoje, em sessão extraordinária, na Assembleia.

Dos 30 projetos listados na pauta, 26 são de autoria do Executivo, parte deles ligado à sexta fase do ajuste fiscal, com medidas de corte de benefícios de servidores e controle de gastos futuros. Paralelamente à política de austeridade, é no repasse de trechos de estradas à iniciativa privada que o governo aposta para gerar investimento e se livrar de custos de manutenção.

O projeto que trata das concessões irá desobrigar o governo de pedir autorização da Assembleia sempre que quiser conceder algum trecho. Também irá liberar o Executivo de apresentar detalhados projetos técnicos logo nos primeiros movimentos de uma concessão, exigência da legislação em vigor que é considerada “restritiva”, causadora de “demora” e do “afastamento” de investidores.

– Se não mudar a legislação, tudo vai ser mais demorado. A regra atual engessa demais – afirma Carlos Búrigo, titular da Secretaria Geral de Governo.

LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL ESTADUAL É O MAIOR DESAFIO


O Piratini mapeou trechos nos quais pretende mexer. Aqueles com maior volume de veículos serão concedidos, enquanto os de menor movimento poderão receber praças de pedágio da Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR).

– Temos um rol com sete ou oito estradas – adiantou Búrigo.

O primeiro leilão do Piratini deverá oferecer ao mercado uma faixa de 104 quilômetros da ERS-324, entre Passo Fundo e Nova Prata, conhecida como Rodovia da Morte.

Dentre as propostas que serão votadas a partir de hoje, outra prioridade de Sartori é a Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual (LRFE). A norma proíbe que os gastos superem as receitas, o que deverá congelar salários de servidores em períodos de crise, como o atual.

Ainda há medidas do Piratini que buscam capitalizar os cofres em 2016, como a autorização de venda da folha de pagamento do Estado ao Banrisul, e polêmicas como a redução do número de funcionários públicos cedidos para a direção de sindicatos.

– Não é mais concebível que um sindicato tenha 11 funcionários trabalhando para ele com os salários pagos pelo Estado. Acredito que o cidadão não concorda mais com isso – diz o deputado Alexandre Postal (PMDB), líder do governo na Assembleia.

Sartori ainda costura apoio da base aliada às propostas mais contestadas. A leitura é de que a LRFE, alvo de oposição feroz de servidores, será a mais difícil de aprovar. Um dos partidos em que o Piratini ainda tenta solidificar apoio é o PDT. Reunião entre Sartori e presidentes de siglas aliadas ocorrerá às 9h30min de hoje.

A ordem de apreciação dos projetos será definida na reunião de líderes. Postal irá propor a votação dos projetos mais simples hoje. Os mais complexos e polêmicos ficariam para amanhã.

carlos.rollsing@zerohora.com.br

AS PRINCIPAIS ENTRE AS 30 PROPOSIÇÕES

Além do pacote de 15 projetos, governo incluiu na pauta outros 11 de sua autoria que já tramitavam no Legislativo. Também estão na pauta outras quatro resoluções da Assembleia. Veja os mais polêmicos.

MOBILIDADE

Cria o Plano Diretor Estadual de Transporte Coletivo Rodoviário Intermunicipal, com reorganização das 1,6 mil linhas que atuam hoje no Rio Grande do Sul. É uma etapa obrigatória antes do lançamento de licitação para contratar prestadores de serviço sob novos parâmetros.

REAJUSTES

Cria a Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual. A norma proíbe que o Estado amplie gastos acima do crescimento da arrecadação. Estabelece limites para concessão de reajustes ao funcionalismo e determina que 75% da receita incremental deverá ser aplicada em investimentos e 25% em salários. Para os sindicatos, é a principal proposta a ser combatida. O entendimento das corporações é de que a lei vai congelar salários nos períodos de crise.

LICENÇA-PRÊMIO

Extingue a licença- prêmio dos servidores, que permite a eles, a cada cinco anos, se afastarem do trabalho por três meses com a manutenção do recebimento dos salários. Cria a licença-capacitação, que permite ao servidor, a cada cinco anos, se afastar por três meses com direito à remuneração desde que seja para participar de curso de capacitação profissional. Também enfrentará resistência de setores do serviço público.

FIM DE PLEBISCITO

Torna desnecessária a realização de plebiscito para o fechamento ou venda da Companhia Estadual de Silos e Armazéns (Cesa). Determina que a alienação, transferência do controle acionário, cisão, incorporação, fusão ou extinção da CEEE, da Companhia Rio-grandense de Mineração (CRM) e da Sulgás somente poderão ser realizadas após manifestação favorável da população expressa em plebiscito.

FOLHA

Autoriza que o Estado venda a folha de pagamento ao Banrisul. O projeto determina que, antes de fazer o leilão, o Estado deverá fazer estudo econômico e financeiro para definir o valor de mercado da folha.

FUNDERGS

Autoriza extinguir a Fundação de Esporte e Lazer do Rio Grande do Sul (Fundergs) e rescindir todos os contratos de trabalho. Proposta enfrentará resistência de entidades ligadas ao esporte, mas o governo sinaliza ter construído acordo para aprovação. As extinções da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps) e da Fundação Zoobotânica, por exemplo, seguem sem apoio de deputados.

SINDICATOS

Limita dispensa de servidores para exercício de mandatos eletivos em confederações, federações, sindicatos, entidades ou associações de classe. Para as entidades sindicais, por exemplo, serão liberados integralmente o máximo de quatro servidores. Hoje, são permitidos até 11. Será uma das propostas de pior recepção entre os sindicatos. Deve piorar a relação do Piratini com o funcionalismo.

CONCESSÕES

Autoriza a concessão de rodovias e estabelece critérios, como o prazo de 30 anos. Não faz referência a nenhuma estrada específica, mas o Piratini já sinalizou que a primeira via concedida deve ser a ERS-324, conhecida como Rodovia da Morte. Revoga dispositivo de norma anterior que obrigava o governo a enviar à Assembleia documentos técnicos com o projeto de lei autorizativo de cada concessão.


28 de dezembro de 2015 | N° 18398 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

A ILHA DESERTA


Fim de ano exige listas de coisas que a gente precisa fazer antes que um meteoro acerte a Terra ou o ano termine, o que vier antes. A minha lista deste ano é, claro, a de séries que você precisa ver na ilha deserta onde certamente irá passar o Réveillon.

Não sei quanto a vocês, mas eu nunca sairia de casa para uma ilha sem levar as 10 caixas com as temporadas de Friends. Em primeiro lugar, por elas existirem na forma de caixa, porque nem todas as ilhas desertas têm wi-fi, que eu lembre. Ross, Rachel, Monica, Chandler, Phoebe e Joey são mais do que personagens, ícones do que uma amizade vem a ser, especialmente aquelas contaminadas pela vida e pelo tempo.

Seinfeld não pode faltar em qualquer ilha deserta que se dê o mínimo de respeito. É a história de uma ilha, Manhattan, que não é menos deserta pelo detalhe de ter alguns 8 milhões de habitantes, e Seinfeld é a prova. Os textos são brilhantes, as situações, hilárias, e tudo dentro do espírito de ser, acima de tudo, uma série sobre o nada, ou seja, sobre a gente.

Band of Brothers é a melhor série de guerra que o mundo já viu, e guerra combina com ilhas desertas, no mínimo para quebrar o silêncio ou fazer a gente se sentir feliz por estar longe de um mundo com guerras. Direção de arte perfeita, sentimento de época idem, e traduz a sensação de que a chegada dos americanos à França desentortou o mundo em 1944, o que não deixa de ser verdade.

Wolf Hall tem que estar na sua bagagem. Está disponível na Netflix, portanto, escolha uma ilha com internet e tudo irá bem. Assistindo a ela você mais ou menos compreende a razão pela qual Henrique VIII teve tantas esposas, sendo que ele não era assim tão lúbrico ou doido, mas apenas um ser do seu tempo, que incluía a cisma da Igreja Católica.

Encerrando esta lista, vejam The Game, a deliciosa série de espionagem da BBC. Se passa nos anos 1970, o clima é perfeito, e vai deixar você feliz por estar em uma ilha sem ninguém para ficar grampeando você.


28 de dezembro de 2015 | N° 18398 
MOISÉS MENDES

A mãe


A personagem do ano é a mulher que sai de casa arrastando chinelos e se dirige a uma repartição do município para dizer:

– Vim aqui devolver o cartão do Bolsa Família.

A cena repetiu-se durante todo o 2015 em prefeituras do sertão nordestino ou daqui mesmo, de Canguçu, de Rosário, de Cacequi. A mãe aprochega-se do balcão para anunciar uma decisão importante. Enfia a mão na bolsa em busca do cartão e puxa aquilo que é provisório em meio a outras coisas muito permanentes. E a moça do guichê pergunta:

– A senhora pode me dizer por que está devolvendo o cartão? – Porque agora, e enquanto Deus desejar, não preciso mais disso.

Imagine a cena da mãe que sai de casa perfumada, com o melhor vestido floreado, não para pedir ajuda, mas para dizer que não precisa mais do amparo do governo para dar de comer aos filhos. Como a decisão foi tomada com o marido e a filharada, mesmo que a grande maioria nem marido tenha?

São as mulheres que fazem a gestão do benefício do Bolsa Família. Multiplicam os contadinhos. Mas, segundo alguns contrariados com tanta fartura, seriam o exemplo de povo viciado em esmolas. Uma mãe viciada em cento e poucos reais por mês.

Viciada em moedinhas que compram farinha de mandioca, do mesmo jeito que alguns empresários se tornaram viciados em subsídios, isenção de impostos, financiamentos com juro baixo, esquemas de proteção de mercado e outras mumunhas. Enquanto, claro, falam mal do Estado.

Uma mãe assim deveria dar curso de bons modos aos que atacam o Bolsa Família como distorção que não faz bem ao povo e ao país. O povo deveria entregar-se aos milagres do livre mercado, que os detratores do Bolsa Família defendem só nas teorias.

E também juízes, promotores e procuradores beneficiados com auxílio-moradia e auxílio- alimentação perpétuos podem aprender com uma mãe pobre que se dispõe a devolver aquilo de que não precisa mais, porque arranjou um emprego ou descobriu um jeito de se virar sem o socorro do governo.

A personagem de um ano de crise braba não é uma, são as milhares de mães que entregaram o cartão do Bolsa Família em 2015, sem que ninguém lhes pedisse.

Os outros agarrados a benefícios mais graúdos, que ainda se lambuzam em privilégios que eu, você e todos nós pagamos, deveriam conversar com essas mães. Mas é difícil. Eles preferem continuar viciados em bolsas fartas que também as mães do Bolsa Família ajudam a sustentar.



28 de dezembro de 2015 | N° 18398 
L. F. VERISSIMO

A questão


Na Grécia, na Itália, em Portugal e agora na Espanha, a esquerda não chegou ao poder mas chegou perto o bastante para incomodar a direita e o centro, em alguns casos negando-lhes maioria parlamentar. Na Grécia, a extrema esquerda assumiu mesmo o poder. 

Não assumiu integralmente seu extremismo, mas está lá, um exemplo de alternativa possível para o conservadorismo dominante. O crescimento da esquerda é consequência direta das medidas de “responsabilidade fiscal”, em contraste com a responsabilidade social que durante tantos anos informou os “welfare states” europeus e que transformaram “austeridade” num palavrão.

O desencanto crescente com o desmonte dos Estados de bem-estar social e a crescente convicção de que a política e os políticos não têm nenhuma voz numa economia gerida pelo capital financeiro e pelas multinacionais – a não ser para dizer que é mais “responsável” pagar uma dívida do que alimentar um filho – têm impelido não só a rebeldia de esquerdas como a “Podemos” na Espanha como o populismo de direita. E não é nem preciso fazer a analogia fácil com a ascensão do nazismo numa Alemanha desencantada para lembrar do que o populismo de direita é capaz. 

No fim, aceitando-se a hipótese de que ninguém tem o monopólio dos bons sentimentos e nem o mais desalmado financista quer a morte de criancinhas para que o mercado funcione, a questão passa a ser – na Europa, no Brasil ou na Cochinchina – até onde responsabilidade fiscal e responsabilidade social são compatíveis e podem conviver. Não vale invocar país escandinavo, onde as duas coisas não se excluem. São países frios, com aquecimento central e uma tradição de aconchego social. Quero ver é no mundo real.