sábado, 13 de setembro de 2008



13 de setembro de 2008
N° 15725 - PAULO SANT’ANA


O cego Justimiano

O cego Justimiano, marido da dona Malvina, avô do Japir, foi um personagem importante da minha infância.

Criança, eu não entendia nada sobre as diferenças sociais ou pessoais.

Melhor dizendo, até hoje não entendo por que umas pessoas são cegas e outras enxergam, umas são ricas, outras miseráveis.

O que mudou foi que quando eu era criança não me apiedava dos cegos e dos pobres.

Era assim e eu aceitava que fosse assim. Hoje me rebelo contra o destino e meu coração agoniza quando me debruço sobre a sorte dos desfavorecidos.

O cego Justimiano era um até as cinco horas da tarde, outro depois das cinco.

É que às cinco horas da tarde dona Malvina liberava a cachaça para o cego Justimiano e ele se deitava a uma falação imparável.

Antes das cinco, o cego Justimiano era um ser inerme, inerte, mudo, ninguém ligava para ele e para sua solidão.

Só agora fico imaginando a aflição daquele homem que era obrigado a ficar calado durante toda a manhã e metade da tarde, à espera da redentora aguardente que serviria como um bálsamo para sua cegueira, um anestésico para sua tristeza, um alívio para sua vida sem atrativos, desesperada vida de um homem diferente de todos os outros, aprisionado nos grilhões implacáveis da escuridão perpétua.

Nenhuma vida é feita só de alegrias. Mas muitas vidas são feitas só de infortúnio e de sofrimentos.

A vida do cego Justimiano era infortunada como a vida dos reclusos, dos inválidos, dos miseráveis necessitados.

Esse é um dos mistérios mais intrigantes da condição humana: por que uns são mais infelizes do que os outros, por que algumas pessoas vivem pregadas nas cruzes do seu martírio durante todo o decorrer de suas existências?

Esses suplícios têm o seu significado sonegado à compreensão humana. É inútil perquirir sobre eles, ao homem não é permitido perscrutar sobre a razão do sofrimento, uma parede sólida se interpõe entre a inteligência e a curiosidade filosófica.

É impossível decifrar a desigualdade que diferencia brutalmente as pessoas, umas superiores às outras, umas mais belas, mais lúcidas, mais fortes, mais ricas que as outras.

O cego Justimiano foi um marco dessa minha estupefação com o discriminatório desígnio da vida, que divide os homens, desde o seu nascimento, entre álacres e tristes, conforme os papéis existenciais que lhes foram destinados.

E me surpreendeu que eu tivesse sido indiferente à sorte sinistra do cego Justimiano quando eu era criança.

E que essa compaixão terna que sinto por ele tenha irrompido somente ontem à tarde, quando me lembrei de repente do cego Justimiano embebedando-se debaixo da bergamoteira depois das cinco da tarde, único horário que lhe permitiam para esquecer da sua desgraça.

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