sábado, 30 de abril de 2022


O ENIGMA DAS IYA MI

No desfile da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel (RJ), Oxóssi foi descrito como o herói que salva a "tribo" ao flechar a ave-bruxa maldosa. Contudo a cena não é o que os olhos repetem. No mito que a origina, as Iya Mi Oxorongá estão ofendidas. O rei de Ifé deixou de convidá-las à festa dos inhames, a elas - as mães primordiais. Como vingança, as ajés enviam a Ifé uma pássara com poder de destruição e de criação. Nenhum dos caçadores anteriores a Oxóssi a abate. Então, a mãe do orixá, para lhe garantir a vida, oferece sacrifício às mães ancestrais, apaziguando-as. 

Nesse instante, a flecha dele atinge a pássara, que presenta as Iya Mi. O desequilíbrio vindo do descaso com elas fora reparado com a oferenda. Não mais necessária a vingança. A pássara pode se tornar outra coisa. Não fosse o mito amefricano composto de outras formas (ofensa real, força das oferendas e sua aceitação pelas Iya Mi), Oxóssi se constituiria apenas em um Édipo enegrecido, no sentido de que também o filho de Laio derrota a esfinge que assolava Tebas.

Para espancar o que pareceria enigmático, vamos a outro mito. Nele as Iya Mi cessariam a perseguição de sua prole à prole das pessoas desde que Orunmilá lhes solucionasse o enigma: o que é que elas lançam sete vezes e ele pega sete vezes? Com o que ele pega sete vezes o que elas lançaram sete vezes? Sabemos que a esfinge também propôs um enigma a Édipo para que a destruição tivesse um fim em Tebas. O que é que pela manhã tem quatro pernas, pela tarde tem duas pernas e pela noite, três?

Freud considerou que a pergunta da Esfinge estava relacionada ao modo como nascemos. Porém não se pode dizer o mesmo quanto ao enigma das Iya Mi. Quem o formula, o responde, assim como o tempo, estão denegados no enigma de Édipo, quer dizer, estão encobertos na frase. Agora nas perguntas das mães primordiais dirigidas à Orunmilá existem tempos e sujeites expressamente implicades. Aí o enigma é de um caráter intersubjetivíssimo, não se apresentando como se pudesse ser formulado e respondido por qualquer ume, em qualquer época. Orunmilá diz o seguinte às Iya Mi: vocês enviam um ovo de galinha; eu pego o ovo de galinha com algodão. Édipo responde o seguinte à esfinge: o homem.

Quando Édipo descobre que ele "não é o homem" e que nem sua mãe "é a mulher", ele se arranca os olhos. Já no mito amefricano, Orunmilá não era nem o ovo e nem algodão que solucionaria o enigma. Assim, ao livrar a prole das gentes da fúria das Iya Mi, com a ajuda de Exu, ele pode cantar, dançar e conquistar a benevolência delas. Édipo e a esfinge morrem. Orunmilá e as Iya Mi celebram.

No mito do Édipo, denegamos parte da pergunta da Esfinge - o que não muda de voz durante a vida? Isso talvez tenha feito com que a resposta do filho de Jocasta fosse equivocada. Todavia, o ocidentocêntrico insiste em se organizar sobre esse equívoco. Se não o víssemos onde ele não está, se nosso enigma fosse outro, talvez nossa história pessoal e social também o fosse.

ELIANE MARQUES 

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