terça-feira, 26 de abril de 2022


26 DE ABRIL DE 2022
CARLOS GERBASE

Juliano em Paris

Os romances de base histórica não servem apenas para compreender melhor o passado, acrescentando emoção aos relatos acadêmicos. Eles ajudam também a interpretar os dias atuais, comparando os sentimentos dos seres humanos ao longo do tempo: o que mudou e o que permanece após longos períodos de interação entre a natureza e a cultura? Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, é considerada por muitos a melhor ficção já escrita sobre as relações humanas (e políticas) no império romano. 

Adriano nasceu no primeiro século da era cristã e sua trajetória, romanceada com genialidade por Yourcenar, está diretamente ligada ao que hoje chamamos de Humanismo. Erico Verissimo, Josué Guimarães, Luiz Antonio de Assis Brasil e Tabajara Ruas, para citar apenas nossos romancistas mais canônicos, ajudam a desvendar o Gauchismo, que em priscas eras foi semeado nos pampas e vicejou nas cidades (para o bem e para o mal). Muitas vezes escritas em primeira pessoa, suas obras nos fazem ver o mundo com os olhos de personagens com quem não podemos esbarrar na esquina.

É o que acontece também na prosa de Gore Vidal. Juliano, imperador romano do século IV, olha para Paris e pensa: "A cidade não passa de uma ilhazinha no rio Sena. Pontes de madeira fazem a ligação com as duas margens, onde o povo cultiva a terra. É um campo bonito e verde onde quase tudo dá, até figueiras". Instalado no modesto palácio da prefeitura, Juliano olha para o sudeste, bem além da margem esquerda do Sena, e pensa na capital do império, no comércio agitado, nas ruas sujas, nos prédios imponentes, mas que escondem o horizonte. O imperador passou três invernos em Paris, pois ali os horizontes eram abertos. Paris hoje é uma metrópole, mas guarda vestígios de seu passado (inclusive de obras romanas) e tem orgulho de seus prédios "velhos", que em Porto Alegre são derrubados com a maior desfaçatez.

Um porto-alegrense que, no cais, olhasse para a outra margem do Guaíba no início do século 20 veria, como Juliano, apenas um horizonte verde e aberto. Hoje vê uma fábrica de celulose e a fumaça de sua chaminé. Alguns empreendedores gostariam que, não longe dali, fosse instalada uma das maiores minas de carvão a céu aberto do planeta (o que para eles seria motivo de orgulho!). É preciso repensar a noção de progresso. É preciso perceber a imensa riqueza gerada pela preservação das áreas onde a natureza resiste. É preciso, de vez em quando, olhar para a outra margem com os olhos de Juliano em Paris e repensar o nosso futuro.

CARLOS GERBASE

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