sábado, 16 de abril de 2022


16 DE ABRIL DE 2022
J.J. CAMARGO

A MALDADE DEVIA, AO MENOS, TER LIMITE

Em nome da ciência, muitas atrocidades já foram cometidas. Com surtos de exacerbação bem definidos na história, a maldade sempre acompanhou o homem, em todas as épocas e sem discriminar nenhuma civilização.

Alguns exerceram-na ao extremo, sem qualquer preocupação com julgamentos. Eram maus e pronto. Logo abaixo, na graduação da psicopatia, sempre estiveram os cínicos, que se serviram de sofismas e dissimulações para o exercício ominoso e repulsivo do que pretendiam como arte ou ciência.

Assim aconteceu com alguns anatomistas alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Ao festejarem o fim da escassez de cadáveres, usaram do prestígio acadêmico para mudar, por exemplo, o horário do sacrifício dos condenados, argumentando que a execução matinal lhes assegurava cadáveres frescos, muito mais propícios aos estudos anatômicos.

Muitas dessas atrocidades foram reveladas pelo Tribunal de Nuremberg, outras vieram à tona de maneira fortuita.

O professor Hermann Stieve, chefe do Instituto de Anatomia da Universidade de Berlim, alegou que dissecava apenas cadáveres de "criminosos perigosos", mas foi preciso que Charlotte Pommer, uma estudante de Medicina, identificasse em dezembro de 1942, na mesa de dissecção onde estudava anatomia, uns dissidentes do nazismo conhecidos seus para que caísse a máscara de uma pesquisa abjeta. Stieve, um curioso nato, interessado em avaliar se o estresse intenso diminuía a ovulação, selecionou mulheres que estavam prestes a ovular e as enviou para as câmaras de gás, com intuito de trazê-las de volta depois de um simulacro de execução, apenas para verificar o efeito que um susto, daquele tamanho, causava sobre seu padrão de ovulação. Tudo em nome da ciência.

Crianças com deficiência mental serem excluídas de programas de vacinação infantil, para observar como evoluiria uma doença prevenível, foi outra iniquidade inominável.

Por alguma razão, na minha escala de atrocidades nada supera o protocolo para que ao longo de 40 anos, a partir de 1932, a sífilis, uma doença sexualmente transmissível, pudesse ser estudada in anima nobili: homens negros no sul dos Estados Unidos. Tudo planejado para que os médicos pudessem acompanhar as consequências da doença e, mais tarde, dissecar seus corpos, segundo a Associated Press.

O condado de Macon, um dos lugares mais pobres de Alabama, foi a comunidade escolhida a dedo. No início do século, a população majoritária de negros tinha altos índices de sífilis, que atingia 35% dos moradores em idade reprodutiva. Sem que tivessem conhecimento do que estava acontecendo, cerca de 400 homens afro-americanos passaram pela seleção, em que recebiam placebo e não eram informados de que tinham sífilis, apenas que eram portadores de "sangue ruim". O inconcebível foi negar-lhes o tratamento depois que surgiu a penicilina, uma droga curativa, visando manter o estudo com essas pobres cobaias humanas. O terrível experimento ficou conhecido como "Estudo de Sífilis de Tuskegee".

"O caso Tuskegee é paradigmático pois foi elaborado por pesquisadores supostamente preparados e com supervisão e respaldo de organismos governamentais", segundo José Roberto Goldim, professor de Bioética da UFRGS.

Quem publica em revistas científicas ou envia trabalhos para serem apresentados em congressos médicos menos entende como um atropelamento moral desse porte passou incólume pelos filtros éticos de então.

Mas, de qualquer forma, se subtrairmos da contemporaneidade o obscurantismo dos que escolheram negar a vacina para ver no que vai dar (como se alguém ainda não soubesse), e carentes como estamos de transformações positivas, talvez devêssemos comemorar com o ufanismo permitido que eticamente estejamos avançando. A repulsa que sentimos ao ouvir estes relatos é a melhor prova disso. Até quando? O tempo dirá.

J.J. CAMARGO

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