sábado, 30 de abril de 2022


30 DE ABRIL DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Uma escolha fácil

Não entendo quando dizem que a próxima eleição será difícil. Mais fácil, impossível. Armas versus livros. Culto à alienação versus incentivo ao conhecimento. Facilitações exclusivas para militares e evangélicos versus uma política social que atenda todas as pessoas, de qualquer credo, cor e gênero, de esquerda ou direita.

Isolamento do resto do mundo versus respeito internacional. Discurso vazio versus diálogo. Fascismo versus democracia. Desgoverno versus governo. Qual a dificuldade de escolher?

A dificuldade chama-se Lula, dirão os que ainda usam o líder petista como desculpa por terem votado num oficial que foi expulso do exército por terrorismo e cujo ídolo é um torturador. Alegam ter sido "obrigados" a colocar o país nas mãos de um homem sem projeto, a fim de se livrarem da corrupção - beleza, agora ninguém investiga mais nada. Tiveram que "tapar o nariz" e votar em alguém que nunca debateu uma ideia, em vez de elegerem, mesmo a contragosto, um professor com experiência em gestão pública. Entregaram nosso futuro de mão beijada para um homem que veio do submundo da política, com seu papinho retrô de moralização dos costumes e que usa Deus como cabo eleitoral para manipular a boa-fé de cidadãos mal-informados - e os mantém mal-informados através da indústria das fake news, a única coisa que progrediu nos últimos quatro anos.

Já alguns bem-informados, que sabiam direitinho o que o PT havia feito pelos mais pobres, também vieram com essa conversa mole de "desencanto", a fim de disfarçarem sua identificação com o capitão machista. Deu nisso. Agora somos o país dos milicianos no poder, dos ministérios conduzidos (em sua maioria) por medíocres, da turma desmiolada que despreza a ciência, dos irresponsáveis que foram contra máscara e vacina em plena pandemia. Sério mesmo que temos uma escolha difícil a fazer em outubro?

Corrigir nosso erro histórico não nos conduzirá direto ao paraíso. Seja quem for o candidato ou candidata que conseguir interromper esse período grosseiro do Brasil, haverá de ser cobrado desde o dia que assumir. Um presidente da República tem obrigações e, quando falha, apanha da opinião pública, como todos já apanharam, é o ônus do ofício. Somos 200 milhões de patrões avaliando a conduta de um funcionário que pleiteia o emprego mais importante do país e que promete um plano eficiente de gerenciamento. Se não cumprir, fora.

A besteira que fizemos em 2018 está custando caro, econômica e moralmente. De que adianta sermos bons cristãos, se hoje estamos alinhados aos tiranos do mundo? A escolha é fácil: voltemos aos governos que nos desiludem, como todos desiludem em algum ponto, mas que não colocam a democracia em risco, nem usam nossa fé contra nós mesmos.

MARTHA MEDEIROS

30 DE ABRIL DE 2022
CLAUDIA TAJES

Foi no carnaval que passou

Ó, quanto riso, ó, quanta alegria.

Coisa bem estranha que foi esse Carnaval fora de época, e isso não é uma crítica, é só um pensamento. Uma alegria inventada - de resto, como o próprio Carnaval. A diferença é que, no Carnaval oficial, a gente já sabe que deve ficar extremamente animado de sexta-feira até quarta ao meio-dia. Nesse de agora, plantado no meio dos dias úteis, como chegar felizão ao escritório, cantando alalaô entre um pepino e outro? Pior: como resolver as demandas do trabalho no meio do bloquinho?

Sim, chefe, envio o relatório assim que a Banda Eva passar. Vou tocar meu agogô e já encaminho sua solicitação. Um momento que lhe atendo tão logo eu termine meu corote.

Foi bom te ver outra vez, tá fazendo um ano, foi no Carnaval que passou.

Na verdade, foram dois anos. E depois do Carnaval de 2020 é que a porca torceu o rabo de verdade, com o aumento dos casos de covid e toda a desgraça que se abateu sobre o país. Para quem tem espírito de folião, dá para entender essa sede de Carnaval. Tinha muita tristeza para ser esquecida. Dessa vez, pessoal sambou com as três doses de vacina no braço, muito melhor que fantasia. Dá até para apostar que vai ter Carnaval no ano que vem, e na data oficial. Só tomara que com menos gente dormindo e passando fome nas avenidas.

Eu quero matar a saudade.

De tudo o que dominou o noticiário no Carnaval, e vou deixar a concessão da desgraça presidencial fora disso, nada se compara ao caso da rainha e da princesa da escola Paraíso do Tuiuti. Foi quase um recorte do Brasil desses nossos dias. Embora a Mayara, mulher da comunidade, tivesse muito mais majestade, foi uma loira sem samba no pé quem - supostamente - comprou o lugar de rainha da bateria.

As redes sociais não perdoaram. A rainha loira chegou a tirar seus perfis do ar, ela que é apresentadora de algum programa de TV e já foi candidata à prefeita da cidade de Mesquita, na Baixada Fluminense, com o apoio do atual presidente.

Mas a melhor parte vem agora.

Na noite do desfile, desconfiada de que pudesse sofrer algum boicote, a rainha recebeu suas sandálias lacradas e ainda levou pares sobressalentes, para qualquer eventualidade. Já a princesa Mayara, em plena evolução, viu seu biquíni arrebentar, e bem diante dos jurados. Se fosse ficção, a gente diria que uma sabotagem dessas seria um recurso óbvio demais. Mas é a vida, e a vida permite obviedades obscenas. Longe de mim insinuar qualquer coisa.

Vou beijar-te agora, não me leve a mal.

Aí também não. Beijo, só consentido. Além do quê, não é mais Carnaval, estamos já no 1º de maio, vulgo Dia do Trabalho. Acabou-se a ilusão, ainda mais essa, tão fora de época. Vamos em frente que, diferentemente da folia, nem tudo tem segunda chance.

Falando nisso, o prazo para tirar o primeiro título de eleitor pela internet encerra no dia 4 de maio. Em caso de dúvida, é só entrar aqui: gzh.rs/PrimeiroTítulo.

CLAUDIA TAJES

30 DE ABRIL DE 2022
LEANDRO KARNAL

Chico Buarque foi criticado por feministas. Motivo? A letra do clássico Com Açúcar e com Afeto. A música é de 1967 e foi dirigida à voz de Nara Leão. A polêmica foi forte.

Obras de arte estão inseridas no tempo. Possuem uma dívida com aquele momento. Artistas são seres reais que compartilham as dores e as delícias de cada geração. Se quiser ser muito chique, use a expressão Zeitgeist, o termo alemão para o espírito do tempo. Quer impressionar em grau platinum? Use o latim: Genius Seculi. Cada época e momento possuem seus próprios espíritos. Chico era uma pessoa aos 23 anos. A proximidade dos 80 pode tê-lo transformado.

Volto à música. É uma narrativa com início, meio e fim. Os jovens não sabem, mas, naquela época, as músicas continham narrativas. Algumas enormes, como Geni e o Zepelim. O filho de Sérgio Buarque de Holanda imagina uma mulher na faina de manter o marido em casa. Faz um doce que sabe ser do gosto dele. Inútil: alegando trabalho e o sustento da companheira, ele parte para a rua. Após uma noite de vida boêmia e de flertes, ele volta implorando o perdão da resignada esposa. Vence o medo da solidão, o impulso materno-feminino, a vontade de cuidar e de possuir, proteger e restringir e ela sempre aceita: "E ao lhe ver assim cansado/ Maltrapilho e maltratado/ Como vou me aborrecer?/ Qual o quê/ Logo vou esquentar seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus braços pra você".

Chico sempre foi o cantor da alma feminina. Que outra alma encarnada em um com testosterona poderia conceber uma das letras mais sensíveis da Língua Portuguesa: "Oh pedaço de mim"? (Oh, metade arrancada de mim/ Leva o vulto teu/ Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu.) Lirismo devastador e pungente.

Muitos homens se aproximaram da "alma feminina". Quase sempre, foram gênios que projetaram muito do masculino (medo, em particular) sobre elas. Assim nasceram Capitu e Madame Bovary. Assim Rodin esculpiu e Picasso pintou as mulheres que maltratava na vida real. Assim foram feitas leis civis e eclesiásticas sobre corpos de fêmeas. Dessa forma eclodiram termos como "mulher honesta" e "abandono de lar". Sim, a lei já não fala de dote ou da mulher honesta como categoria jurídica, apenas falou e formou mentes por muitas e muitas décadas.

Há algo que só as mulheres percebem de si? Compare-se Cordulina (personagem do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz) com Sinhá Vitória (Vidas Secas, Graciliano Ramos). Dois textos separados por poucos anos (1930-1938), dois autores do Nordeste e o mesmo sertão castigado pela aridez como pano de fundo. A temática social, no caso, parece tornar o gênero tema secundário.

As esculturas da atormentada e talentosa Camille Claudel mostram, várias vezes, mulheres no desespero do abandono. Seu amante, Rodin, dá dimensão material ao beijo envolvente. O sonho masculino seria a entrega da companheira e o medo feminino seria o abandono?

O que Chico representou foi um medo e uma estratégia. Educada em sociedade patriarcal, a anônima esposa da música ama seu homem, tem medo de perdê-lo, sabe da sua inconstância e, mesmo assim, o perdoa. De alguma forma, ela responde a um vazio estimulado pelos modelos conservadores: melhor um marido inconstante do que estar sozinha. Hoje pergunto a apenas você, querida leitora: há alguma amiga sua com a mesma conclusão? Prefiro infidelidade à solidão? Conheço algumas. Também sei de amigos que relevam coisas por preguiça, medo ou amor. Seria mais forte o homem que, por gostar da sobremesa, sempre volta à esposa? Sempre dizem que o homem tem duas cabeças. E sangue para preencher apenas uma de cada vez. Acrescentaria: três, na verdade, porque o estômago é um órgão pensante no corpo masculino.

Nosso Zeitgeist exige isonomia de gêneros. É um grande avanço. Está nos discursos públicos, ainda não chegou aos lares. Diariamente, homens e mulheres negociam seu medo de adultério e de abandono. Uns fazem doces, outros trazem flores, alguns e algumas evitam comer os doces com medo de que seu corpo deixe de ser atraente. Somos crianças medrosas, carentes, solitárias. Os homens chamam o seu medo enorme de... masculinidade. As mulheres o denominam feminilidade. Outros dialogam com as duas vertentes e criam novas formas. Todos, todas e "todes" estamos aqui, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. 

Ficou irritado ou irritada com "todes". Gosto médio também. Apenas reconheço que nosso medo pode ter gramática, gênero, açúcar, afeto e cancelamentos póstumos. Encaro meu medo com ênfase. Ele sorri e volta, recalcado. Conhecer-me é minha única esperança na maturidade. Pelo menos, no fim, para não jogar sobre Chico minha própria desesperança e solidão.

LEANDRO KARNAL

O ENIGMA DAS IYA MI

No desfile da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel (RJ), Oxóssi foi descrito como o herói que salva a "tribo" ao flechar a ave-bruxa maldosa. Contudo a cena não é o que os olhos repetem. No mito que a origina, as Iya Mi Oxorongá estão ofendidas. O rei de Ifé deixou de convidá-las à festa dos inhames, a elas - as mães primordiais. Como vingança, as ajés enviam a Ifé uma pássara com poder de destruição e de criação. Nenhum dos caçadores anteriores a Oxóssi a abate. Então, a mãe do orixá, para lhe garantir a vida, oferece sacrifício às mães ancestrais, apaziguando-as. 

Nesse instante, a flecha dele atinge a pássara, que presenta as Iya Mi. O desequilíbrio vindo do descaso com elas fora reparado com a oferenda. Não mais necessária a vingança. A pássara pode se tornar outra coisa. Não fosse o mito amefricano composto de outras formas (ofensa real, força das oferendas e sua aceitação pelas Iya Mi), Oxóssi se constituiria apenas em um Édipo enegrecido, no sentido de que também o filho de Laio derrota a esfinge que assolava Tebas.

Para espancar o que pareceria enigmático, vamos a outro mito. Nele as Iya Mi cessariam a perseguição de sua prole à prole das pessoas desde que Orunmilá lhes solucionasse o enigma: o que é que elas lançam sete vezes e ele pega sete vezes? Com o que ele pega sete vezes o que elas lançaram sete vezes? Sabemos que a esfinge também propôs um enigma a Édipo para que a destruição tivesse um fim em Tebas. O que é que pela manhã tem quatro pernas, pela tarde tem duas pernas e pela noite, três?

Freud considerou que a pergunta da Esfinge estava relacionada ao modo como nascemos. Porém não se pode dizer o mesmo quanto ao enigma das Iya Mi. Quem o formula, o responde, assim como o tempo, estão denegados no enigma de Édipo, quer dizer, estão encobertos na frase. Agora nas perguntas das mães primordiais dirigidas à Orunmilá existem tempos e sujeites expressamente implicades. Aí o enigma é de um caráter intersubjetivíssimo, não se apresentando como se pudesse ser formulado e respondido por qualquer ume, em qualquer época. Orunmilá diz o seguinte às Iya Mi: vocês enviam um ovo de galinha; eu pego o ovo de galinha com algodão. Édipo responde o seguinte à esfinge: o homem.

Quando Édipo descobre que ele "não é o homem" e que nem sua mãe "é a mulher", ele se arranca os olhos. Já no mito amefricano, Orunmilá não era nem o ovo e nem algodão que solucionaria o enigma. Assim, ao livrar a prole das gentes da fúria das Iya Mi, com a ajuda de Exu, ele pode cantar, dançar e conquistar a benevolência delas. Édipo e a esfinge morrem. Orunmilá e as Iya Mi celebram.

No mito do Édipo, denegamos parte da pergunta da Esfinge - o que não muda de voz durante a vida? Isso talvez tenha feito com que a resposta do filho de Jocasta fosse equivocada. Todavia, o ocidentocêntrico insiste em se organizar sobre esse equívoco. Se não o víssemos onde ele não está, se nosso enigma fosse outro, talvez nossa história pessoal e social também o fosse.

ELIANE MARQUES 


30 DE ABRIL DE 2022
EUGÊNIO ESBER

O VALOR DA LIBERDADE

O que leva o homem mais rico do mundo a comprar uma rede social? A resposta a esta pergunta não é simples, porque vários fatores, com maior ou menor peso, contribuíram para instalar na mente de Elon Musk a obsessão por adquirir o controle do Twitter. A transação concluída na semana que passou significa para Musk o desembolso de US$ 44 bilhões. É isso mesmo que você leu, bilhões. Uma exorbitância, na opinião de diversos analistas, que levantam sobrancelhas ante vários aspectos do negócio. Há retorno plausível para um investimento tão desproporcionalmente elevado? Será um capricho, meramente? Uma extravagância, mais uma, do homem que está que à frente de uma empresa de exploração espacial, a Space-X, com planos de levar terráqueos dispostos a colonizar Marte?

Além de combinar um cérebro prodigioso com um esfomeado ímpeto empreendedor, há duas características que se salientam na trajetória do sul-africano que, ainda rapaz, emigrou para os Estados Unidos. Uma é o pragmatismo. Não chegou à fortuna pessoal de mais de US$ 260 bilhões torrando dinheiro de maneira fútil ou inconsequente. A sua Tesla é a maior fabricante de veículos elétricos do mundo e hoje alcança um valor de mercado superior ao de GM e Ford juntas. A segunda faceta dele é o desassombro. No momento, toca uma empresa chamada Neuralink, que pesquisa a conexão possível entre seu cérebro - o seu, caro leitor - e um chip de computador. Está assustado? Elon Musk, pelo jeito, não. Ele parece ver algo além da gente.

Voltemos ao Twitter e ao que poderia justificar a babilônia de dinheiro que a "Personalidade do Ano" da revista Time colocou na rede do passarinho azul. Seria reducionismo dizer que agiu por despeito. Como se sabe, ele teve problemas no Twitter com a "moderação", em muitos casos um rótulo elegante para "censura". Vimos esse padrão durante a pandemia e mesmo agora, com a crescente interdição do livre debate nas redes sociais e a sufocação de jornalistas, pesquisadores e veículos de comunicação que tenham perguntas consideradas incômodas ou inoportunas sobre covid ou, no caso brasileiro, vulnerabilidade do sistema eleitoral.

A declaração de Elon Musk no sentido de transformar o Twitter no território da liberdade de expressão devolve esperança a quem anda desencantado com a vaga autoritária de cerceamentos, bloqueios, cancelamentos e desmonetizações. Quem sabe as redes sociais, Twitter à frente, voltem a se parecer com a grande "praça pública" a que se referiu Musk?

Antes que tamanha ingenuidade faça seu Orwell despencar da estante, devo dizer que, sim, tenho ao menos uma razão objetiva para acreditar que sobreviveremos ao Grande Irmão. Se Musk cumprir o prometido e não ceder às tentativas de controle do tirânico Ministério da Verdade, exercerá um papel fundamental ao colocar em teste, no mercado global, o potencial de valorização de um ativo que anda em baixa, mas sempre foi o grande propulsor da jornada humana.

A liberdade. Voa, passarinho azul.

EUGÊNIO ESBER

30 DE ABRIL DE 2022
DRAUZIO VARELLA

NEM A NOSSA URINA ESCAPARÁ DA RECICLAGEM A FIM DE ALIMENTAR O PLANETA

A revolução da urina. Esse é o título de um artigo publicado na revista Nature, em fevereiro deste ano, com o subtítulo "Como a reciclagem de urina pode ajudar a salvar o mundo".

Há um esforço para criar métodos que tornem possível separar a urina do resto do esgoto. Nele estão envolvidos vários países: Estados Unidos, Holanda, Austrália, Etiópia, Suíça, África do Sul, entre outros. O objetivo é usar na produção de fertilizantes o resíduo sólido resultante da desidratação da urina.

Com essa finalidade, têm sido construídos nas ruas vasos sanitários sem água, em que as pessoas possam esvaziar a bexiga, de modo que a urina drene para um compartimento no subsolo dotado de sistemas de tratamento. A Agência Espacial Europeia está para instalar em Paris 80 sanitários desse tipo que entrarão em funcionamento até o fim do ano. A ideia é testar esse projeto piloto, para levá-lo aos postos militares, aos campos de refugiados e às áreas mais ricas e às mais pobres da cidade.

Os cientistas encarregados desse trabalho calculam que o impacto ambiental e os benefícios à saúde pública serão enormes, se empregados no mundo inteiro, já que a urina é muito rica em nutrientes. Aproveitada dessa maneira, ela deixaria de poluir os reservatórios de água potável para fertilizar lavouras e aumentar a produtividade no campo.

As estimativas são de que os seres humanos sejam capazes de produzir urina suficiente para substituir cerca de um quarto do nitrogênio e do fósforo contidos nos fertilizantes atuais. Ao lado desses elementos, ela contém potássio e ureia entre outros micronutrientes de interesse.

Além dessas vantagens, processar a urina economiza grandes quantidades da água usada para dar descargas nos vasos e evita a ação corrosiva nos encanamentos envelhecidos.

Um estudo realizado com a água presente no esgoto sugere que o reaproveitamento global de potássio proporcionaria um lucro de US$2,3 bilhões por ano, o de nitrogênio, US$ 8 bilhões, e o de fósforo, US$ 2,3 bilhões.

Graças à tecnologia desenvolvida na produção de vasos sanitários ligados a estações de tratamento da urina coletada, esses equipamentos estão praticamente prontos para uso imediato.

Não é viável instalar encanamentos projetados para drenar grandes volumes de urina na direção de estações centrais, que ficariam encarregadas de evaporar a água para separá-la dos componentes sólidos. Haveria necessidade de criar usinas que exigiriam investimentos custosos e ocupariam muito espaço, em áreas densamente povoadas nas cidades. A solução que os técnicos consideram mais econômica é a de que esse processamento seja feito nos próprios locais de coleta.

As pesquisas estão concentradas nos melhoramentos para aumentar a eficiência do sistema, com medidas que podem incluir miniestações de tratamento químico acopladas diretamente no vaso sanitário e recipientes que permitam tratar a urina de prédios inteiros. Com a mesma finalidade, foram desenvolvidas diversas técnicas para recolher o resíduo sólido obtido a partir da desidratação, etapa fundamental para levá-lo às fábricas de fertilizantes.

Há ainda a questão social: como as pessoas receberiam a notícia de que estão à venda alimentos fertilizados com urina concentrada?

No passado, a urina foi empregada para fertilizar lavouras, tingir couros, lavar roupas e até na produção de pólvora. Só no fim do século 19 foi colocado em prática na Inglaterra o sistema centralizado de coleta de esgoto, que se espalharia pelo resto do mundo, acabando com a possibilidade de coleta seletiva de urina.

Reverter esse modelo não será tarefa simples, mas os interesses comerciais poderão viabilizá-lo. A população mundial era de 450 milhões quando o Brasil foi descoberto. Ao redor de 1800 esse número chegou a 1 bilhão, isto é, para atingirmos o primeiro bilhão de habitantes foram necessários 220 mil anos.

Durante o século 20, a população duplicou, no ano 2000 já éramos 6 bilhões. Hoje estamos perto dos 8 bilhões. Seremos 10 bilhões em 2050. Como alimentar tanta gente sem destruir o planeta, de modo a torná-lo inviável para as gerações futuras? Nem a nossa urina escapará da reciclagem.

DRAUZIO VARELLA

30 DE ABRIL DE 2022
BRUNA LOMBARDI

QUAL É A TAL DA VIDA REAL?

Vocês já repararam que separamos a realidade do que chamamos vida irreal? E na tal realidade colocamos todo tipo de perrengue, mão de obra, chateação, tarefas, o que não gostamos, o que nos perturba, aflige e causa ansiedade?

Já na vida que achamos irreal, nessa podemos ficar tranquilos, ouvir música, ler livros, apreciar um por de sol, brincar com nossos bichos e fazer exatamente o que nos faz bem e o que queremos?

Na real, não temos tempo pra nada disso, nela cabem problemas, boletos, links de reunião, trocentos assuntos, da família ao noticiário.

Na vida que queríamos, somos espíritos livres, serenos, resolvemos as coisas tranquilos e de bom humor. As pessoas nos compreendem, aceitam e concordam com nossas ideias, assim como nós com as delas?

Na vida real, é um salve-se quem puder a cada dia e a gente vai levando como dá, empilhando montes de coisas, papéis pela casa, pratos nas pias, acumulando tudo e sempre atrasados.

Vivemos abalados, irritados, indignados e ainda por cima tentando equilibrar essas duas vidas impossíveis de conciliar, fragmentadas em cada passagem, em cada acontecimento que vivenciamos.

Queremos ansiosamente encontrar a nós mesmos e a nossa felicidade no meio disso tudo.

A gente vive assim, zen? zen paciência, zen tempo suficiente, zen saber como dar conta disso tudo. E assim vamos que vamos, trôpegos, alegres e nervosos, exaustos e plugados, tentando juntar nossos cacos e fazer com eles um novo e lindo mural.

De tardinha, depois do dia cheio, depois do banho, a gente pode se deixar invadir por uma sensação boa e relaxada, quando um restinho de raio de luz deixa nosso mural colorido.

Basta isso. Basta um momento só seu e o reconhecimento de quanta coisa você tem resolvido na sua vida real pra poder desfrutar um pouquinho da outra, a que invade sua alma de doçura, daquela quentura no coração. É hora de dizer parabéns pra você mesma, tudo vai dar certo e você merece um abraço.

Afinal, você tá gerenciando duas vidas aparentemente antagônicas e fazendo o melhor que pode em cada uma delas. É noitinha, tome um banho, tome um vinho, tome uma decisão.

Você vai dedicar mais tempo pra você. Fazer uma lista das coisas que adora, dos lugares que quer visitar, filmes, livros, músicas, comidinhas.

Um presente. Pode se dar um presente assim, sem razão nenhuma. Pode rir, cantar, dançar, também sem razão nenhuma. Essas alegrias miúdas, sem motivo, fazem um bem danado.

Pode se distrair um pouco, passar um dia preguiçoso, você tem saldo pra isso, já fez coisa demais.

E se der pra manter esse estado mais leve e lembrar dele pra quando amanhã começar de novo aquele giro da vida chamado realidade, aí sim vai pintar uma diferença.

O turbilhão de assuntos e perrengues pode ser o mesmo, mas você não é. Você sabe que a realidade não é só aquela que nos endurece, nos deixa tensas, intensas, à beira de uma crise? Pois mesmo com tudo o que a vida nos traz, a realidade é o que fazemos dela.

BRUNA LOMBARDI

30 DE ABRIL DE 2022
J.J. CAMARGO

O QUANTO SOMOS EXIGENTES

"Se há moral no filme, é que, se nos deixarmos abertos e disponíveis para as surpreendentes contradições da vida, encontraremos forças para continuar." (Bo Goldman, roteirista do filme Perfume de Mulher)

A intolerância ao fracasso de projetos pessoais não é linear ao longo da vida. À medida que amadurecemos, vamos nos tornando mais complacentes com nossas limitações, submetidos às descobertas, quase sempre desestimulantes, do quanto na juventude tínhamos uma visão exageradamente otimista de nossas virtudes. O que, como se poderia prever, é um atalho para frustração.

Convivendo com jovens, se percebe que as fantasias se repetem décadas após décadas, revelando que essa é uma característica da espécie, com adaptações circunstanciais às mudanças intempestivas. Até o início do século 20, a figura do jovem era muitas vezes referida pelas inconveniências do baixo nível cultural e a tendência de considerar rebeldia como falta de educação.

Há quem acredite que as coisas começaram a mudar depois que o grande F. Scott Fitzgerald, numa de suas frases mais famosas de O Grande Gatsby (1925), admitiu que "no fim das contas, a vida não tem muito a oferecer, além da juventude".

A frase, se tornou a síntese da geração (a X) que idealizou o jovem como modelo de vida e como público-alvo das grandes empresas. De lá para cá, mesmo com o aumento da expectativa de vida, o fascínio pela juventude só cresceu. A transformação desse encanto em obsessão foi acelerada pela chegada da geração Y, a dos millennials (os nascidos de 1980 a 1995), marcados pela chegada da internet, e o cortejo de modificações impostas pela instantaneidade, que minimizou o papel do professor e colocou os pais como uma improvável fonte de informação.

Os millennials são de fato fascinantes: estão sempre conectados, são questionadores, priorizam a experiência em detrimento da posse, são idealistas, poucos afeitos a poupar e, naturalmente, embaixadores da sustentabilidade. Mas como a roda não para de girar, todo mundo sabe que as duas próximas décadas serão comandadas pela geração Z, a que nasceu de 1995 a 2010 - e tem, portanto, de 12 a 27 anos. Uma parte dessa turma é o nosso público com o qual convivemos, diariamente, na universidade. Poupados da corruptela pelo pouco tempo de exposição à hipocrisia social, são afáveis, puros e aflitos em relação ao porvir, como aliás todos fomos um dia, e não importa se os rastros dessa utopia já se apagaram.

Movidos pela angústia de como alcançar o sucesso, são modelos comoventes de entusiasmo pueril e, por falta de juízo crítico, vulneráveis aos manipuladores inescrupulosos.

A mim, interessa o quanto carregam intacta a inteligência emocional, essa que distingue as pessoas que podem fazer diferença daquelas que serão apenas degraus na escada dos oportunistas.

A resposta emocional a uma obra de arte pode ser um bom instrumento de triagem. Um dia desses, pedi a uma turma nova que revisse o filme Perfume de Mulher (1992). Na próxima aula, deveriam assinalar qual passagem consideraram inesquecível. Pois com tantas cenas marcantes, quase 30% dos alunos consideraram o diálogo do coronel Slade (Al Pacino) tentando convencer Donna (a linda Gabrielle Anwar) a dançar tango - quando ouve dela que tinha medo de errar, ele responde que "o tango é fantástico porque, à semelhança da vida, não devemos nos preocupar com o erro, porque sempre é possível recomeçar".

Percebem o quanto ainda há de esperança na geração de uma garotada capaz de valorizar o significado desta frase? Eu gostaria de ter sido o que eles serão.

J.J. CAMARGO

30 DE ABRIL DE 2022
PAULO GERMANO

O rock e o preconceito

"Não há como se levantar

Suas mãos estão atadas; suas pernas, amarradas

A luz brilha em seus olhos

Você enxerga o fio da navalha

E abre a boca para chorar

Não adianta: a lâmina vai entrar!"

Como você interpreta esses versos? Que cena você enxerga nessa meia dúzia de linhas?

Em 1985, uma associação de mães liderada por Tipper Gore, esposa do então senador Al Gore, sacudiu os Estados Unidos ao abrir uma guerra pública contra bandas de rock e suas gravadoras. Na avaliação dessas mães, letras como a reproduzida acima, do grupo de heavy metal Twisted Sister, exaltavam o estupro, a violência, as drogas, o álcool, o sexo e - que horror! - a masturbação na adolescência.

A ideia era proibir as rádios de tocar uma enorme lista de músicas. E também obrigar as gravadoras a inserir um selo de "alerta aos pais" em capas de discos malcriados - esse selo vingou, existe até hoje. Foi um rebuliço nacional: senadores aplaudiam a iniciativa, fãs de rock protestavam nas ruas, a mídia repercutia o caso dia e noite, músicos se enfureciam em entrevistas.

Até que, no fim do ano, o Senado convocou uma audiência histórica com a presença dos astros John Denver, Frank Zappa e Dee Snider - este último, vocalista e compositor do Twisted Sister. As representantes da associação de mães compareceram indignadas, rugindo em defesa da família e dos valores cristãos.

Ao explicar a letra de Under the Blade (Embaixo da Lâmina), aquela reproduzida no início do texto, Dee Snider revelou que a música fora composta enquanto o guitarrista de sua banda estava no hospital, apavorado porque enfrentaria uma cirurgia na garganta. Não havia qualquer menção a estupro ou violência, como a líder das mães, Tipper Gore, insistia em alegar.

- Se você procurar na letra estupro e violência, pode encontrar. Mas, se procurar cirurgia, vai encontrar também. A única violência da música está na cabeça da senhora Gore - concluiu o metaleiro, antes de um sonoro "oooh" ribombar na plateia.

Snider foi certeiro porque, de fato, é possível enxergar praticamente qualquer coisa em qualquer situação - vai depender apenas da predisposição que houver para isso. Se, na sua cabeça, um cabeludão com cara de louco só pode ser má influência para os jovens, então você verá má influência em tudo o que Snider fizer.

Essa é a manifestação mais literal de preconceito - que nada mais é do que um conceito, ou ponto de vista, formado antes de se obter o conhecimento necessário sobre determinado assunto. Quando o preconceito nos controla, a tendência é sempre enxergarmos na situação um viés que confirme nossas crenças (ainda que elas estejam erradas). Porque estamos predispostos a isso.

Por exemplo:

Se você tem certeza de que todos os males da história do mundo são culpa da esquerda, você achará uma forma de encontrar esquerda no nazismo. Se sua convicção é de que os empresários são vilões da sociedade, você verá horrores em qualquer privatização ou parceria entre iniciativa privada e poder público. Se você se irrita com a ciência - porque ela prova, por exemplo, que transgêneros existem -, então você encontrará em Adão e Eva a explicação para a humanidade. E acreditará que vacina faz mal à saúde e também que a Terra é plana.

O preconceito é o maior inimigo da verdade, porque ele cega: não há o que alguém possa dizer, fazer ou mostrar para o preconceituoso rever suas certezas. E suas certezas são invioláveis não porque são verdadeiras, mas justamente porque, para o preconceito prosperar, a verdade precisa ser ignorada.

Depois do levante daquelas mães americanas, as gravadoras toparam incluir nos discos o selo de alerta aos pais. "Conteúdo explícito", avisa a etiqueta, que ainda hoje acompanha as obras com linguagem desbocada. O curioso é que esses discos, para desespero da senhora Gore - e regozijo de Dee Snider -, dispararam nas vendas, esgotaram nas lojas, chegaram ao topo das paradas. Porque os jovens só queriam comprar "conteúdo explícito".

Bandas que não precisavam do selo passaram a implorar às gravadoras que lhes dessem a etiqueta. Algumas enfiaram palavrões em suas letras só para ganhar o tal rótulo. E assim o rock?n?roll mostrou o destino justo para toda forma de preconceito: a indiferença e o descrédito que ainda se fazem tão necessários.

PAULO GERMANO

30 DE ABRIL DE 2022
OPINIÃO DA RBS

RENDA INSUFICIENTE

Ter algum trabalho é sempre melhor do que não conseguir colocação. Sob o ponto de vista dos números de ocupação, não resta dúvida de que o Brasil atravessa um momento de recuperação, mesmo que lenta. É algo a ser reconhecido e celebrado, pois significa que mais pessoas estão conseguindo renda, meio essencial de uma sobrevivência minimamente digna. Os dados mais recentes comprovam.

Em março, conforme o Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados (Caged), foram criados no país 136.189 vagas com carteira assinada. No primeiro trimestre, o resultado líquido entre admissões e demissões foi positivo em 615.173. Divulgada na sexta-feira, a taxa de desemprego, apurada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ficou em 11,1% no trimestre encerrado em março, estável em relação ao período de três meses imediatamente anterior, encerrado em dezembro. A expectativa do mercado era de 11,4%. Ou seja, o número veio melhor do que o esperado.

Mas a renda ainda é motivo de grande preocupação. Mesmo existindo mais cidadãos trabalhando, em postos formais ou na ocupação informal, os ganhos são menores. É um contexto agravado pela escalada do custo de vida. O IPCA-15, prévia da inflação oficial do país, subiu 1,73% na passagem de março para abril. Em 12 meses, o indicador avança 12,03%, e um olhar mais atento mostra um espalhamento maior da pressão entre os itens que o compõem. Pelo Caged, o salário inicial dos trabalhadores contratados em março foi 7% inferior ao mesmo mês de 2021. No levantamento do IBGE, o rendimento real habitual caiu 8,7% ante o primeiro trimestre do ano passado.

Isso determina que mesmo felizardos colocados no mercado de trabalho enfrentam dificuldades cada vez maiores para manter as compras e as contas básicas do mês. A conjuntura piora pela alta do juro, que contribui para elevar a inadimplência. De acordo com a Serasa Experian, o Brasil chegou, em março, a 65,6 milhões de pessoas que não conseguiam honrar suas dívidas em dia, maior patamar desde o início da pandemia. Quem tem de onde tirar usa suas economias para fazer frente aos compromissos mais urgentes. 

Também em março, o Banco Central registrou o maior volume líquido de saques da poupança para o mês desde o começo da série histórica, iniciada em 1995. Para especialistas, reflexo exatamente desse quadro de renda em queda e inflação em alta. As circunstâncias forçam a população à busca por alternativas para reduzir gastos. Recente reportagem de Zero Hora mostrou grande aumento de venda de motocicletas no Rio Grande do Sul, resultado em grande parte atribuído ao esforço para diminuir os desembolsos com gasolina, uma vez que automóveis consomem mais combustível.

O consenso de mercado é de que o Brasil terá um crescimento pífio do PIB em 2022 e a geração de empregos tende a desacelerar nos próximos meses. Uma conjuntura mais favorável para os trabalhadores depende de uma série de fatores encadeados. Entre eles, um combate mais efetivo da inflação. Infelizmente é uma tarefa, hoje, solitária do Banco Central, via remédio amargo do juro, enquanto, por outro lado, teme-se uma bomba fiscal para 2023, devido a gastos e bondades de cunho eleitoreiro. Em um segundo momento, dependeria de uma economia mais aquecida, que no médio prazo poderia vir do aumento da confiança pelo fim das turbulências institucionais, e depois, por reformas estruturantes. Olhando ainda mais para a frente, elevar os ganhos dos brasileiros de maneira consistente depende de uma guinada na educação, capaz de melhorar a produtividade do trabalho.

 


30 DE ABRIL DE 2022
NEGÓCIOS

Os últimos preparativos para o South Summit em Porto Alegre

Espera-se que de 5 mil a 8 mil pessoas participem do evento. Ações prévias incluem reforço em serviços urbanos e na segurança

Porto Alegre se apronta para sediar um dos principais eventos de inovação do planeta, o South Summit, que ocorrerá entre 4 e 6 de maio. Para isso, está em andamento uma série de atividades preparatórias que inclui reforço no treinamento de profissionais do setor de hotéis, intensificação de serviços de manutenção e limpeza das vias de acesso e ações integradas de segurança.

Com os preparativos, a Capital espera um incremento imediato em setores como hotelaria, bares e restaurantes durante os três dias de programação, mas conta principalmente com a divulgação internacional da cidade e a consolidação como polo de tecnologia para colher frutos maiores no futuro. Representantes da área gastronômica têm expectativa de acréscimo de até 20% no faturamento mensal em estabelecimentos no entorno e nos pontos da cidade tradicionalmente mais procurados por turistas.

O secretário-adjunto de Inovação e de Governança Local e Coordenação Política de Porto Alegre, Alexandre Borck, que acumula os dois cargos, afirma que a cidade está se mobilizando de diferentes formas - espera-se que de 5 mil a 8 mil pessoas participem do evento, com ao menos 30% de turistas.

- A ideia é de que as pessoas que vierem de fora não digam apenas "que baita evento", mas "que baita cidade" - afirma Borck.

Sinalização

Visualmente, haverá cerca de 400 placas e banners de divulgação do South Summit espalhados por diferentes regiões e um reforço em serviços urbanos de conservação, manutenção e limpeza de vias em pontos de entrada do município, principais acessos aos armazéns do Cais Mauá, onde o encontro será realizado, e no entorno da Orla. Para facilitar a chegada dos participantes, o secretário-adjunto lembra que a EPTC vai colocar em prática um plano para organizar os pontos de embarque e desembarque de táxis, ônibus e carros de aplicativo.

Quem quiser passear contará com duas linhas turísticas de ônibus à disposição. Quem preferir ficar nas imediações do Guaíba poderá assistir a shows musicais diários, previstos para ocorrer em palco montado ao lado da Usina do Gasômetro, além de atrações na área do Embarcadero.

Além disso, setores de segurança pública do município e do Estado trabalham em conjunto para garantir a tranquilidade dos participantes - as ações envolvem desde medidas de inteligência até um plano de policiamento ostensivo reforçado.

 MARCELO GONZATTO


30 DE ABRIL DE 2022
MARCELO RECH

Ressaca digital

Os sinais são esparsos, mas a tendência está aí. Aos poucos, vai se consubstanciando uma fadiga digital que, se mantidas as atuais conjunções, pode devolver a humanidade a uma convivência menos tumultuada com o mundo em bits e bytes.

Algumas pistas do fastio: o Facebook envelheceu mal, o Snapchat murchou e o Instagram e suas fantasias de vidas sempre douradas se vê imprensado por gerar ondas de depressão, sobretudo entre adolescentes, enquanto as bigtechs vão sendo garroteadas na Europa e nos EUA por não pisarem nos freios do uso de dados privados.

O fato mais instigante foi a paulada sofrida pela Netflix na semana passada, quando se revelou que a mãe de todos os serviços de entretenimento online perdeu 200 mil assinantes. As ações da Netflix chegaram a cair 35% porque se constatou que o crescimento do consumo online, somado a exorbitâncias gastas em produções exclusivas, não só tem limites como pode sofrer reversões.

Três fatores empurram a tendência de fadiga. O primeiro é o tempo. Nenhuma tecnologia foi capaz de criar mais horas no dia e mais dias no ano para se dar conta de todas as alternativas que se acotovelam à nossa frente. O segundo é o excesso. Paradoxalmente, quanto mais conteúdos, menos o cérebro os registra. Se a atenção não é capturada nos primeiros dois segundos de um vídeo, o usuário já salta para outro, em um ciclo infinito de superficialidade no qual reina o TikTok - pelo menos até a próxima onda de saturação.

O terceiro fator, e a grande novidade, é que após dois anos de reclusões pela pandemia, boa parte da humanidade emerge do claustro digital com renovado entusiasmo para uma reconexão com a natureza, para a vivência de experiências físicas e para relações em carne e osso.

Vá lá que Elon Musk tenha torrado 44 bilhões de dólares na compra do Twitter. Não fará muita diferença para ele, tanto que ignorou os sinais de advertência. Antes uma darling de veículos de comunicação e especialistas em assuntos complexos, o Twitter é hoje tingido por ogros que se deliciam em escarnecer do conhecimento e espalhar grosserias. O The New York Times passou a desestimular a presença de seus jornalistas no Twitter e muita gente boa está fazendo detox dele e outras redes - ou ao menos, passando a usá-las com mais moderação. O Ministério da Saúde Mental agradece.

O South Summit Brasil, que vai de 4 a 6 de maio em Porto Alegre, é a melhor oportunidade da história recente do Estado para se escrever uma nova página da inovação, o que inclui uma relação saudável com o extraordinário manancial do mundo digital. Criatividade e ousadia não faltam aos gaúchos. Quem sabe não ajudamos a encontrar a cura para essa ressaca?

MARCELO RECH

30 DE ABRIL DE 2022
J.R.GUZZO

Lula também "perdoou" Battisti

Um dos melhores passatempos que estão disponíveis no momento na praça política é o estado de agitação nervosa e de revolta improdutiva contra o decreto presidencial que deu ao deputado Daniel Silveira o perdão para as penas que lhe foram impostas pelo STF. Pensaram em tudo, menos nisso - e agora, sem saber o que fazer, gastam energia numa daquelas revoltas sem causa que sempre levam a lugar nenhum.

Não há o que fazer, na prática. O decreto é à prova de bala do ponto de vista constitucional; não se pode mexer nele, a menos que se faça uma virada geral de mesa. Como disse o ministro Alexandre de Moraes em 2018, quando o presidente Michel Temer deu exatamente a mesma "graça" para um lote de condenados por corrupção na Lava-Jato: perdão presidencial, "goste-se ou não", tem de ser cumprido.

A oposição, a maior parte da mídia e o que se poderia chamar de "partido do Supremo" estão revoltados: foram ao próprio STF, aliás, pedir que seja anulada a anulação das penas do deputado. É uma alucinação. Está escrito na Constituição que o presidente da República tem o direito de dar esse perdão para quem quiser, de forma individual ou coletiva. Não precisa apresentar nenhuma justificativa para a sua decisão.

Aparecem então, no desespero, argumentos de nível ginasiano. A circunstância de Temer era "diferente", alegam, embora não se explique qual poderia ser a diferença. O presidente agiu de "má intenção", dizem, e "más intenções" invalidam o que está na Constituição.

O momento mais divertido, porém, ficou por conta do herói de quase todos os inconformados com o perdão ao deputado - o ex-presidente Lula. Como se viu, ele ficou quietíssimo quando o decreto saiu. Depois veio com a história de que "não quis dar cartaz ao Bolsonaro", mas aí não deu para segurar: teve, sim, de falar no assunto maldito.

O fato é que Lula, antes de deixar a Presidência, deu um "perdão" igual ao vetar a extradição do terrorista italiano Cesare Battisti, que assassinou quatro pessoas na Itália e depois se refugiou no Brasil. Lula piorou as coisas, como sempre, jogando nos outros a culpa pelo que fez - no caso, disse que o culpado foi o seu ex-ministro da Justiça Tarso Genro, que lhe garantiu que Battisti era "inocente". Àquela altura a justiça da Itália, em todas as suas instâncias, tinha decidido que ele era culpado por quatro crimes de homicídio.

O ex-presidente e candidato nas próximas eleições presidenciais acusou também o próprio Battisti; o "companheiro", nas suas palavras, mentiu para ele ao dizer-se inocente. Lula acreditou na história do terrorista, coitado, e acabou cometendo o engano de mantê-lo no Brasil.

Esse é Lula. Esse é o seu passado. Ele volta o tempo todo para interferir no presente e deixar mudos os seus devotos - tão indignados com o perdão a Daniel Silveira e tão esquecidos do "perdão" a Cesare Battisti.

J.R. GUZZO

30 DE ABRIL DE 2022
INFORME ESPECIAL

Cabeleireira há 80 anos

Pelas mãos de Iracema Lourdes Antunes passaram primeiras-damas, misses e até a mãe de um presidente da República. A cabeleireira de Porto Alegre fez a cabeça de gerações de mulheres das mais tradicionais famílias gaúchas. Em 2022, aos 94 anos, Iracema (na foto) celebra oito décadas de profissão. Detalhe: em plena atividade.

Ainda menina, em 1942, ela passou a ajudar a irmã, Antenisca Maria Salvi, a Nica, no Instituto de Beleza Salvi. Aprendeu olhando.

Casou-se em 1947 com o empresário Nelson Antunes e, por cerca de um ano, dedicou-se ao lar. À época, recorda ela, "achavam feio mulher trabalhar", mas a pausa durou pouco: em 1951, com o apoio do marido e a sociedade de Nica, Iracema abriria o Salão Joana D?Arc, que fez história na Capital.

A habilidade das irmãs correu de boca em boca. A fama cresceu ainda mais quando Iracema passou a viajar a congressos no centro do país atrás das últimas tendências em penteados, cortes e tinturas - ela foi até ao Japão (sem saber uma palavra em japonês ou inglês) em 1981.

Não deu outra. O salão se tornou um sucesso. À cadeira de Iracema, sentaram-se, entre tantas clientes ilustres, quatro mulheres de governadores do Rio Grande do Sul (leia mais ao lado). Em um único final de semana, o local chegou a atender 32 debutantes do Country Club, enviadas pela requisitada modista Mary Steigleder.

- Faço o vestido, mas o penteado tem de ser com a Iracema - repetia Mary.

A pedido da freguesia, o Joana D?Arc manteve filial em Torres por 30 anos, durante os veraneios. Até hoje, Iracema cuida de antigas clientes, agora na estética dirigida por uma de suas quatro filhas. A cabeleireira já não tem mais o marido e a irmã ao lado (ele faleceu em 1986 e ela, em 2002), mas segue empunhando a tesoura com firmeza - e enchendo de orgulho netos e bisnetos.

- Amo o que faço. Vou seguir trabalhando até quando minhas pernas aguentarem - avisa Iracema, que não quer deixar nenhuma freguesa desamparada.

Todas as piadas agora viraram politicamente erradas, então não tem mais graça.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Ex-presidente e candidato ao Planalto, entendendo que há excesso de preocupação com o humor.

Temos um chefe do Executivo que mente.

JAIR BOLSONARO

Presidente da República, em ato falho, quando na verdade queria se referir a ministro do STF.

Precisamos realmente ser mais inclusivos no dia a dia.

SHANA MÜLLER

Em entrevista ao Timeline, da Rádio Gaúcha, a apresentadora do Galpão Crioulo na RBS TV falou pela primeira vez publicamente sobre o autismo do seu filho do meio.

Em 30 anos de futebol, adaptado a esse ambiente como visitante, é a primeira vez que eu vejo em coro minha família ser xingada.

ROGER MACHADO

Técnico do Grêmio, em desabafo, após ouvir ofensas racistas em Ponta Grossa (PR), em jogo do time.

Não há como uma guerra ser aceitável no século 21.

ANTONIO GUTERRES

O secretário-geral da ONU, em visita à Ucrânia.

O papel da mulher avança a duras penas e sempre contra uma barreira de preconceito.

EVA SCHUL

Coreógrafa e bailarina, falou em entrevista a GZH sobre o machismo enfrentado ao longo de sua carreira.

Eu espero que até os meus priores críticos continuem no Twitter, porque isso é o que liberdade de expressão significa.

ELON MUSK

O homem mais rico do mundo, em sua primeira manifestação após ser anunciado acordo para compra da rede social.

JULIANA BUBLITZ

sexta-feira, 29 de abril de 2022


Cartas inéditas de prisioneiros de Auschwitz

Eu te escrevo de Auschwitz - As cartas inéditas dos prisioneiros do campo de concentração (Editora Planeta, 224 páginas, R$ 52,90), de Karen Taieb, chefe do departamento de arquivos do Memorial da Shoá, o Museu do Holocausto em Paris, traz cartas inéditas escritas por prisioneiros do famoso campo de concentração. São missivas enviadas por judeus franceses deportados às suas famílias e outras correspondências clandestinas que descrevem o terror vivido no campo de concentração.
Quase cinco mil judeus escreveram, sob coação de oficiais nazistas, entre os anos 1942-1944 e tudo fazia parte de uma operação de propaganda (a chamada Brief-Aktion) que visava tranquilizar os familiares dos deportados e, assim, esconder o horror a que eram submetidos.
Expressões vagas como "Está tudo bem comigo" e "Estou com saúde" estão na maioria das mensagens e elucidam ainda mais a perversidade da máquina de morte nazista. Os deportados escreviam que estavam bem no exato momento em que eram encurralados. As cartas lançavam uma breve luz sobre essas vidas, e, então, se fazia a escuridão.
Os relatos apresentam detalhes do inferno cotidiano ao qual estavam submetidos os prisioneiros.
Além de trazer à tona esse acervo pouquíssimo conhecido, Karen também nos apresenta outras correspondências e, assim, além de revelar uma parte desconhecida da história do Holocausto, ao mesmo tempo presta uma homenagem à memória das vítimas. Outro efeito do livro é colocar à vista de todos os crimes cometidos pelo regime nazista contra a humanidade.
Responsável pelos arquivos que estão no Memorial do Shoá no histórico bairro do Marais, em Paris, Karen desde 1993 realiza um intenso trabalho de pesquisa e registro da história do extermínio dos judeus na Europa. A verdade nua e crua, e muito cruel, é que as "boas notícias" dos deportados anunciavam que logo não haveria mais notícia alguma. A prova de vida escondia o terrível segredo da morte próxima.

Lançamentos

  • Bambini (V.S. Zattera, 240 páginas, R$ 50,00), de Vera Stedile Zattera, professora, pesquisadora e especialista em indumentária, detalha a história das colonizações italiana e gaúcha nas décadas de 1920 a 1980, com centenas de fotos , ilustrações e imagens icônicas de crianças do século XX.
  • A Sombra da Passarela (Helvetia Editions, 145 páginas) é a quinta obra do advogado e escritor Cassiano Gilberto Santos Cabral e trata de dois crimes em cenários de Porto Alegre. A ação se passa também na Itália e em Portugal. Pratos típicos e outros dados culturais estão presentes na obra.
  • Na Estrada com o Ex (Editora Intrínseca, 416 páginas, R$ 54,90), de Beth O'Leary, autora de Teto Para Dois, traz um carro, cinco pessoas, muitas histórias e um encontro inesperado entre dois antigos namorados. Não bem um encontro, uma colisão, digamos - e seiscentos quilômetros de estrada pela frente...

A Pior Pessoa do Mundo

A Pior Pessoa do Mundo, o longa norueguês indicado ao Oscar 2022 que está em cartaz agora no Brasil, meio atrasado, dirigido pelo experiente e consagrado Joachim Trier e estrelado pela premiada Renate Reinsve, merece ser visto e dá muito o que pensar. O filme retrata quatro anos da millennial que está fazendo trinta anos e que, depois de cursar medicina e psicologia e se dedicar à fotografia, ainda perdida entre muitas pessoas e opções, vai trabalhar numa livraria e se relacionar com um artista maduro de 45 anos. Isso até conhecer um jovem bonito que vai mudar o rumo de suas indefinições.
O filme deixa mais perguntas do que afirmações e mostra como a adolescência atualmente vai muito além dos 24 anos que a ONU estabelece como limite da fase em que a gurizada entra no mundo adulto. Alguns acham que a adolescência, com suas indecisões, múltiplas escolhas e confusões, vai até lá pelos cinquenta.
A Pior Pessoa do Mundo tem trabalhos de ator excelentes, enquadramentos perfeitos e sedutores e, em alguns momentos, dá para dizer que parece, no bom sentido, um Woody Allen nórdico. Nunca foi fácil o autoconhecimento, o entendimento do amor e do sentido da vida e nesse mundo que vivemos, mais do que antes, ficamos aí, entre milhões de opções que nos tonteiam, procurando o melhor a fazer, buscando esperança e procurando viver da melhor forma conosco e com os outros. Não está fácil, mas as filas andam, as vidas seguem e as lutas internas e externas continuam.
Igual a milhões de pessoas por aí, a protagonista sabe que fere seres próximos com seus sentimentos e suas ações, mas percebe que é preciso tentar entender o que se passa e, quem sabe, consertar alguma dor que ficou para trás, colocar um remendo em maus tratos acontecidos. O que encanta, instiga e impressiona na personagem principal são as mudanças de humor e de atitude e as complexidades não só dos millennials (nascidos aproximadamente entre 1980/2000) mas da maioria de humanos que andam por aí, imersos nessa sociedade líquida, conectados e desconectados, sozinhos e acompanhados por milhões, vivendo comédias e dramas num cotidiano rápido e com referências que por vezes duram o mesmo tempo que os fogos de artifício.
A transição da adolescência para o mundo adulto sempre foi complicada e um romance imortal como O Apanhador no Campo de Centeio, entre outras obras de arte importantes, nos mostra como os dilemas de juventude seguem universais e com muito mais perguntas filosóficas do que respostas.
A Pior Pessoa do Mundo fala do que é ser mulher na atualidade, lembranças das mães e avós, maternidade, caminhos a seguir e mostra, em um prefácio, doze capítulos e um prólogo, até mesmo uma viagem provocada pelo ingestão de cogumelos alucinógenos. Cenas engraçadas, cenas românticas e cenas trágicas mostram uma obra que desafia rótulos e definições. O filme é um work in progress, uma obra que segue em andamento depois do final e que provavelmente vai motivar outros trabalhos do aclamado cineasta e dos competentes atores.

A propósito...

Ao fim e ao cabo, o filme nos faz pensar que , atualmente, melhor do que julgar, criticar, entender ou explicar os outros, talvez seja melhor gostar deles, aceitá-los e tentar, ao menos, conviver do modo mais amoroso e pacífico possível. Em tempos de polarizações terríveis e deletérias, a ideia democrática e plural de convívio simpático, claro, vem bem. Brigar dá muito trabalho. Dois trabalhos, pelo menos. Brigar e depois ter de fazer as pazes. Ou brigar e ter o trabalho de conviver com os esqueletos no armário e os pensamentos ruins. A Pior Pessoa do Mundo mostra que devemos ser como as pilhas, ter, ao menos, um lado positivo. Aí quem sabe a gente tem mais energia e durabilidade. Enfim, um bom filme sobre relações e sonhos contemporâneos, longe de falsos moralismos, discursos "politicamente corretos" e outros patrulhamentos chatos.