terça-feira, 31 de julho de 2018


31 DE JULHO DE 2018
ARTIGO

CUIDADOS COM A PROPAGANDA ELEITORAL UM INTRINCADO JOGO DE PODERES


A recente decisão de um promotor de Justiça que determinou o isolamento celular do ex-governador Sérgio Cabral, revogada poucas horas depois pelo juiz da Vara de Execuções Penais, comprova a exacerbação de "poder" do Ministério Público, cujo integrante adotou uma postura absolutamente arbitrária, prepotente, desarrazoada e ilegal.

A rigor, a prática operacional do Ministério Público, inclusive perante os tribunais, tem revelado um excessivo poder institucional, que a Constituição não lhe atribuiu, a ponto de empalidecer o exercício do poder jurisdicional, com graves prejuízos ao seu livre exercício, exclusivo do Poder Judiciário. Isso significa, em última instância, que, na prática, quem anda decidindo, isto é, exercendo jurisdição, em muitos casos, tem sido o próprio Ministério Público.

Todos nós, mais de 200 milhões de brasileiros, somos favoráveis ao eficiente combate à corrupção, desde que respeitem o Estado democrático de direito, o texto constitucional e, principalmente, as cláusulas pétreas asseguradas em nossa Carta Magna. O abuso de autoridade não pode ser tolerado pela sociedade. São tempos bicudos que a sociedade espera não perdurem por muito tempo.

Para as eleições de 2018, eleitores, partidos, candidatos, coligações e demais agentes envolvidos na campanha devem ficar atentos às normas que disciplinam a propaganda. Muitas regras permanecem inalteradas, mas há diversas modificações criadas para diminuir custos e tornar as campanhas mais acessíveis e igualitárias.

A propaganda começa no dia 16 de agosto e, entre as novidades, destaca-se a proibição de publicidade em bens públicos ou particulares, exceto bandeiras e mesas para distribuição de materiais ao longo de vias públicas, e a afixação de adesivos plásticos de até meio metro quadrado em automóveis, caminhões, bicicletas, motocicletas e janelas residenciais. O uso de mecanismos de impulsionamento de propaganda eleitoral na internet, permitido apenas para partidos, coligações, candidatos e seus representantes, está proibido para eleitores e não pode ser feito no dia da eleição.

Tema polêmico que está no foco da Justiça Eleitoral e da mídia, a disseminação de notícias falsas, as chamadas fake news, pode atrair a responsabilização civil e criminal por difusão de propaganda enganosa ou sabidamente inverídica. Confirmar uma informação antes do compartilhamento é a forma mais segura de evitar qualquer punição.

Também é necessário cuidado com pesquisas eleitorais: a divulgação sem os requisitos legais e o prévio registro nos Tribunais Eleitorais constitui infração e pode caracterizar crime se constatada a ocorrência de fraude. Da mesma forma, é vedado o derrame de propaganda nas vias públicas, ainda que na véspera da votação, ilícito que pode configurar delito eleitoral.

Apesar de a legislação estar mais restritiva, é preciso ter presente que o eleitor tem um papel fundamental para garantir a isonomia entre candidatos nessa etapa de concretização da democracia.

Secretário judiciário do TRE-RS rogerio@tre-rs.jus.br - ROGÉRIO DE VARGAS

31 DE JULHO DE 2018
ARTIGO

MUNDO GLOBAL OU FRAGMENTADO?


Alain Minc, em seu livro A Nova Idade Média, já alertava em 1993 para características muito peculiares da nossa época que têm similitude com o período medieval: fragmentação e divisão dos povos e territórios com exacerbação dos sentimentos individualistas e grupais; guerras regionais; poder paraestatal crescente; expansão das organizações ilícitas; crise da legalidade e do Direito; uso da força bruta como método de resolução de conflitos.

Traçando um paralelo, no Direito Internacional o que se observa parece ser o enfraquecimento de algumas instituições e a ascensão da força bruta em detrimento da normatividade. Será mesmo essa a tendência?

Já se descreveram na literatura mais de cem modelos de democracias contemporâneas. Mas qualquer democracia pressupõe mecanismos de representatividade da vontade popular e de controles sobre os atos dos mandatários.

Em muitas democracias, prevalecem modelos que remetem a fórmulas cada vez mais complexas. Nos Estados Unidos, não é o voto direto do eleitor que escolhe o presidente da República, mas, sim, um colégio eleitoral dos Estados, culminando em representação sofisticada.

Não podemos esquecer das democracias de "fachada", em que os direitos humanos são proclamados no papel e desprezados na prática, onde não há liberdade de imprensa nem Judiciário independente, tampouco poderes Legislativo ou Executivo livremente eleitos. Não há representatividade legítima ou controles adequados.

Cada nação vive, todavia, com suas crenças e suas leis. Há ainda países em que a religião tem grande peso no Direito. E a sociedade aceita o modelo adotado.

Quais os parâmetros para se avaliar se um país tem, ou não, o status de democracia? São referências globais ocidentais? Ou realmente universais? O debate globalização versus fragmentação está mais atual do que nunca. Empresas e nações orientam suas políticas e negócios com base nessas novas realidades. São complexos desafios que precisam ser enfrentados pelo Brasil.

FÁBIO MEDINA OSÓRIO

31 DE JULHO DE 2018
DIÁRIOS DO MUNDO

Mugabe, um fantasma cada vez mais invisível

"Espero que a escolha nas eleições afaste o governo militar e nos faça regressar à constitucionalidade." A frase, acreditem, é de Robert Mugabe (foto), o ditador que, ao longo de quase quatro décadas, assaltou o Zimbábue, país africano que chegou a ter uma inflação anual de 231.000.000%. Pasmem, o tirano, do alto de seus 94 anos, veio falar em "constitucionalidade" pouco antes da primeira eleição sem que seu nome estivesse na cédula.

Último dinossauro entre os rebeldes africanos transmutados em ditadores, Mugabe foi o ausente ainda presente da eleição. Sua voz influencia. Mas, sem o ditador, o pleito de ontem foi mais colorido como colorido sabe ser o Zimbábue.

Mugabe governou durante 37 anos à margem da lei. Ou, melhor dizendo, ele próprio era a lei. Até ser apeado do poder no final do ano passado por seu próprio partido, o Congresso da União Nacional Africana do Zimbábue-Frente Nacional (Zanu-PF), pelos militares e pelo vice, Emmerson Mnangawa, agora candidato.

O que o fez pedir a volta da "constitucionalidade"? Não foi, por certo, um espasmo de democracia. Foi desejo de vingança. Não votaria naqueles que o tiraram do palácio, argumentou. O ex-ditador escolheu a oposição, de Nelson Chamisa e seu Movimento para a Mudança Democrática (MDC), que têm poucas chances, mas cujo apoio cresceu recentemente.

O processo eleitoral está cheio de denúncias de irregularidades. O resultado só deve sair após o dia 4, e não há garantias de que um ou outro lado irá aceitar a voz das urnas. Mas as imagens de eleitores comemorando o primeiro voto, em Harare ou as cenas de filas quilométricas no interior do país são daquelas que emocionam. Uma democracia, ainda que imperfeita, é sempre o melhor sistema.

Ganhe quem ganhar, Mugabe seguirá sendo um fantasma pairando sobre o Zimbábue. Mas, felizmente, é cada vez mais invisível.

RODRIGO LOPES

31 DE JULHO DE 2018
CARPINEJAR

A dedicação exclusiva

O telefonema não é mais dedicação exclusiva.


Ninguém mais liga para você sem fazer mais nada, as pessoas estão entretidas sempre com uma outra tarefa. Dirigem, trabalham, escrevem mensagens no WhatsApp, postam fotos, movimentam-se pela casa. Dá para notar pelos ruídos externos. Às vezes, o contato é feito no viva-voz e a voz some do alcance por breves momentos. Ou a acústica é vazada e a descarga surge, estridente, ao fundo.

Somos secundários quando recebemos uma ligação, somos um dos interesses no caminho, não mais um destino.

Ninguém telefona para falar só com você, é uma hiperatividade irritante. Perdemos o dom de nos dedicarmos unicamente a alguém, sem concorrência, sem fugir com o pensamento, sem conversas paralelas e cumprimentos a terceiros, numa atenção plena e amorosa.

Durante minha infância e adolescência, o telefone era fixo, preso a um fio como um cachorro perigoso a uma coleira.

Nas residências, existia até a mesinha de madeira própria ao aparelho, com uma toalha de crochê por baixo. Ao lado, sentava-se em uma poltrona sem espaldar, para se dedicar ao ato. O cenário formava uma espécie de oratório da fofoca, uma capela para as conversas. Não se saía da salinha.

Disputávamos o uso do telefone com a família. Aquele que queria ligar para alguém permanecia de pé, próximo, forçando uma despedida com griteiros. Parecia fila ansiosa de banheiro.

Corria-se apenas o risco de o pai ou a mãe levantar silenciosamente o gancho da extensão para acompanhar o teor de algum relacionamento, se já havíamos avançado o sinal.

Parávamos com solenidade para um trololó prazeroso, para receber as descrições do dia, para pôr em dia os assuntos, para saborear a narração das amizades. Não tinha como se distrair. Lembro que a orelha esquentava devido à intensa imobilidade.

Estamos hoje em todos os lugares ao mesmo tempo e em nenhum lugar de verdade.

carpinejar@terra.com.br - CARPINEJAR

segunda-feira, 30 de julho de 2018



30 DE JULHO DE 2018
CÍNTIA MOSCOVICH

O gato passa bem, obrigada


Nos últimos dias, me impressionou a imagem de um cavalo todo colorido por canetinhas e tinta guache, resultado da, digamos, "intervenção" de crianças de uma colônia de férias na Sociedade Hípica de Brasília. Segundo os responsáveis, tratava-se de uma "atividade pedagógica" para que os pequenos se aproximassem do bicho, fazendo "carinho" ao mesmo tempo em que utilizavam o corpo do animal como tela ou papel. Ou seja: um objeto sem ânimo.

Em tempos de justiceiros sociais e politicamente corretos, carradas de cinismo e aquela generosidade compulsória duma gente que se acha tão boa, o único ganho genuíno, creio, é a noção de piedade. Por isso, a pergunta que resta é: onde, naquele estábulo, estava a compaixão? O cavalinho não tinha nada que ficar sendo tocado, espetado ou molhado por sei lá quantas mãozinhas. O animal podia ter sido acariciado, penteado, mimado - como sabemos, os gaúchos, é o que se faz quando se quer que os piás aprendam a conviver com bichos.

Eu não deveria me surpreender. Pertinho de casa, numa creche particular que funciona num prédio sem habite-se já há quatro anos, numa segunda-feira foi encontrado um gatinho muito ferido e que, presumivelmente, havia ali se abrigado durante o fim de semana. A dona da creche, que tem jeito de vovó boa-gente, ao ver que o gatinho não reunia sequer condições de fugir, mandou que uma funcionária o descartasse no jardim do prédio ao lado. 

Que o jogasse fora, melhor dizendo, como se lixo fosse. A funcionária, penalizada, recusou-se a desampará-lo e procurou uma vizinha nossa que cuida de animais abandonados. Essa vizinha reuniu toda a quadra numa vaquinha para pagar veterinário para o gato - que havia fugido da casa de seu dono - e foi assim, bancando minha parte na clínica do bichano, que fiquei sabendo dessa história toda.

Quero dizer: anda bem em moda mostrar aos pequenos que animais são trastes, já em desuso os antigos exemplos de zelo e cuidado com a matéria viva. Me apavoro ao imaginar os valores ensinados e me aferro à certeza que quem desrespeita a vida indefesa não merece um pingo de respeito.

CÍNTIA MOSCOVICH

30 DE JULHO DE 2018
EDUCAÇÃO

A felicidade virou cadeira na UFSM


UNIVERSIDADE OFERECE, a partir do segundo semestre, aula optativa para debater lições da filosofia para uma vida boa
A partir do segundo semestre, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) abordará um assunto que pretende ampliar os conhecimentos dos estudantes não só na vida acadêmica ou profissional. O curso de Ciências Sociais ofertará a disciplina Ética e Felicidade - Lições da Filosofia para uma Vida Boa.

A UFSM será a segunda universidade pública com a cadeira - a primeira foi a Universidade de Brasília (UnB). A disciplina foi criada e será ministrada pelo professor Dejalma Cremonese, que tem graduação e mestrado em Filosofia e doutorado em Ciência Política. O docente afirma que os assuntos a serem abordados têm como base um estudo sobre temas existenciais desenvolvido por ele há oito anos.

- Minha pesquisa é essencialmente filosófica e busca lições para que possamos compreender o ser humano. Na pós-modernidade, temos uma compreensão de felicidade mais fugaz, que confundimos com momentos de satisfação, de alegria. A partir do que estudei, esses momentos de satisfação e alegria não podem ser entendidos como felicidade. Felicidade, conforme a filosofia, é um processo lento e gradativo de uma satisfação de estar vivendo com simplicidade. Para os gregos da filosofia, a felicidade é subjetiva, é serenidade de espírito, é frugalidade, o que é diferente do que vemos na vida pós- modernidade - diz Cremonese.

O professor acrescenta ainda que a disciplina leva em conta o atual cenário da nova geração:

- Nossos universitários sofrem com a solidão, o isolamento, a angústia, a depressão. A gente ensina tudo na universidade, a tecnologia, o aspecto jurídico, mas não trabalhamos sobre ética, amor e felicidade. Queremos contribuir para o melhor entendimento dos estudantes sobre seus sentimentos.

camille.wegner@gauchasm.com.br - CAMILLE WEGNER


30 DE JULHO DE 2018
GDI

Em meio aos remédios, farmácia vende fuzis em Mercedes

Na Argentina, também é proibido vender armamento a brasileiros, mas a venda persiste, de forma dissimulada. Uma equipe do GDI foi até a cidade de Mercedes. Lá, é possível localizar armas e munição, perguntando a pessoas que vão desde de donos de revendas de automóveis, de restaurantes e até proprietários de lojas de roupas. Eles indicam quem vende. Dois moradores, questionados, falaram de um ex-policial que venderia armas. A reportagem o procurou, ele não estava, mas sua mulher, sem saber que falava com jornalistas, confirmou que ele vende munição.

A repórter pergunta ao dono de um restaurante em Mercedes onde se pode comprar armas. Ele dá nova indicação:

- Tu caminhas uma quadra para frente e duas para a esquerda. Lá na farmácia há armas - fala o comerciante.

Diante da surpresa da repórter, ele confirma:

- Sim, armas. De caça. Já munição tu consegues no meu primo.

- E ele vende munição para qualquer um? Como eu? Para armas de fogo? -questiona a repórter.

- Sim, sim. Armas de fogo. Depende do calibre que queiras, ele te vende - detalha o comerciante, ao anotar num papel o endereço do fornecedor de munição, mesmo sabendo que a interlocutora é brasileira e não pode comprar armas na Argentina.

O primo tinha viajado, mas é repassado o telefone dele e confirmado que vende armas a qualquer um.

A busca culminou na farmácia San Martin, que, curiosamente, exibe na vitrine uma arma de cano longo, um fuzil, entre remédios e implementos agrícolas. Não é possível identificar se é uma arma de fogo original ou réplica.

Já no lado brasileiro, na fronteira com a Argentina, em Porto Mauá, um homem que joga bocha em um bar fala com naturalidade da possibilidade de vender munição, sem saber que conversava com repórteres:

- Que tipo de arma procuras? Alguma coisa a gente consegue, mas munição, principalmente. Não muito. Algumas caixas. Pistola? Espingarda? Carabina?

Questionado se é especializado no assunto, ri e admite ser contrabandista:

- A gente se vira, né. Compro produtos, ofereço serviços.

O contrabandista se oferece para ir até a cidade de Oberá - na Argentina, a 60 quilômetros de Porto Mauá. Questionado se a compra seria na Armería Ortiz, admite que sim. A loja exibe, na fachada, cartaz de venda de rifles Winchester norte-americanos, pistolas Bersa argentinas, fuzis CZ tchecos. Em tese, a venda é proibida para brasileiros, mas o atravessador garante que seria fácil a compra. A negociação é interrompida pelos repórteres, mas fica gravada a oferta.

Contribui para essa facilidade na aquisição de armas e munição o fato de parte da fronteira do RS com os países vizinhos estar desguarnecida. É por isso que contrabandistas se oferecem, até mesmo a estranhos, para buscar armamento em território argentino. Situada no noroeste gaúcho, a cidade de Porto Lucena, por exemplo, tem um porto - como indica o nome - na fronteira com a Argentina, sem guarnição policial ou fazendária. Basta entrar num barco e cruzar o Rio Uruguai até o país vizinho. Pescadores se oferecem para atravessar de canoa o forasteiro até território argentino, mediante pequena quantia.

EM APENAS UM CONTATO, VENDEDOR APRESENTOU CATÁLOGO DE ARMAS

Outras duas localidades gaúchas, Porto Vera Cruz e Porto Soberbo - também às margens do Rio Uruguai -, estão com as aduanas fechadas desde 2013. Não há fiscalização de fronteira. Quem vem da Argentina pode atravessar sem ser fiscalizado, o que torna o comércio de armas uma possibilidade.

Longe das lojas, é possível tentar compra de armas pela internet. Encontramos vários anúncios. Entramos em contato por e-mail com um vendedor, que prontamente enviou catálogo com quase cem armas, nenhuma delas com documentos. Ele informa, em espanhol, que fala de um país vizinho - seria o Paraguai - e que, via contatos nas aduanas, consegue fazer o envio para qualquer parte do mundo. No final da mensagem, afirma que tem mais clientes brasileiros. "Você não é o primeiro nem o último do seu país".

30 DE JULHO DE 2018
INDICADORES

CONHECIMENTO PARA TRANSFORMAR

A dificuldade em absorver as mudanças está no fato de que, embora a tecnologia evolua de forma exponencial, nosso pensamento intuitivo ainda é linear. Olhamos para o passado e projetamos o futuro baseados na linearidade do nosso modelo mental. Mesmo o famoso jargão "pensar fora da caixa" nos mantém presos, pois usa como referência a própria caixa.

Bastaria nos livrarmos do pensamento objetivo em linha reta e passarmos a pensar exponencialmente para perceber que os próximos dez anos não terão as características e a evolução de simples dez anos atuais de progresso porque serão potencializados.

O que explica esta surpreendente mudança notadamente do último século? É a velocidade da informação e do conhecimento pela facilidade da comunicação e da força e da abrangência da conectividade que alcança a todos indistintamente sem fronteiras.

Com isso, foram eliminados nichos e caixas- pretas do conhecimento nas empresas, que passaram a ter ampliado o espaço de desenvolvimento de produtos e serviços. Abriu-se um admirável mundo novo da cooperação a todos que quiserem participar do processo de criação e de inovação. E as empresas que não abrirem as portas para isto estarão desperdiçando uma enorme oportunidade de garantirem sua sobrevivência no mundo digital. Novas tecnologias acabam tornando as inovações escalonáveis e com massificação. Segundo David Rogers, a transformação digital não tem a ver somente com tecnologia, mas com estratégias e novas maneiras de pensar.

É nesta busca constante de transformar as pessoas melhorando a competitividade das Organizações gaúchas e, por consequência, do Estado, que lideranças, especialistas e universidades estarão discutindo o tema conhecimentoparatransformar.com no 19º Congresso Internacional da Gestão, promovido pelo PGQP, no dia 13 de agosto.

Devemos mobilizar a sociedade neste tema, já que o Estado não tem conseguido investir o suficiente para o aumento da competitividade, mesmo em questões básicas de infraestrutura. Os impostos pesam cada vez mais no bolso dos cidadãos e empreendedores, na contramão do ambiente adequado para o avanço da livre iniciativa. Existe chamado maior do que este para a necessidade do conhecimento, da inovação e da transformação?

Daniel R. Randon escreve às segundas-feiras, mensalmente.

DANIEL R. RANDON VICE-PRESIDENTE DE ADMINISTRAÇÃO E FINANÇAS DA RANDON S.A. IMPLEMENTOS E PARTICIPAÇÕES E PRESIDENTE DO CONSELHO DIRETOR DO PGQP


30 DE JULHO DE 2018
+ ECONOMIA

O SUL É 20% DA NOSSA BASE DE CLIENTES

Em entrevista à coluna, a cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, detalha os números sobre o cartão de crédito da marca, criado em 2013 e conhecido por não cobrar anuidade. Como segue em crescimento, a empresa afirma que ainda não tem como principal preocupação o lucro - no ano passado, o prejuízo caiu 4%, para R$ 117 milhões.

Quantos clientes o Nubank tem hoje no país?

Passamos de 4 milhões. Quando começamos, em 2013, achávamos que seria incrível chegar a 1 milhão de clientes em cinco anos. Atingimos essa marca em dois anos. Tivemos crescimento em ritmo nunca imaginado.

O que fez o Nubank ganhar espaço no mercado brasileiro?

As pessoas entenderam que a empresa também é inconformada com a burocracia no país, a baixa qualidade de serviços oferecidos e os preços cobrados aos consumidores. Lançamos um cartão controlado por aplicativo, sem papelada. Se nosso cliente quiser saber se uma transação foi aprovada, não precisará ligar para um call center e ficar esperando para ser atendido por 30 minutos, enquanto ouve uma musiquinha de fundo. Queremos ter eficiência para repassá-la em forma de isenção de tarifas, de menos custos para os clientes. Nosso cartão não tem anuidade.

Hoje, há quantas pessoas na lista de espera pelo cartão da empresa?

Mais ou menos meio milhão.

Qual o peso da Região Sul na operação da empresa?

Temos clientes no Brasil todo. A distribuição deles segue a do PIB (Produto Interno Bruto) e as condições de acesso à internet. Para alguém ser nosso cliente, precisa acessar a rede, ter smartphone e baixar nosso aplicativo. A Região Sul tem representatividade maior em termos de PIB e acesso à internet do que outros locais do Brasil. O Sul é quase 20% da nossa base de clientes.

Quantos funcionários o Nubank tem atualmente?

Hoje, são mais ou menos 1,1 mil funcionários. Uma curiosidade é que, em nosso prédio em São Paulo, a capacidade é para até 1,2 mil pessoas. Daqui a pouco, não será suficiente (risos). Por isso, já alugamos outro prédio, na mesma rua do edifício atual. Lá, o espaço é para mais 900 pessoas. A partir de setembro, nosso time estará dividido nos dois lugares.

O que é importante para uma empresa conseguir inovar?

Diversidade. Se o time de uma empresa tiver cinco pessoas com as mesmas experiências, não terá ideias diferentes. Muito do valor de uma empresa vem da diversidade. A criatividade e a inovação surgem com isso.

Qual o cenário para a empresa no segundo semestre? As incertezas das eleições podem ter impacto?

A empresa começou em 2013. Hoje, o país segue cambaleando para sair da recessão. Ou seja, nunca tivemos período de ventos a favor (risos). Até hoje, nosso negócio dependeu mais da insatisfação das pessoas com serviços financeiros.

leonardo.vieceli@zerohora.com.br- LEONARDO VIECELI

30 DE JULHO DE 2018

L.F. VERISSIMO

Gerúndio


No dia 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral não estava descobrindo o Brasil, estava a descobrir o Brasil. Um dos grandes mistérios da nossa história e da história da nossa língua quase em comum é: por que o gerúndio (forma nominal do verbo caracterizada pelo sufixo "ndo"), que quase não é usado em Portugal, é tão usado no Brasil? 

Já se disse que a diferença entre o português brasileiro e o português português é uma questão de tempo e de espaço. Os portugueses falariam como falam, correndo (ou a correr), comendo (ou a comer) sílabas, a trocar o gordo "o" pelo menos expansivo "u", porque lhes faltam o espaço e o tempo, que encontraram nas colônias, para palavras inteiras e dicção pausada. O português de Portugal seria uma língua apertada. Mas isto não esclarece o mistério do gerúndio.

Atribui-se a proliferação do gerúndio no português brasileiro à influência do inglês, que teria provocado o gerundismo, ou o hábito de empregar o gerúndio mesmo quando não cabe ou não se deve. Existe até um nome para o uso excessivo do gerúndio: endorreia. Uma palavra suficientemente horrível para fazer os portugueses se sentirem vingados por tudo o que fizemos com a língua deles. Digam o que disserem, de endorreia eles nunca sofreram.

Certa vez, em Portugal, assistíamos a cenas de morte e destruição em algum lugar do Oriente Médio pela TV do hotel sem entender por que o repórter no local só falava em turismo. Levamos algum tempo para nos darmos conta de que o repórter não estava sendo insensível, falando de frivolidades em meio à matança. Não estava dizendo turismo, mas terrorismo.

Outra vez, no Porto, fui entrevistado por uma TV local. Não tive dificuldade com a primeira pergunta, era sobre autores portugueses mais lidos no Brasil. "José Saramago", respondi, confiante. E não entendi mais nenhuma pergunta. Nenhuma. Em pânico, optei por uma tática suicida. Respondi "José Saramago" a todas as outras perguntas que me fizeram...

Deixei os entrevistadores impressionados com o prestígio do Saramago no Brasil e com a minha debilidade mental.

L.F. VERISSIMO

sábado, 28 de julho de 2018


28 DE JULHO DE 2018
LYA LUFT

Me ajuda a entender?


Anda difícil demais, nestes tempos, dar sentido a tantas coisas que nos acontecem. Digo "nos acontecem" porque tudo ou quase tudo deste mundo chega a nossa casa por TV, computador ou iPhone sempre que queremos... e queremos quase sempre.

Como agora, com a intensificação da coisa política, que sempre me assusta e intriga. Quem, como, quando, onde, e por que motivo? Quem vai melhorar a cidade, o Estado, o país, o mundo? Por todas as loucuras que se desenrolam onde menos esperávamos (tiroteio na civilizadíssima Toronto, gente morrendo assada na linda Grécia, comemorações na França virando pancadaria, o Japão morrendo de calor, nos Estados Unidos temos o Trump. Todo dia, dezenas de assassinatos aqui no Brasil, confusões jurídicas e políticas), cadê os líderes sensatos, poderosos, honradíssimos, cadê quem nos ajude a refazer este Brasil tão descosturado?

Não sei. Aliás, nunca soube e, quando acreditei, em geral, me desiludi. Mas continuo tendo esperança, e desejo, ardentemente, que a coisa melhore, que as pessoas parem de querer sair do país, que não fiquemos só nas mãos dos corruptos ou sonsos ou incompetentes. Perguntam se tenho preconceito contra política. (Uma de minhas netas, quando pequena, certa vez perguntou se eu tinha preconceito. Respondi, muito sincera, que sim, tenho preconceito contra mau caráter, falsidade e burrice. Devo ter outros, mas esses já me bastam.)

Sobre política, escrevi muito modestamente em Paisagem Brasileira: dor e amor pelo meu país. Prefiro falar de gente. O que não é menos complicado, mas aí eu me entendo um pouco mais. Porque gente sempre foi meu fascínio, objeto de meus tantos livros, de minha eterna contemplação e estranheza - porque gente é bicho muito esquisito.

E porque a vida é bela e difícil, ninguém controla a vida, isso a gente sabe. Mas podia ser um pouco menos enigmática. E eu gosto disso. Eu iria entregar ao editor meu primeiro romance, As Parceiras, então decidi tirar os parágrafos finais, muito explicativos. Vai ficar muito mais interessante, pensei. E foi, e causou aflição a muitos vestibulandos quando o livro esteve em lista de leituras obrigatórias. O não explicado, não entendido, exige que a gente aplique sensibilidade e intuição, com alguma liberdade: susto.

Pois então eu deveria, com tantos outros da minha raça mental ou emocional ou seja o que for, andar animadíssima. Porque quase tudo ao redor carece de significado tranquilizador. Os males pelo planeta se acumulam, o gigantesco iceberg na Groenlândia, a cessação ou não das tramas nucleares na Coreia do Norte, o misterioso veneno que alguém anda largando por ruas bucólicas da Inglaterra, as elucubrações trumpianas e os caminhos desta minha amadíssima pátria. Sem falar nas complicações da chamada "nova família", que parece de verdade mudar - mas as emoções humanas não mudam.

Enfim, alguém me ajude a entender o mundo, como minha mãe resolveu lindamente num certo momento em que, olhando as árvores do terraço de casa, escutando e vendo aproximar-se um vendaval com aqueles rumores das folhagens, ela botou a mão no meu ombro e disse: "Waldrausch": rumor do bosque. E achei lindo, e me emociono até agora. Mas e o mundo, o Brasil, e tudo, quem bota a mão no meu ombro e me ilumina?

LYA LUFT

28 DE JULHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Adoráveis malucos


A cena: o primeiro vinho da vida de vocês. Sentados frente a frente, cada um fala sobre as músicas favoritas, se prefere praia ou campo, se gosta de ler, se pratica esporte, se já morou em outra cidade. Sem esquecer o indefectível: qual o seu signo?

Ao fim da noite, haverá mesmo uma pista segura sobre as chances da relação? A gente pensa que sim, mas a vida mostra que nada disso interessa: nem o time que torce, nem se sabe cozinhar, nem se é de áries ou libra. Segundo o filósofo Alain de Botton, a gente deveria perguntar no primeiro encontro: qual é a sua loucura? Este seria um bom começo para avaliar se temos capacidade de segurar a onda do outro.

Não há como negar que somos todos meio esquisitos. Quem é que tem todos os parafusos no lugar? Combinado: ninguém. Então admitir isso seria um jeito mais honesto de iniciar uma história. O cara se abre: "Costumo fazer caminhadas durante a madrugada, preciso ficar totalmente sozinho no dia do meu aniversário, tenho um histórico de assédio moral que me perturba até hoje, fico meio enfurecido quando alguém insiste em saber sobre minha infância".

Sua vez de alertá-lo: "Não consigo ficar sozinha nem por cinco minutos, não posso engordar 200 gramas que fico sem comer por três dias, janelas abertas me causam pânico, desconfio que sou filha da minha tia".

Achou que iria ser facinho? Praia ou campo?

O ser humano, qualquer um, é um depósito de angústias, carências, traumas, neuras. Não somos apenas o nosso gosto para cinema, o nosso jeito de vestir, o nosso prato favorito - se fôssemos apenas isso, amar seria como jogar dominó. Mas o jogo entre dois amantes é mais complexo. Aos poucos, vão aparecendo os medos secretos, a dificuldade em lidar com certas emoções, a fixação em ideias estapafúrdias, o complexo de inferioridade, a ansiedade incontrolável, as perdas pelo caminho.

Nada disso é exatamente uma loucura, mas é um pacote existencial que é colocado no colo de quem deseja se relacionar conosco. A pessoa terá que amar não apenas nosso par de olhos verdes e nossa bicicleta na garagem, mas todas as estranhezas que cultivamos e a dor que tentamos subestimar.

O amor, em si, não é difícil. O amor é fácil. Difíceis somos nós. Somos uma simpática encrenca para quem se atreve a entrar na nossa vida e ficar conosco por mais de 10 dias, prazo suficiente para lembrar que perfeição não existe.

Alguém vai desistir de amar por causa disso? Ao contrário: o desafio é estimulante. Quase competimos para ver quem é mais maníaco, quem tem mais problemas familiares, quem se irrita mais com a rotina, quem explode mais - pra tudo terminar em chamegos embaixo do lençol, onde é obrigatório se entender.

Taí a graça e a desgraça de quem resolve dividir o mesmo teto, taí a bagagem surpresa que cada um traz de casa. Qual é a sua loucura? A minha, só conto depois do segundo cálice.

mar­thamedeiros@terra.com.br - MARTHA MEDEIROS

28 DE JULHO DE 2018
CARPINEJAR


O melhor amigo está namorando, o que faço? O grande desafio da amizade é ver o parceiro feliz e não se sentir deslocado. É quando o outro está amando e você não se vitimiza, não identifica o namoro alheio como uma ameaça à rotina ou como um roubo da cumplicidade.

Aguenta o ciúme e a inveja e não cobra absolutamente nada. Respeita o sumiço, o sequestro da paixão, o cativeiro da cama. Pois todo mundo desaparece no início de um envolvimento.

Entende o momento diferente do seu e que o amigo experimenta uma nova relação que exige exclusividade para dar certo.

Se antes vocês se telefonavam todo o dia, o amigo apaixonado ligará uma vez por semana. Se antes vocês batiam ponto num boteco, o amigo apaixonado deixará de beber. Se antes vocês se aventuravam juntos nas festas, o amigo apaixonado terá agora novos programas a dois. Se antes vocês não se largavam no WhatsApp, o amigo apaixonado estará off-line a maior parte das horas.

A mudança de hábitos não significa desprestígio, a transformação da rotina não é desimportância. Não estar mais sempre junto não desfaz a cola da intimidade. É um intervalo necessário para o autoconhecimento.

Há pessoas que se acham abandonadas, corneadas, excluídas e desenvolvem uma saudade histérica, possessiva, que pode levar a falar mal de quem não merece e destruir um companheirismo de muito tempo.

Não adianta realizar uma caça às bruxas e vodu. Não adianta fazer torcida para o término e avisar dos perigos. Não adianta vestir a roupagem pessimista e agourenta de urubu.

Talvez o mais complicado para os laços seja não falar do seu próprio sofrimento quando o amigo engata um romance, e somente partilhar a felicidade das confidências. E não jogar na cara a repentina conversão de objetivos, de um modo que soe como denúncia de uma hipocrisia. Natural que o amigo que festejava a solteirice agora pense em casar, previsível que o amigo que endeusava a independência agora queira filhos.

Apoiar as decisões durante a ausência é maturidade, gesto de nobreza reservado aos longevos álibis de nossa existência.

carpinejar@terra.com.br - CARPINEJAR

28 DE JULHO DE 2018
PIANGERS

Como criar um idiota


É um trabalho fácil que não exige tempo nem dedicação. Apenas péssimos exemplos. Comece se esforçando para ser um idiota, você mesmo. Desrespeite tudo. Tenha um bebê com uma pessoa de quem você não gosta. Assim que nascer, mostre aos outros dizendo: "Este vai ser comedor!". Deixe seu filho na frente do tablet desde cedo. Patati Patatá em looping no iPad, televisão durante o dia todo. 

Ofereça seu celular para seu filho ficar no YouTube, enquanto você cuida das coisas importantes da sua vida. Não perca tempo interagindo com o bebê. Não estimule, não crie conexões afetivas. Contrate uma babá. Se ela não puder dormir no serviço, contrate outra. Arrume uma creche que funcione no fim de semana. Você tem que descansar. Tenha pessoas para cuidar do seu filho o tempo todo. Esteja sempre ocupado.

Substitua sua presença por brinquedos. Dê tudo o que seu filho pedir. Use seu filho como sinal de status, mostrando a todos as roupas caríssimas que ele usa. Faça festas monumentais de aniversário. Não se envolva na escola do seu filho. Destrate garçons, motoristas e atendentes na frente de seu filho. Jogue lixo pela janela do carro. Beba e dirija. Dê um iPhone de última geração antes de ele completar 10 anos. Reforce sua aversão ao diferente, demonstrando nojo de qualquer pessoa que seja de outra classe social, tenha outra cor ou pense de forma diferente de você. Diminua as mulheres, com comentários e piadas.

Revolte-se com qualquer pessoa que avise que você está cometendo erros na criação de seu filho. Brigue com professores que ousarem dar nota baixa para seu pequeno gênio. Desafie psicólogos. Diminua a opinião de especialistas. Permita que ele tenha uma adolescência de excessos. Que beba cedo, seja o primeiro da turma a ganhar um carro, antes mesmo de completar 18 anos. Incentive-o a ser macho: que brigue em festas, ande armado, dirija em alta velocidade. Bata palmas quando destruir carros, atropelar pessoas, escapar de blitz. Desrespeite qualquer policial que tente punir seu filho. Pague as multas e as fianças.

Sustente seu filho até ele fazer 30 anos. Arrume um emprego pra ele na empresa. Coloque-o em um cargo de chefia. Entenda que todos tentaram ser injustos com ele, mas ele é uma pessoa boa. Tudo o que ele conseguiu foi por esforço próprio. Vai ser uma pessoa de bem, como você.

piangers@atlantida.com.br - PIANGERS


28 DE JULHO DE 2018
ENTREVISTA

O veredicto das mulheres

Conversamos com as três juízas à frente das associações de magistrados no RS sobre igualdade de gênero, feminicídio, aborto e reforma trabalhista

Pela primeira vez, as três entidades que representam os magistrados do Rio Grande do Sul são presididas por mulheres. A posse da juíza Rafaela Santos Martins da Rosa na Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs), no começo de julho, fechou a trinca formada pela juíza Vera Lucia Deboni, presidente da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul, e por Carolina Hostyn Gralha, da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região. Não é a primeira vez que uma mulher toma posse como presidente em nenhuma delas mas, considerando a discrepância entre o número de presidentes mulheres e homens em todas essas associações, é, de fato, simbólico que os mandatos dessas juízas sejam concomitantes.

São mulheres diferentes com trajetórias distintas. Quando entrou na magistratura em 1987, Vera Lúcia Deboni fazia parte dos 20% de juízas mulheres. Agora, a presidente da Ajuris lembra que, no Estado, as mulheres representam um total de 53% dos magistrados.

- Obviamente, isso veio acontecendo devagar, mas foi sem revés. Depois que começaram a aceitar as mulheres, e realmente foi difícil que isso acontecesse, não houve como voltar atrás. Hoje, dois dos maiores tribunais são presididos por mulheres - afirma, lembrando da ministra Cármem Lúcia, presidente do Superior Tribunal Federal, e da ministra Rosa Weber, à frente do Tribunal Superior Eleitoral.

Rafaela Santos Martins da Rosa e Carolina Hostyn Gralha, têm 12 e 13 anos de carreira, respectivamente. Reconhecem que fazem parte de outra geração, mas que algumas questões ainda se mantêm.

- Ainda é difícil de se aceitar a presença da mulher em um papel de liderança e confiança. Fica claro o quanto se identifica os papéis de poder com a figura masculina, e nós três chegarmos em 2018 sendo as representantes dos nossos juízes é uma virada de mesa - avalia Carolina.

A juíza Rafaela vê o momento como uma oportunidade para trabalhar as questões de gênero internamente:

- Conseguimos representatividade e estar em todas as instâncias, mas ainda existe uma diferença de tratamento quando é um juiz ou uma juíza falando. Acho que agora temos um papel importante nisso também, em trabalhar internamente, porque sabemos que, no seio das instituições, também há muito a ser feito.

E fora das instituições também: nossa vida é pautada por diversos temas que ganham ainda mais força por causa dessas questões de gênero. Aproveitamos o momento para ouvir o que as três juízas têm a dizer sobre assuntos que tocam a nossa rotina, como a diferença salarial entre homens e mulheres, feminicídio, aborto e reforma trabalhista.

CAMILA MACCARI, ESPECIAL

28 DE JULHO DE 2018
HORIZONTES

HORIZONTES



Gerações de fãs cresceram assistindo ao capitão Kirk e aos tripulantes da nave interplanetária Enterprise, na série Star Trek, materializarem no food replicator drinks e pratos elaborados em segundos. Embora as novas tecnologias ainda não permitam produzir instantaneamente bebida e comida ao toque de um botão, a realidade é que a impressão 3D de substâncias comestíveis, como chocolate e massas, já é uma ideia possível há alguns anos. Mais recentemente, no remake de outro clássico da ficção científica, a série Perdidos no Espaço, a espaçonave Júpiter 2 aparece equipada com uma sofisticada impressora 3D utilizada, já nos primeiros episódios, para produzir ferramentas, componentes da nave e até uma arma letal.

No mundo real, as oportunidades abertas pela popularização da impressão 3D e outras formas de fabricação digital são inegáveis, já que, por meio delas, processos avançados de manufatura, anteriormente só disponíveis em empresas de alta tecnologia, passaram a estar acessíveis a qualquer ser humano mortal.

Fala-se com entusiasmo, até certo ponto justificável, que o mundo testemunha, neste início de século 21, a Terceira Revolução Industrial, provocada pela crescente disseminação das ferramentas digitais. Diz-se que a partir de agora será possível produzir em casa grande parte dos objetos que anteriormente só se podia adquirir em lojas.

Os equipamentos que tornaram possível a realização dessa tecno-utopia são as máquinas de comando numérico computadorizado (CNC), que seguem, via de regra, o mesmo princípio tecnológico: guiar por meio de um computador os movimentos de um equipamento eletromecânico informatizado, com o auxílio de um software. Com base nesse conceito, máquinas de corte a laser, impressoras 3D e fresadoras, entre outros dispositivos, alimentam nos dias atuais a proposta de uma cultura maker, ou "cultura do fazer", que aparece como um revival da contracultura que, nos anos 1960 fez do "faça você mesmo" uma de suas marcas mais conhecidas.

As transformações causadas pela fabricação digital já são visíveis no dia a dia, por meio de objetos produzidos em espaços físicos apresentados como makerspaces, locais identificados com a cultura maker. Esses espaços são laboratórios (como os Fab Labs, rede mundial de fábricas digitais) dedicados a produzir diferentes tipos de inovação, relacionadas a imaginários utópicos, mas também ideologias nem sempre perceptíveis.

Um dos personagens centrais da Cultura Maker, Neil Gershenfeld, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e criador dos Fab Labs, afirma que a fabricação digital permitirá aos indivíduos projetar e produzir objetos tangíveis sob encomenda, onde e quando precisarem deles, concluindo que o acesso generalizado a essas tecnologias desafiará os modelos tradicionais de negócios, cooperação internacional e educação.

Apesar do entusiasmo que move os makers e as aspirações de Gershenfeld, no entanto, assiste-se também ao surgimento e ao crescimento em escala global daquilo que estudiosos chamam de "cyberproletariado". Nesse sentido, uma reflexão para o universo maker vem de um dos mais notáveis cientistas de todos os tempos, Stephen Hawking (1942-2018), que em um de seus últimos posts no site de mídia social Reddit.com comentou: "Todos podem desfrutar de uma vida de luxo e prazer se a riqueza produzida pelas máquinas for compartilhada, ou a maioria das pessoas pode acabar miseravelmente pobre. (...) Até agora, a tendência parece ser a segunda opção, com a tecnologia levando a uma desigualdade cada vez maior".

Desde 2016, São Paulo conta com a maior rede pública de laboratórios de fabricação digital do mundo, a rede municipal Fab Lab Livre SP. É interessante notar como a democratização do acesso às tecnologias avançadas presentes em locais como esse passou a ser encarada como um direito social adquirido. Essa iniciativa mostra-se como o primeiro e grande passo para a utilização dos laboratórios em sua, talvez, maior potencialidade: a inovação social participativa, descentralizada e articulada com outros atores do poder público e da sociedade civil.

Repensar o papel da tecnologia no contexto de países como o Brasil implica compreender como as ferramentas de fabricação digital podem coadjuvar processos sociais na solução de problemas reais que são, em grande parte, vinculados ao território e à escala local. Caso contrário, como reflete Gui Bonsiepe, um dos mais conhecidos designers e teóricos do mundo, referindo-se às impressoras 3D: "Não se pode excluir a possibilidade de que se termine em uma fabricação massiva de bibelôs".

Professor da Faculdade de Arquitetura da USP, coordenador do Fab Lab SP - PAULO EDUARDO FONSECA DE CAMPOS

28 DE JULHO DE 2018
SINGULAR

Onde fica o Cafundó


Aos pés da Serra de São Martinho, na Região Central, os cerros cobertos de mata retiram o horizonte da vista, e o emaranhado de estradinhas de chão abertas pelos imigrantes italianos da Quarta Colônia vai levando aonde nem Judas chegaria não fosse a ajuda de uma ou outra placa.

É o caminho do Cafundó, o Cafundó mesmo, de batismo oficial e escrito com o C maiúsculo, lugar onde a dona de casa Vera Quatrim Dal Molin, 55 anos, e o marido dela, o agricultor Dilmar Dal Molin, 49, escolheram para travar a luta diária pela sobrevivência. Trata-se de uma localidade dentro dos limites de Ivorá, município com pouco mais de 2,1 mil habitantes - a maioria deles na zona rural - a cerca de 50 quilômetros de Santa Maria. Não há quase nada por lá, o que talvez justifique o gracejo do nome, que foi, anos atrás, até motivo de vergonha para Vera.

- A gente achava ruim o nome, não gostava. Mas agora fiquei velha, não tenho mais vergonha. E foi aqui que, com honestidade e muito trabalho, criei meus filhos. Esse chão é meu, vou morrer aqui, por que ter vergonha? - ufana-se a mulher, no chalé de madeira ao sopé de um dos morros que compõem a paisagem.

A comunidade do Cafundó é uma espécie de resistência aos apelos da cidade e às dificuldades naturais do lugar. Não passa de duas dezenas de famílias, apostam os moradores, já que dados oficiais não dão conta do número atual exato da população. As plantações de milho, feijão, fumo e outras culturas assentam-se em peraus impiedosos que exigem dos moradores força nas pernas e serenidade para esperar que do terreno pedregoso germine fartura.

Vera já sofre as dores provocadas pelo esforço contínuo de apoiar no quadril os cestos com batata e alimentação dos animais no sobe e desce das trilhas íngremes. Esperar pela terra é a sina de quem se destina a existir por aquelas bandas, desde muito antes de os imigrantes italianos abrirem as primeiras picadas e linhas da Quarta Colônia.

O Cafundó, pelos registros históricos de Ivorá, foi ocupado por gente de São Martinho da Serra e Júlio de Castilhos, gente esta que fugia da violência da Revolução Federalista de 1893. Boa parte era formada por descendentes de portugueses, negros ou indígenas que habitavam as proximidades da sesmaria dos Mello, o grande proprietário da área de aproximadamente 3 mil hectares na época do Império.

- Os italianos não foram os primeiros a chegar no Cafundó, mas sim pessoas da região que queriam se esconder das lutas, daqueles tempos de degola nos campos mais altos. Só mais tarde é que os colonos começaram a adquirir essas terras, porque as áreas mais planas, das várzeas, já estavam ocupadas pelos alemães. Mas, desde aquela época, sempre foi um lugar escondido - conta o professor de História Sergio Venturini, um ivorense dedicado à memória do município.

Venturini explica que, muito antes da imigração de famílias italianas do Vêneto e de Friuli, em 1883, Cafundó e a comunidade de Barreiro, outra nos limites de Ivorá, registravam a presença de povos indígenas, que já tinham contato com o cristianismo por conta do primeiro período das reduções jesuíticas no Estado - a Redução da Natividade ficava onde atualmente é Júlio de Castilhos.

Acredita-se que esses locais periféricos da região tenham sido palco dos primeiros contatos entre imigrantes italianos e nativos. Inicialmente, os novos moradores vindos da Europa ignoravam costumes, língua e cultura dos locais, a quem chamavam, não importando se negros ou índios, de "nacionais", ou "brasileiros", por vezes, como uma maneira de distingui-los pejorativamente dos italianos.

Nas levas seguintes de novos proprietários de terras no Cafundó, estava a família do agricultor Alexandre Paulo Simonetti, 75 anos. Ele chegou ao local aos quatro anos, acompanhando os pais e outros 10 irmãos e de lá não arredou mais pé. Saíram da chamada Linha Simonetti, a oito quilômetros dali, em busca de mais espaço para plantar, ainda que o relevo acidentado pouco oferecesse a uma roça plana.

- Aqui, a gente planta com espingarda e colhe com o laço - diverte-se Simonetti, apoiando-se no ditado popular entre os colonos para explicar a dificuldade de se trabalhar naqueles terrenos.

O Cafundó já teve mais plantações e mais gente também. Muitos dos antigos moradores morreram e outra parte preferiu seguir rumo à cidade, num movimento que desfigura a vocação dos mais jovens para a vida no campo - não só em Ivorá, mas também em outras cidadezinhas da Quarta Colônia.

- As lavouras são limitadas, porque há muito cerro. Então, o pessoal vai embora por falta de condições - diz João Paulo Simonetti, filho de Alexandre e atual morador do centro de Ivorá.

Vera também lembra que, anos atrás, a localidade tinha mais atrativos. Vizinha da antiga "brizoleta" (a escola criada em 1960 por Leonel Brizola quando governou o Rio Grande do Sul de 1959 a 1963 e na qual ela estudou até a quarta série), a moradora recorda dos adjutórios, frequentes nas comunidades rurais e católicas da região, e das celebrações que reuniam gente de linhas vizinhas ao Cafundó em partidas de bocha e futebol. O período na escola era divertido e valorizado. Ivorá tem uma tradição em educação. Quando ainda pertencia a Júlio de Castilhos, foi o primeiro distrito do Rio Grande do Sul a ter uma escola pública com Ensino Médio.

A cidade é, pela forte tradição católica, um celeiro de padres. Por anos, funcionou no atual prédio da prefeitura uma espécie de pré-seminário para rapazes na modalidade de internato. O empreendimento foi idealizado por Monsenhor Busato, o primeiro pároco do município depois que a Capelania de São José do Núcleo Norte, antigo nome de Ivorá, tornou-se uma paróquia, em 1918.

A liderança religiosa de Busato, aliás, até hoje é motivo de controvérsia na comunidade. É venerado pelo espírito empreendedor e por obras que deixou na cidade, mas, ao mesmo tempo, retratado como um homem severo e implacável na disciplina de seus fiéis. Em seu livro Ivorá - Sangue Italiano na Quarta Colônia, Venturini descreve a figura do religioso como protagonista de episódios de violência, como uma bofetada em uma noiva e um pontapé, à porta da casa canônica, em um viúvo que havia casado novamente sem as bênçãos do pároco.

Monsenhor Busato também mantinha seu rebanho atento ao que chamava de "ameaça protestante". Em áreas de colonização alemã da Quarta Colônia, via-se as religiões protestantes ganharem força, e ele, orientado por circulares enviadas pelos bispos, deixava claro a excomunhão daqueles que se aventurassem longe da Igreja Católica. O povoado vivia, conta Venturini, sob o medo onipresente dos anos 2000, pois acreditava-se que seria o fim do mundo, do terceiro segredo de Fátima, à época não revelado pela Igreja, e do diabo.

- As pessoas tinham muito medo. Onde fosse, ele (Busato) queria saber se tinha gente fazendo reuniões dançantes ou culto protestante. Não se podia dançar. Enquanto o Monsenhor existiu, não se dançou em Ivorá. Teve gente que morreu sem nunca ter ido a um baile - conta o professor.

O Cafundó também entrava na área de jurisdição de Monsenhor Busato, mas por lá pouco se lembram dele. A herança educacional dos primórdios da cidade ficou relegada às lembranças. As crianças atravessavam o barro, encaravam o frio dos dias de inverno para aprender a "ler e fazer conta" e aproveitar a merenda, feita na instituição mesmo.

- A gente comia repolho temperado. Era bem bom. Sempre tinha - recorda Vera.

A brizoleta, oficialmente chamada Escola Municipal Senador Alberto Pasqualini, em homenagem ao político que virou o filho mais ilustre de Ivorá, quando teve as atividades escolares canceladas em 1995, tornou-se uma espécie de salão comunitário, onde ocorrem missas mensais, palestras e encontros da terceira idade, cada vez mais raros.

- Olha, era muito divertimento por aqui. Faziam as promoções na comunidade. Não tem mais nada disso. Por quê? Não sei. Só sei que era tudo diferente - lamenta Vera, em frente ao antigo colégio e ao campo de futebol tomado pelo mato.

O tempo no Cafundó passa devagar, marcado por verões escaldantes e invernos úmidos, entrecortados por um ou outro episódio rumoroso. Diferentemente das grandes cidades, a violência não faz parte do dia a dia de quem vive por lá. O que mais tira o sossego da Polícia Civil e da Brigada Militar são os abigeatos e os rebuliços por brigas em bailes do interior, mas, em 2012, um agricultor foi morto a pauladas em casa, vítima de latrocínio. Um ano depois, dois homens foram presos pelo crime. O assassinato brutal comoveu e assustou os moradores da localidade, desde então mais atentos ao movimento de estranhos que volta e meia cruzam por ali em busca de aventura.

Cafundó, além das gentes, esconde belezas naturais quase inexploradas pelo turismo. Há pelo menos duas cachoeiras na área, mas que ainda não integram roteiros turísticos. Ivorá tem mais de 30 cascatas e piscinas naturais que atraem visitantes para a área rural do município nos meses mais quentes.

- As cachoeiras do Cafundó têm acesso muito difícil, fica complicado de levar o pessoal lá por causa da falta de segurança e da trilha. É no cafundó mesmo - reforça Leandro Sarzi, engenheiro elétrico formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Sarzi diplomou-se e voltou para sua terra natal para abrir um comércio e se dedicar ao projeto Caminhos de Ivorá, que promove roteiros pela Quarta Colônia, incluindo a visita a pontos turísticos, como o Monte Grappa e a Cruz Luminosa, e almoços preparados por famílias de origem vêneta ou friulana.

O relevo da região atrai ao longo do ano grupos de trilheiros que encontram terreno ideal para o esporte. O Cafundó, por ser um cafundó, não está contemplado na programação oficial dos passeios, mas o entusiasmo de Sarzi em impulsionar o turismo local já vislumbra o potencial da localidade, banhada pelo Rio Mello, com cascatas escondidas e córregos.

Décadas atrás, atribuía-se ao nome dessa remota localidade qualquer infortúnio ou a ausência do progresso. Pensou-se até em trocá-lo, mas a falta de consenso entre moradores não só manteve a alcunha como também sequer conseguiu oficializar o nome de uma das sangas do lugar, deixando o curso d?água ser chamado ao gosto de cada um.

E não é que mais tarde foi justamente a denominação de Cafundó que deu fama ao lugarejo? Programas de TV de diversos lugares do país (incluindo o Fantástico, anos atrás), estudantes universitários em busca de um peculiar objeto de estudo, fotógrafos e repórteres aportam por lá para entender o lugar onde não tem quase nada aos olhos de quem pensa que tem tudo, mas quase tudo para quem, por opção ou destino, vive nesse esconderijo protegido pela natureza.

BRUNA PORCIÚNCULA - ROBINSON ESTRÁSULAS 

28 DE JULHO DE 2018
LEANDRO KARNAL

IMIGRAR



O Brasil é um mosaico. Houve migrações internas (grupos indígenas da Amazônia que desceram o litoral para o Sul); migrações forçadas (africanos) e migrações em busca de melhores condições de vida (como muitos europeus). Houve sentimentos variados: a vista do Pão de Açúcar na capital do império poderia representar o início desolador de um cativeiro brutal ou a promessa de uma nova chance social e econômica.

Entre os governos de D. João VI e de D. Pedro I, existiu a ênfase em atrair imigrantes de fala alemã. Os motivos eram variados: da necessidade militar de preencher os vazios demográficos da fronteira Sul até os declaradamente racistas como "branquear a raça".

Ocorreram experiências anteriores com suíços e alemães no Rio de Janeiro e na Bahia. A experiência mais bem-sucedida da primeira fase de imigração teutônica foi no Rio Grande do Sul. Um grupo de colonos partiu de Hamburgo para o Brasil e chegou a Porto Alegre em 18 de julho de 1824, ou seja, há exatos 194 anos. Na semana seguinte, chegou à Real Feitoria do Linho e Cânhamo, futura São Leopoldo. Trinta e nove "alemães" (não existia ainda a Alemanha como Estado) desembarcaram na margem do Rio do Sinos naquele dia 25 de julho que, desde então, passou a ser o Dia do Colono Alemão.

Nascido em São Leopoldo, fui educado na admiração a tais pioneiros corajosos que vieram desbravar os rincões do Sul. Em 1974, ano do sesquicentenário da data, encenou-se a chegada do grupo de argonautas loiros para aplauso dos seus descendentes. O nome da imperatriz Leopoldina, adepta do movimento, era lembrado entre fogos de artifício. O próprio topônimo, São Leopoldo, era uma homenagem a um imperador austríaco. 

Desde o início de 1974, o Poder Executivo no Brasil era liderado por um luterano, o segundo protestante a governar o Brasil, exatamente um descendente de imigrantes alemães, Ernesto Geisel. Tudo parecia ter lógica. Cantamos o hino que se iniciava com o verso: "Loiro imigrante só a natureza, te viu chegar para trabalhar aqui, e o gigante vale com certeza, se engalanou para esperar por ti". Eu estava lá e cantava no coro "Großer Gott, wir loben dich", um clássico Te Deum alemão que agradecia por todas as graças acumuladas.

Éramos pouco críticos em um momento pouco crítico. Ignorávamos as dificuldades, não aquelas que eram louvadas como uma prova de fogo para os imigrantes, mas outras igualmente graves. O agente da imigração para o Brasil (von Schäffer) recebia por cabeça, e tratou de pintar o quadro mais róseo possível aos candidatos no Porto de Hamburgo. Todos ganhariam terras imediatamente e teriam plenos direitos políticos. Não era um Mayflower puritano de "povo escolhido" que se inaugurava na travessia, mas um grupo agitado. 

Não havia apenas colonos. Foram recrutados soldados entre indivíduos que príncipes alemães queriam despachar para longe. Houve rebelião a bordo e até execuções. Chegaram 39 pessoas a São Leopoldo de maioria protestante (apenas seis eram católicos) e logo descobriram que as terras não estavam demarcadas, as sementes não tinham chegado e o voto era restrito a católicos. O paraíso era mais áspero do que fora apresentado. Em breve, em outras ondas migratórias, alguns colonos chegaram a enlouquecer em função das dificuldades, provocando proibição de novas levas para o Brasil da parte de alguns governos alemães.

Apesar de todos os desafios, o projeto continuou crescendo e se espalhando pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, serra fluminense e pelo Espírito Santo. Abaixo dos africanos e lusitanos, os alemães chegaram a ser o terceiro maior grupo de imigrantes para o Brasil.

O Brasil é um mosaico de imigrantes, eu disse à partida. Nenhum veio para cá por gozar de plena prosperidade na sua terra natal. A crise despertou o grosso do êxodo de italianos, portugueses, espanhóis, alemães e outros. Perseguições religiosas e restrições atraíram muitos judeus para o Novo Mundo. Quase todos aqui somos descendentes de imigrantes que saíram de situações ruins para sonhar do outro lado do oceano. Há pobreza, falta de perspectiva e perseguição na base das nossas árvores genealógicas. Quase sempre temos um miserável entre os ancestrais.

Ser descendente de imigrantes pobres deveria nos tornar muito receptivos aos novos grupos de pessoas em fuga. Especificamente, imigrantes atuais como bolivianos, venezuelanos e haitianos, que repetem o que nossos avós alemães, italianos, japoneses, portugueses e espanhóis fizeram. Nem sempre temos a solidariedade que nossa condição imporia. Pelo contrário, é comum que o imigrante da segunda-feira olhe o da quinta-feira como um invasor arrivista, um perigo. Acontece no Brasil. 

Acontece nos EUA, onde Trump, descendente de imigrantes alemães e casado com uma imigrante eslovena, aperta o cerco contra "forasteiros". Sempre me pareceu que, entre a utopia pouco praticável de escancarar fronteiras e a ideia de uma muralha xenofóbica, poderiam existir soluções equilibradas. Temos espaço no território. Talvez tenhamos pouco espaço nos corações. É sempre estranho que um ser humano possa ser ilegal no planeta Terra. Muita esperança para os imigrantes de ontem e de hoje.

LEANDRO KARNAL

28 DE JULHO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

A PRESSÃO DOS MAIS VELHOS



No passado, éramos condescendentes com a hipertensão arterial dos mais velhos. Na faculdade, aprendíamos que a pressão de 12cm x 8cm, considerada normal, deveria ser mantida até os 40 anos. Daí em diante, eram aceitos aumentos de 1cm para cada década de vida. Assim, entre 40 e 50 anos, os limites da normalidade se estendiam para 13cm x 9cm. Dos 50 aos 60 anos, até 14cm x 10cm; dos 60 aos 70 anos, até 15cm x 11cm; e dos 70 aos 80 anos, até 16cm x 12cm. Acima dos 80 anos, não havia regras nem pessoas que vivessem tanto.

Estudos posteriores comprovaram que limites tão frouxos tinham consequências. Mesmo nos mais velhos, níveis pressóricos acima de 12cm x 8cm estavam associados a aumentos da incidência de infartos do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais, insuficiência renal crônica e insuficiência cardíaca, entre outras complicações.

Publicações mais recentes sugerem que níveis de 11cm x 7cm são mais seguros do que os tradicionais 12cm x 8cm. Ficou estabelecida, então, a regra de que, quanto mais baixa a pressão, melhor, em qualquer idade.

Acaba de ser publicado um estudo realizado na cidade de Leiden, na Holanda, que questiona esse rigor no caso das pessoas mais velhas e mais frágeis. Os autores levantaram os níveis de pressão sistólica (máxima), as taxas de mortalidade e de declínio cognitivo em 570 mulheres e homens com mais de 85 anos, dos quais 44% recebiam tratamento medicamentoso anti-hipertensivo. Vários participantes estavam internados em casas de repouso, apresentavam déficit cognitivo e tomavam diversos medicamentos para outros agravos de saúde.

Os níveis de pressão sistólica foram relacionados com a mortalidade geral por qualquer causa e com as funções cognitivas avaliadas por meio da aplicação de um teste, o Mini-Mental State Examination. Para estimar o estado de fragilidade física, foi realizado o teste de "força de apreensão", no qual o participante comprime um pequeno dispositivo manual dotado de mola e uma escala que mede a força da mão empregada no aperto. Os autores excluíram os casos de morte no primeiro ano de seguimento, bem como os que já sofriam de doenças cardiovasculares.

Os dados revelaram mortalidade mais alta no grupo dos que tomavam medicamentos anti-hipertensivos e apresentavam pressão sistólica mais baixa. Para cada redução de 1cm na pressão sistólica, o risco aumentou 29%. Da mesma forma, esse grupo experimentou declínio mais rápido das funções cognitivas. A fraqueza muscular medida pelo teste de força de apreensão também esteve relacionada com o declínio cognitivo mais acelerado. Entre os participantes que não receberam tratamento anti-hipertensivo não houve associação direta com o aumento da mortalidade nem com o declínio cognitivo.

Portanto, reduzir a pressão sistólica com tratamentos agressivos nos mais velhos e mais frágeis pode ter repercussão negativa na mortalidade geral e na progressão do declínio cognitivo. É preciso levar em conta o estado de saúde e a cognição na indicação de hipotensores para os que passaram dos 85 anos.

DRAUZIO VARELLA