sábado, 14 de julho de 2012



15 de julho de 2012 | N° 17131

O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

A dor do ganso e o meu prazer

Sei do tanto que sofre o ganso para que os franceses preparem o patê de foie gras. Foie gras significa “fígado gordo”. Mas muito gordo: o fígado do ganso, que normalmente pesa 100 gramas, precisa ficar com um quilo. Dez vezes mais.

Então, os franceses obrigam o ganso a comer mesmo quando ele não tem fome, como fazem certas mães. Às vezes, enfiam-lhe comida goela abaixo por um cano. Cruel. Mas, quando me delicio com patê de foie gras, prefiro pensar que aquele ganso que me proporciona tal deleite na verdade se tratava de um glutão. Ele adorava comer, feito um Faustão, e os franceses apenas lhe cumpriram os desejos mais recônditos.

Discorro sobre o patê porque, de todas as iguarias francesas, essa é a minha preferida. Em cada 14 de julho, no aniversário da Queda da Bastilha, data nacional da França e da Revolução que criou o conceito de nação e que trocou a fidelidade ao rei pelo amor à pátria, em cada 14 de julho, como o deste sábado, brindo aos gauleses com um tinto capitoso e um inefável patê que até pode não ser de foie gras, se sentir pena do ganso falecido, mas será sempre patê.

Sofisticadas como o foie gras: as francesas Marion Cotillard, Alizée e Charlotte di Calypso, Aurélie Claudel e Léa Seydoux, Bérénice Marlohe e Melanie Laurent

  
Um símbolo

O patê é um símbolo do que a França tem de melhor, por ser, ao mesmo tempo, simples e requintado. Eis o grande mérito dos franceses em todos os tempos: eles não confundem sofisticação com luxo. O luxo é o excesso, é o exagero. A sofisticação, ao contrário, é comedida e suave. Veja a beleza de algumas mulheres francesas nesta página. Veja a cantorinha Alizée em sua fresca juventude, veja a atriz Bérénice Marlohe, uma mulher que leva dois acentos no nome e que alcançou com garbo a maturidade dos seus 33 anos. Veja-as todas: são delicadas e refinadas como... como... o patê.

Decapitadores

O patê foi criado por um cozinheiro francês exatamente na década da Revolução, por volta de 1780. Como era um prato nobre, os revolucionários não devem tê-lo experimentado. Até porque os revolucionários eram um tanto mau-humorados. Robespierre, o “incorruptível”, vivia com prisão de ventre, ao ponto de ser apelidado de “o incorruptível verde-mar”, devido ao tom da sua pele. Marat, enquanto o patê estava sendo concebido na cozinha de um palácio, refugiava-se da polícia embrenhando-se nos famosos esgotos de Paris, onde contraiu uma incurável doença de pele.

Marat era torturado por coceiras incessantes. Para se aliviar, passava o dia dentro de uma banheira cheia d’água temperada com essências medicinais. Nessa banheira, uma mulher o assassinou enfiando-lhe uma lâmina de 15 centímetros na carótida. Já Camille Desmoulins era aflitivamente gago. Por algum motivo, sua gagueira só passava quando ele discursava, inflamando o populacho. Seu primeiro discurso foi, justamente, em 14 de julho.

Por que eram tão ferozes os revolucionários? Por que decapitaram o rei e a rainha? Porque jamais provaram das amenidades do patê. Uma saudação a eles, na data máxima da França.

O assalto

Kléber estava decidido: mataria o primeiro que o atrapalhasse. Já havia liquidado três, mais um não faria diferença. Assaltaria o mercadinho de qualquer forma, ninguém o impediria. Sabia que o gringo guardava uma pequena fortuna embaixo do balcão, já o vira enfiando dinheiro ali. Passara alguns dias observando o lugar e agora era a hora. Engoliu duas doses de cana para ganhar coragem, e foi.

Enquanto atravessava a rua, sentiu na mão o frio do aço da pistola que escondia no bolso da jaqueta. Era uma tarde gelada de inverno, quem se aventurava a sair pela rua andava encolhido, mas o calor da determinação espalhava-se por seu corpo e o tornava feroz, e fazia dele fera.

Entrou no mercado e deslizou até o fundo, onde ficava a mercearia. Pediu uma meia lua de queijo da colônia e uma perna de salame que pendia do teto. Com o canto do olho, vigiava o movimento dos fregueses. Havia duas mulheres no caixa. Parou diante dos vinhos para esperar que saíssem. Escolheu um tinto da Serra. Dirigiu-se vagarosamente para o caixa. As mulheres se foram. Só restavam ele, o gringo na mercearia e a menina do caixa. A ideia era dominar a funcionária, chamar o gringo até o caixa, pegar o dinheiro, prendê-los no banheiro e sumir dali. Se a menina gritasse, levava bala; se o gringo reagisse, levava bala.

Chegou ao caixa respirando fundo, as mercadorias nos braços. E então deparou com aquilo: as maçãs do rosto da funcionária. Ela estava corada, e o rubor de suas faces lhe destacava o verde dos olhos. Era uma loirinha muito branca, muito jovem, devia ter uns 17 anos, talvez fosse filha do gringo. O coração de Kléber deu um salto de emoção ao avistá-la. Ela olhou para ele, sorriu o sorriso mais cândido, mais inocente, mais puro da cidade e brincou:

– Vinho, queijo e salame... O que mais alguém poderia querer para um dia frio como hoje?

Kléber sorriu de volta.

– Uma boa companhia – ronronou, já amolentado pela paixão. – Era isso que eu queria, para dividir comigo esse vinho, esse salame e esse queijo, num dia frio como hoje.

Ela ficou ainda mais vermelha. Olhou para baixo, envergonhada. Kléber pagou a conta e saiu, não sem antes dar uma olhada para trás. Decidiu que se tornaria cliente daquele mercadinho. Um bom cliente, sim, senhor.

O QUE LER

Teria muito a escrever sobre Will Durant, e escreverei. Durant, se não é o meu historiador preferido, é um dos. Sua obra monumental ele compôs, toda, em parceria com a mulher, Ariel. Formavam mais do que um casal: faziam uma dupla. Trabalhavam juntos, viviam juntos, partilhavam as ideias e os dias.

Dessa união foram gerados dois filhos e dezenas de livros. Um deles, A História da Filosofia, discorre sobre os filósofos e seus sistemas de pensamento em um estilo que prova que a simplicidade pode ser requintada. Transformou-se em best-seller nos Estados Unidos exatamente por levar a filosofia para o leitor não iniciado.

A Janine Mogendorff, editora da L&PM, contou-me uma bela e triste história sobre o casal Durant. A seguinte: um dia, já velhinho e doente, Will foi hospitalizado. Enquanto estava em tratamento, Ariel morreu. Os filhos, temendo que ele piorasse com a notícia, preferiram não lhe contar nada. Mas esqueceram que havia TV no quarto, e foi pela TV que Durant ficou sabendo da morte da sua querida esposa.

No dia seguinte, morreu também. Permaneceram unidos até o fim.

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