sábado, 21 de maio de 2022


21 DE MAIO DE 2022
J.J. CAMARGO

QUANTA CORAGEM É POSSÍVEL TER?

"Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro." (Sigmund Freud)

Reiteradas vezes se disse, e com razão, que quando estamos felizes rimos das mesmas coisas, muitas delas tolas, porque a felicidade é monótona no jeito de se expressar e menos criativa do que a amargura em se expor.

Isso explica, em grande parte, a efervescência criativa e inspiradora do artista durante suas crises existenciais, e a inércia assumida na calmaria. Segundo Ariano Suassuna, tudo que é bom de viver é ruim de contar, tudo ruim de viver é bom de contar, e ninguém passaria da terceira página de um romance que descrevesse, dia após dia, a felicidade de um casal perfeito.

Em contrapartida, o sofrimento caótico desperta o que temos de melhor ou pior, e não conseguimos conter o que sentimos, porque é na essência o que somos, sem filtros para evitar o ridículo que conseguimos ser ou o virtuoso que adoraríamos aparentar. Mas nesse transe nunca somos iguais e raramente nós repetimos.

Alguns, os frouxos, se excedem na vileza, choramingam e quase miam no relato de uma dor qualquer, que por ser propriedade dele é, por suposto, única e inexcedível.

Outros, os estoicos, se revelam contidos, conscientes de inutilidade da queixa transferida a quem só exercitaria a impotência, e do desperdício de autoestima na exposição fútil do nosso quinhão de sofrimento. Na oncologia, como em nenhuma especialidade, os dois modelos se expõem, irreprimíveis. Mas também em outras situações terminais a resiliência ou a falta dela se revelam.

O Ramiro era descendente de espanhóis de Oviedo que emigraram nos anos 1950 para o Brasil, onde aportou sem custos, trazido no útero da mãe.

Grande fumante, só percebeu que era hora de parar quando a reserva bateu em 40%, nesta grande arapuca à espera dos incautos fumantes que nunca percebem a falta de fôlego antes de terem destruído 60% do órgão, que tem uma reserva maravilhosa.

Vítima de uma doença progressiva, quando baixou de 20% do valor presumido foi encaminhado para avaliação de transplante, uma indicação reservada à minoria de ex-fumantes que preservam os outros órgãos intactos.

Ao iniciar os exames, a primeira recomendação, típica de quem não abre mão do comando: "Quaisquer que sejam os resultados dos exames, a conversa é comigo".

Não sei quanto havia de premonição naquele pedido, mas se a intenção era proteger a família, a recomendação fez todo o sentido.

Chegando aos 70 anos, com doença vascular difusa e disfunção hepática e renal, o transplante estava contraindicado. Ele ouviu silencioso e impassível as razões da negativa e permaneceu por um tempo assim, olhando o vazio, enquanto as más novas eram metabolizadas. Depois, suspirou e retomou o leme:

- Vamos manter esta notícia entre nós. Minha família depende muito de mim e eu preciso de tempo para prepará-los. Eles sempre só souberam ser felizes, e não faz sentido que comecem a aprender tristeza, justo quando não podem ajudar. Então vamos poupá-los, por enquanto. Quanto a mim, prometo que, se o senhor me ajudar, eu seguro as pontas!

Talvez não haja maior expressão de coragem do que poupar seus amados do sofrimento extemporâneo e inútil.

J.J. CAMARGO

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