01 DE DEZEMBRO DE 2018
J.J. CAMARGO
DOS NOSSOS LIMITES
A percepção de que se morre aprendendo tem seu lado bom, que nos empurra em direção ao novo, e este é um dos poucos estímulos que resistem à velhice: nunca sabermos tudo. E tem seu lado ruim, que é conviver diariamente com a nossa inevitável propensão ao erro, que, além de massacrante, consegue ser cruel, como quando percebemos que estamos repetindo erros antigos.
Em se tratando de ciências biológicas, ainda há uma imensidão de variáveis, muitas aleatórias e imprevisíveis, todas elas aparentemente concebidas para alimentar uma virtude: a humildade. Quem erra, como todos os normais, mas ainda assim conserva intacta a soberba, tem um problema sério, de difícil classificação, que presume-se, transita entre o narcisismo exacerbado e a idiotia exuberante.
Quando era jovem, percebi que as doenças se repetiam, mas que seus donos eram de uma variedade imensa. Ainda assim, alimentei a ilusão de que era possível me tornar um conhecedor de gente, se prestasse atenção nas pessoas. Adiante, percebi que não seria o suficiente, apesar de nunca ter desistido de tentar. Mas duas grandes lições estavam à minha espera:
u É possível alguém normal desistir da vida. Nada mina mais completamente a vontade de viver do que a percepção de que, independentemente de quem tenha sido a culpa, ele nunca teve, ou teve e perdeu, a reciprocidade de afeto. A vontade de seguir lutando pela vida até o limite é uma exclusividade dos que gostam de afofar porque têm alguém que lhes afofem.
Minha experiência inicial com candidatos ao transplante de pulmão, uns sofredores crônicos que eu imaginava que aceitariam qualquer desafio para voltar a respirar, várias vezes bateu de frente com uns tipos amargurados, para os quais o roteiro de sacrifícios não se justificava. Mais do que se isso, opunha-se a um sentimento que lhes tomara o espírito nos últimos tempos: estavam a caminho de se livrar, por uma causa natural, de uma vida miserável da qual eles tiveram desejo, mas não coragem, de fugir pelo suicídio. E então quase festejavam a proximidade do alívio sem culpados.
u Desejar a morte de um ser amado pode ser um gesto de compaixão. Todos nós consideramos razoável o sofrimento que tenha outro objetivo que não seja morrer. Seu Antonio era um português de olhos azuis, mansos e tristes. Com os pulmões destruídos por enfisema, tinha aquela fragilidade que anuncia um cadáver adiado. Qualquer mudança de temperatura, e lá vinha a dona Josita empurrando o carrinho do oxigênio que seu Antonio usava 24 horas por dia. Quando pensávamos que aquela seria a última internação, ele ressuscitava e, depois de uns dias, recebia alta hospitalar. A falta de entusiasmo da esposa arrumando a maleta foi o meu primeiro desconforto. Dias depois, estava de volta o Antonio, sua respiração estertorosa e uma expressão de sofrimento tão grande, que era difícil ficar por perto, por quanto o convívio significava um insuportável exercício de impotência médica. Naquele dia, na readmissão, a Josita me abraçou e disse: "Como ele está mal, não é, doutor? Acho que, desta vez, ele não escapa!".
Lembro da náusea que senti. Tinha aprendido a gostar muito do Antonio e fiquei chocado que justo sua mulher estivesse lhe desejando a morte. Meses depois, encontrei o filho único do casal, que me contou: "Minha mãe adorava meu pai, que tinha sido o seu primeiro namorado. E sofria tanto com a doença dele que, no inverno passado, ela me confessou que, durante as crises de falta de ar, pedia a Deus que o levasse, porque, sendo um homem tão bom, não merecia sofrer para morrer. Com a morte dele, ela ficou completamente perdida. No mês passado, ela morreu, sem doença que se soubesse. Acho que de tristeza!".
J.J. CAMARGO
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