quinta-feira, 2 de agosto de 2018


02 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

Pode confiar no garçom


O Dinarte vai deixar de ser garçom. Não sabe quem é o Dinarte? Falha grave. Dinarte é um garçom histórico do Bar do Beto. Escrevi sobre ele, certa feita. Contei que, uma noite, eu e o Ivan Pinheiro Machado fomos jantar no Beto. O Dinarte veio nos atender e perguntei o que havia de bom para comer. Ele:

- Tem um tomate aqui que está ma-ra-vi-lho-so!

Tomate? Nunca um garçom tinha me sugerido tomate. Óbvio que pedimos o tal tomate. E não é que estava bom mesmo?

Tenho apreço especial pelos garçons. Muitos se converteram em afetuosos amigos meus. Muitos me salvaram de situações pedregosas. Porque o garçom não é apenas o profissional que transporta a sua comida da cozinha para a mesa. Não. O garçom é um cúmplice. Quantos pecados ele testemunha na noite? Quantas negociatas? Quantas infidelidades? E ele apenas cala. O bom garçom tem a ética do padre.

O meu amigo Fernando Eichenberg, o Dinho, valeu-se especialmente da solidariedade típica da categoria. Certa feita, ele se enamorou por uma graciosa moça que frequentava o Birra & Pasta, restaurante que fez história no Shopping Praia de Belas. O Birra & Pasta era da Eleonora Rizzo, que abria as portas para nós, da Zero Hora, mesmo depois da última curva das madrugadas de sexta-feira, quando o shopping já estava fechado. Numa dessas sextas, o coração do Dinho foi despedaçado pelo olhar verde da tal moçoila. Ele saiu do bar aflito. Precisava vê-la de novo, precisava tentar conquistá-la. E, para isso, chamou os garçons do Birra, deu a cada um seu cartão de visitas e implorou:

- Quando ela aparecer aqui, por favor, me liguem.

Eles ligavam. E o Dinho, estivesse onde estivesse, na situação em que se encontrasse, saía correndo e ia para o Birra & Pasta, onde suspirava entre chopes e fettuccines ao pesto.

Uma vez, disputamos um clássico de futsal contra o time dos garçons da antiga Calçada da Fama. Como eles só podiam jogar depois do trabalho, a partida foi realizada entre 3h e 4h da madrugada, numa quadra perto da Farrapos. Algumas das nossas namoradas da época não acreditaram que íamos praticar o nobre esporte bretão nesse horário e nesse local suspeitos, mas era verdade. Aliás, goleamos os garçons implacavelmente e depois fomos comemorar com chopes servidos por outros garçons.

Claro, há também as garçonetes. Havia uma, no velho Dado Bier, que arrebatava as paixões de todos os clientes com sua beleza longilínea. Pelo menos dois lhe fizeram até proposta de casamento. Mas ela se mantinha inatingível. Esquivava-se de todas as abordagens com a mesma elegância atlética com que equilibrava a bandeja.

Garçonetes suportam com mais doçura as inconveniências notívagas. Um dia desses, escreverei sobre a luz benevolente dos olhos de Jaque e sobre o sorriso compreensivo de Maria, que resistem por horas infindáveis até a nossa mesa se esvaziar, e a nossa mesa é sempre a última a se esvaziar. Mas isso fica para um dia desses. Agora, o que interessa é que a noite está perdendo um de seus personagens. O Dinarte se formou em Direito e decidiu que exercerá tão somente sua nova profissão.

Decerto será um bom advogado. Porque, tendo sido garçom, tendo se formado nos eflúvios das madrugadas, o Dinarte estará abastecido da maior qualidade de que pode dispor alguém que lida com os conflitos humanos. Uma qualidade cada vez mais rara e, por isso, cada vez mais preciosa nos dias de hoje. A tolerância.

DAVID COIMBRA

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