22 DE AGOSTO DE 2018
NÍLSON SOUZA
Os instintos e a serpente
Aquele pedaço de papel manuscrito salvou o meu dia. Estava colocado sob o limpador do para-brisa de um carro estacionado nas proximidades do restaurante onde almocei, no último domingo. Por curiosidade, li o que estava escrito:
- Encostei no seu carro. Fulano de tal, telefone tal.
O carro branco tinha pequenos riscos no para-choque traseiro, provavelmente resultantes da manobra malfeita pelo motorista que tentou estacionar ao lado. A demonstração de honestidade me comoveu. Num estacionamento praticamente deserto, sem câmeras de vigilância, o homem teve o zelo de descer do carro e escrever o bilhete improvisado para o desconhecido que involuntariamente havia prejudicado. Tive a tentação de anotar o telefone para cumprimentá-lo e sugerir que se candidate a algum cargo público futuramente.
Precisamos de gente assim na administração do país.
Escrevi que o papel salvou o meu dia porque estava amargurado com a notícia da véspera sobre a expulsão de venezuelanos em Roraima. Quando tomo conhecimento de uma barbárie praticada por pessoas comuns, me lembro do deputado Roberto Jefferson, delator do mensalão. No seu célebre depoimento à Comissão de Ética da Câmara, em 2005, ele se dirigiu ao ex-ministro José Dirceu e disparou:
- Eu tenho medo de Vossa Excelência porque Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos.
De vez em quando, também sou tomado por esse temor de que todos nós, por mais civilizados e pacíficos que pareçamos, guardamos no recôndito de nossas almas instintos capazes de nos transformar em feras e até mesmo em fascistas covardes. Sim, pois os pacaraimenses que incendiaram barracas e colchões de refugiados, expulsando-os da cidade, não devem ser muito diferentes dos demais brasileiros. Acredito que foi, principalmente, o medo que os levou à selvageria - o medo de estrangeiros que, impulsionados pela necessidade de sobrevivência, invadem suas ruas e praças, disputam seus espaços e empregos e ajudam a puxar para baixo os indicadores de qualidade de vida.
O pretexto do assalto ao comerciante brasileiro por venezuelanos não se sustenta. Ainda que tal crime tenha ocorrido, é injustificável a truculência contra famílias inteiras de imigrantes que nada tinham a ver com o episódio. O que houve em Roraima foi uma manifestação pública da xenofobia latente e visível também em outras áreas do país ocupadas por estrangeiros.
A onda de refugiados do século 21 é um desafio para a humanidade e para o humanismo que nos transpôs da Idade Média para a Idade Moderna. O episódio de Pacaraima evidencia acima de tudo a inépcia das autoridades na prevenção de um conflito que pode se alastrar pelo país, com um componente individual preocupante: o desapreço à generosidade e à compaixão. Numa escala mais ampla, essa insensibilidade pode produzir o efeito ainda mais perverso de facilitar a ascensão ao poder de governantes autoritários. A serpente da hora chama-se xenofobia.
NÍLSON SOUZA
Nenhum comentário:
Postar um comentário