quinta-feira, 21 de março de 2013


PASQUALE CIPRO NETO

'Rastreamento de ligações...'

Esse desvio torna-se mais comum à medida que aumenta o número de 'penduricalhos' do núcleo

NA SEMANA passada, durante o julgamento de Mizael Bispo de Souza, um site de notícias publicou o seguinte título: "Rastreamento de ligações de Mizael contrariam suas falas".

Se o caro leitor vasculhar questões elaboradas pelas bancas de importantes vestibulares e concursos públicos do país (a começar pelo da Unicamp, por exemplo), verá que volta e meia se pede a análise de fatos linguísticos como o que se vê no título citado. Os itens da questão seriam mais ou menos estes: 1) Há uma forma inadequada no trecho transcrito. Identifique-a. 2) Qual é a forma que deveria ter sido empregada? 3) Há um motivo para esse tipo de desvio. Comente.

É bem provável que o caro leitor e boa parte dos alunos que respondem a esse tipo de questão acertem de bate-pronto os dois primeiros itens da questão; o terceiro item talvez cause alguma dificuldade.

Pois bem. A forma inadequada é "contrariam", que deveria ser substituída por "contraria", já que o núcleo de "rastreamento de ligações" (sujeito da oração) é "rastreamento", e não "ligações". Como se sabe, grosso modo o verbo concorda com o núcleo do sujeito, e não com os seus "penduricalhos".

E o terceiro item, de longe o mais importante da questão? Qual será o motivo do "desvio"? O motivo é simples: temos aí o fenômeno da contaminação ou o efeito da proximidade etc., que explicam muitos dos fatos da língua. Quando diz ou escreve "Rastreamento de ligações de Mizael contrariam suas falas", o falante se deixa levar pela proximidade de "ligações" com o verbo, ou seja, leva em conta o elemento mais próximo do verbo para estabelecer a concordância.

Isso explica o desvio, mas não o legitima, como se depreende do próprio enunciado proposto pelas bancas ("Há uma forma inadequada..."). De fato, no padrão formal da língua, construções como a que analisamos não ocorrem ou, se/quando ocorrem, decorrem de cochilos, aos quais todos estamos mais do que sujeitos.

Esse desvio torna-se mais comum à medida que aumenta o número de "penduricalhos" do núcleo do sujeito flexionados no plural. Se a pressa é o motor da redação, então, a coisa se agrava. De fato, nos textos publicados pelos mais diversos meios de comunicação, não faltam exemplos de construções como "O custo dos alimentos industrializados produzidos com grãos subiram 10% no mês passado" ou "O valor dos aluguéis de apartamentos pequenos situados nos bairros centrais das grandes cidades brasileiras aumentaram muito no semestre passado".

O caro leitor percebeu onde está o nó em cada uma das frases? Na primeira, o redator se deixou levar pela interminável lista de "penduricalhos" do núcleo do sujeito, todos no plural. É como se houvesse um diabinho na orelha do redator repetindo sem parar algo como "Ponha o verbo no plural!". E o diabinho ganha a parada. A forma inadequada é "subiram", que deve ser trocada por "subiu", em concordância com "custo", núcleo do sujeito: "O custo dos alimentos industrializados (...) subiu...".

No segundo caso, o cochilo é semelhante, já que o verbo ("aumentaram") foi indevidamente posto no plural, por influência da também enorme lista de "penduricalhos" do núcleo do sujeito. A forma adequada é "aumentou", em sintonia com o núcleo do sujeito ("valor"): "O valor dos aluguéis (...) aumentou...".

A esta altura, talvez alguém esteja dizendo que esse tipo de desvio não muda o preço do feijão, ou seja, não prejudica ou impede a compreensão do texto. Sim, isso é fato, mas o emprego da forma adequada não revela apenas um mero acerto "gramatical"; revela uma das faces do domínio da estrutura da frase. Não me parece necessário explicar os benefícios decorrentes desse domínio, certo? É isso.

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