01 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA
Os sete pecados mortais de Porto Alegre
Os poderes Legislativo e Judiciário despenderam grande energia no debate acerca do nome da principal avenida de acesso a Porto Alegre. Era Castelo Branco, virou Legalidade, voltou a ser Castelo Branco e parece que disso não sai mais.
Esse é o problema de dar às ruas nomes de pessoas. Nunca haverá unanimidade a respeito das pessoas. Mesmo os caras mais legais, como eu, por exemplo, podem ser odiados. Sim, acredite, há quem queira me arrancar o rim, e esse rim me faria enorme falta.
Talvez os antigos fossem mais inteligentes nesse quesito: eles nomeavam as ruas de acordo com o costume popular. A Rua da Ladeira era chamada assim porque, bem, ela É uma ladeira. Só não entendo por que não lhe deram um nome genuinamente gaúcho: Rua da Lomba. Agora é General Câmara, e está muito bem, porque trata-se de um ilustre antepassado da Marcinha e do Bernardo.
Aliás, jamais chamei a Rua da Praia de Rua dos Andradas. Mesmo que não haja mais praia na rua, ainda há a sua história. Você leu o ótimo Anedotário da Rua da Praia, de Renato Maciel de Sá? Leia se quiser conhecer um pouco da história da cidade. Aí você concordará comigo que aquela rua tão vilipendiada pelo descaso do poder público, o coração de Porto Alegre, a rua mais importante do Rio Grande do Sul, só pode se chamar Rua da Praia.
Os nomes antigos tinham mais charme. A atual General Cipriano, uma lomba (vá lá, ladeira), que desce ingrememente da Duque para a Washington Luís, chamava-se Rua da Cova da Onça, porque, nos primeiros tempos da Leal e Valerosa, uma onça vivia nas imediações. À noite, os moradores ouviam o rugido do bicho e trancavam-se em casa, assustados. Imagine o absurdo: houve um tempo em que os porto-alegrenses tinham medo de sair às ruas. Para resolver aquele terrível problema de segurança pública, o governador mandou vir de Viamão dois valentes caçadores, que emboscaram a onça e a mataram a tiros de arcabuz. O couro pintalgado da bichana foi exposto em praça pública, e a população ficou aliviada.
Trocar Rua da Cova da Onça para General Cipriano é uma melancólica falta de imaginação. Mas é assim: basta o sujeito ser general para virar nome de rua. Um deles, Bento Martins, roubou o nome da Rua dos Sete Pecados Mortais, porque lá existiam sete casinhas em que mulheres generosas faziam sexo a soldo.
Por favor! Rua dos Sete Pecados Mortais titila a imaginação! General Bento Martins, francamente.
Porém, quero deixar claro que nada tenho contra os generais Cipriano e Bento Martins ou quaisquer outros que hoje sejam ruas e avenidas. Eles certamente exerceram com excelência o ofício de general. Ou seja: devem ter matado muita gente. A questão não é essa. A questão é que a tradição popular é mais rica do que a ânsia de bajulação das classes que eventualmente comandam a cidade.
A Praia de Belas já foi o Caminho de Belas. Há certa polêmica entre os historiadores a respeito, mas dizem que naquela região morava um homem com esse sobrenome. E ele, é claro, caminhava por lá. Assim, virou o Caminho de Belas. Semelhante ao que aconteceu na distante Alemanha, no também distante século 18, na velha cidade de Königsberg, onde vivia o filósofo Immanuel Kant. Ele era um homem metódico: passeava todos os dias pelo mesmo trajeto, no mesmo horário. Era tão pontual, que os moradores acertavam seus relógios ao vê-lo passar. Fez isso até o fim da vida e, por isso, a alameda por onde andava até hoje se chama O Passeio do Filósofo.
Não é bonito?
Gostaria de saber quem foi o Belas que caminhava por aquele local onde hoje se eleva um grande shopping center.
A cidade é um corpo vivo. Ela cresce, se desenvolve, se modifica, às vezes se degenera. Suas ruas têm histórias a contar. Quando o nome de uma rua ou de um logradouro qualquer conta uma história, reforça a sua identidade, torna-se real, torna-se importante. Disputas ideológicas entre vereadores não constroem a personalidade de um lugar. A tradição popular, sim. As lideranças da cidade têm de tornar oficial o que o povo consagrou. E só. O resto é política. Vã política.
DAVID COIMBRA
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