sábado, 4 de agosto de 2018


04 DE AGOSTO DE 2018
CARPINEJAR

Carro dos Zé


Meu amigo Zé queria vender o seu Santana branco, 1987.

Até que recebeu uma ótima proposta de compra. O valor superava as suas expectativas. Era alvo da obsessão de um colecionador, que não mediria esforços para concretizar o acerto. Bastava somente acenar afirmativamente a cabeça e selar o interesse com o cumprimento.

Só que Zé lembrou que era o carro dado pelo seu pai falecido, também Zé.

Lembrou que eles brincavam que era o veículo dos Zé.

Lembrou que não tinha outra herança paterna tão significativa.

Lembrou que esse caixão não deixaria a terra levar.

Lembrou que ele conhecia o mal-estar das estradas pelo ronco do motor.

Lembrou que cursou uma universidade inteira indo e voltando naquela carroceria.

Lembrou que assimilou ali macetes do volante, como dirigir na banguela.

Lembrou que começou e desfez namoros em seu banco cinza.

Lembrou da quantidade de tempestades e geadas que atravessaram juntos.

Lembrou que já foi ao Rio de Janeiro com amigos, em madrugadas viradas.

Lembrou que é o único lugar de sua vida que ainda tem toca-fitas.

Lembrou que o vidro não é automático e o quanto gostava de certas operações manuais, como girar a manivela para receber o vento na cara.

Lembrou que apenas não desaprendeu a rezar porque sempre tem a sua frente a lomba da Lucas de Oliveira.

Enquanto recordava das três décadas de história, mudou o seu semblante na negociação, de esperançoso a melancólico, e passou a boicotar a própria posse:

- Serei sincero: o câmbio não funciona, a seta tranca, faz tempo que não passa por revisão, vive me deixando na mão, engole gasolina que nem doido...

Foram tamanhas as críticas desferidas que o interessado recolheu a oferta silenciosamente e agradeceu a honestidade.

Zé nunca venderá o Santana branco, 1987.

Não é pelo preço, mas pelo apreço.

CARPINEJAR

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