quinta-feira, 15 de setembro de 2022


15 DE SETEMBRO DE 2022
TULIO MILMAN

Olará, oleri

A Maya tem 11 meses, mas já odeia política. Tive certeza quando, durante a semana, um caminhão de som passou aqui na frente durante o soninho da tarde. Se ainda fosse Alecrim Dourado ou Galinha Pintadinha... não era. Os alto-falantes despejavam, volume máximo, uma música cheia de rimas ruins e promessas absurdas. Aí ela, que ainda não sabe falar, acordou e chorou, a plenos pulmõezinhos. Tentei explicar que os titios que fazem isso se dizem defensores da democracia e das liberdades individuais e, por isso, querem o voto dos adultos. "Olará, olerê, para fazer mais por você", cantei. Mais choro. É setembro.

Agauchei: "Olará, oleri, para fazer mais por ti". Fracasso duplo. Voltei à racionalidade. Argumentei para a minha filhinha que o dinheiro financiador dessa balbúrdia sonora vem do imposto do leite em pó, da fralda e da pomada contra assaduras que o papai e a mamãe compram pra ela. Me arrependi. Tá certo que pai e mãe sempre têm culpa, mas, nesse caso, não é uma escolha. "Orio, orio, orio, o imposto é compulsório", cantei com a melodia o mais suave possível. 

"Em, em, em, o fundo eleitoral também", completei. A zoeira da rua não dava trégua e atropelava meus arroubos artístico-paternos. Entre uma lágrima e outra, Maya fez aquela carinha de "E a minha liberdade individual de estar no meu quartinho e não ser importunada?". Não desisti. A democracia precisa de cada um de nós. Enquanto o caminhão finalmente se afastava, falei sobre a importância do voto consciente. Ela, olhos bem abertos, me encarou, como quem suplica: "Não dá para falar sobre isso quando eu estiver acordada em vez de dormindo, inconsciente?".

Mario Quintana descreveu poeticamente a vida nos centros urbanos: "Cidade grande: dias sem pássaros, noites sem estrelas". Faltou dizer: ... e, de dois em dois anos, com barulho, amparado pela Lei Eleitoral, que invade as nossas casas. Que a Maya não me ouça. Não quero que a minha filhinha pense que atento contra o Estado democrático de direito. 

Vá que algum ministro do STF ouça as nossas conversas e determine busca e apreensão da câmera e dos registros da babá eletrônica? Mas qual gênio do marketing político acha que ganhará algum voto desse jeito? Que país é esse? Um cidadão pode optar por não se vacinar, mas não pode fugir de uma agressão sonora paga com dinheiro público dentro do seu próprio banheiro. Boas notícias: cansada do meu blá-blá-blá, a Maya voltou a dormir. Rezemos para a festa da democracia nos dar uma folga nos próximos minutos.

TULIO MILMAN

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