terça-feira, 17 de setembro de 2013


17 de setembro de 2013 | N° 17556
LUIZ PAULO VASCONCELLOS

Só os neuróticos verão a Deus

Semana passada, assisti a uma montagem de O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, no Porto Alegre Em Cena, que me deixou deslumbrado. Com o espetáculo, preciso, instigante, provocativo. Mas, acima de tudo, com o autor, que há muito, muito tempo, eu não lia nem assistia. Gente, que cara bom! Como meu colega Juarez Fonseca costuma dizer sobre a falecida Elis Regina, que ela canta cada vez melhor, digo eu o mesmo hoje sobre o falecido Nelson Rodrigues, cujas peças estão cada vez melhores.

Nelson Rodrigues definiu sua obra como “desagradável”. Disse ele: “Por que desagradável? Porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”.

Na fase de sua obra ambientada nos subúrbios do Rio de Janeiro, Nelson investiu nas paixões humanas mais violentas, paixões a que deu um tratamento trágico ao torná-las fonte primordial da transgressão. Porque os personagens de Nelson transgridem por uma dialética individual que os faz vítimas de seus próprios impulsos, impulsos estes transpostos à condição de comportamento sem a mediação de um ego consciente, moderador. Daí, a sensação desagradável criada no espectador, que permanece sem referenciais diante de manifestações obsessivas, mórbidas, pervertidas.

Nelson Rodrigues foi o poeta do inconfessável, do que há de menos digno no homem. E se ele permanece até hoje, mais de 30 anos depois de sua morte, o mais contemporâneo dos dramaturgos brasileiros, é porque soube como ninguém retratar a família, a política, a religião, a imprensa e tudo mais que nos cerca, de forma clara, nítida e crítica.

É porque soube, como seus personagens, transgredir mais do que os outros, tanto no sentido da criação de uma estética, como no de alimentar uma personalidade artística polêmica, forjada na base de posições paradoxais; e também na base das frases de efeito, do sarcasmo, da truculência verbal, do desafio à moral e à lógica vigentes. Escrevendo peças capazes de produzir o tifo e a malária. E recomendando aos jovens: “Sejam neuróticos! A nossa opção, repito, é entre a angústia e a gangrena. Ou o sujeito se angustia, ou apodrece. E se me perguntarem o que quero dizer com as minhas peças, eu responderia: que só os neuróticos verão a Deus”.


Para terminar, algumas frases lapidares que justificam meu entusiasmo: “Subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos”; “Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro”; “Uns morrem de fome. Outros vivem dela, com generosa abundancia”; e, finalmente, a mais inspirada de todas: “Toda unanimidade é burra!”.

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