segunda-feira, 17 de dezembro de 2012



17 de dezembro de 2012 | N° 17286
CELSO GUTFREIND

Amor de palavra

“Você sabe o que é se apaixonar pela palavra? É você sonhar com ela, e você tomar nota, e de manhã você saber se ela dormiu...”

Manoel de Barros

Eu gosto dos gestos e do quanto são expressivos. Os atores dão lições diárias de representar. Gosto muito dos atores, mas não necessitamos deles para aproveitar o espetáculo. Gesticulamos para viver e é impressionante como, às vezes, o corpo diz o que quer. Que o digam os italianos.

No mundo dos gestos, há os toques, e os toques, se verdadeiros e consentidos, costumam também ser completos. Alcançam o amor, e nem que o amor da amizade. Atingem a compreensão, a nossa fome maior. Que o digamos nós todos.

Antes de tudo isto, aconteceu o olhar. Os olhares, igualmente, conseguem ser inequívocos. Sempre haverá uma Mona Lisa enigmática para me contradizer. Ou a oblíqua e dissimulada Capitu. Mas uma está no quadro, e a outra, no livro. Na vida em si, os olhares podem ser retos e dizer tudo o que querem: muito, pouco, nada.

O diabo são as palavras. Eu as adoro e vivo delas. Nada sei de quando vieram ao mundo, mas sinto que a sua intenção é boa: ajudar os olhares, interpretar os toques, complementar os gestos. Construir presença na ausência. Produzir pensamento a partir do sentimento. E tem quem faça delas a pedra de toque dourada, a cereja do bolo, a curva perfeita. O Dante, o Guimarães Rosa, o Quintana, o Bandeira, as crianças.

A sua genialidade está em ultrapassar o alcance de um olhar, e eu faço o gesto de tirar o chapéu para eles. As suas palavras maravilhosas abrem perspectivas, horizontes, outros mundos. Um mundo só não basta para homem e mulher, habitados pelo desejo e pela imaginação.

O triste é que as palavras não conseguem ser claras como o olhar e nem totais como o toque. Elas trazem a dúvida e outro sentido. Quando não o fazem, tornam-se aborrecidas. Paradoxo, palavra importante.

Um dia desses, tentei dizer uma coisa. Eu a tinha cristalina em mim. Separei uma frase com sujeito, com toda a atenção. Não era eu, era um sujeito inventado, muito melhor do que eu. Cuidei cada detalhe dele, acompanhei a sua vida do nada até os sons e o significado.

Depois, peguei um predicado, absolutamente adequado ao sujeito e tive o mesmo cuidado. Eu tinha verbo, advérbio e até um adjetivo. Perfeito. Eu tinha tudo ali, a serviço do que eu queria dizer. Eu sabia o que dizer e para quem. Não olhei, não gesticulei; eu, simplesmente, disse.

Simplesmente? O outro entendeu outra coisa; algo entre o que eu quis contar e o que ele desejou ouvir. Ficou dias sem falar comigo e achei que as palavras tinham nos posto a perder. Até que encontrei um olhar, um gesto e toquei. Com o frescor do primeiro toque, e o reencontro se deu.

Não fosse o meu amor por elas, eu dispensaria as palavras.

Nenhum comentário: