terça-feira, 25 de outubro de 2022



25 DE OUTUBRO DE 2022
ARTIGOS

ANALFABETISMO DIGITAL

Para Esther Pillar Grossi

Sei como se sentem os analfabetos, não porque me lembre de quando fui um deles, mas porque ainda sou. Um analfabeto digital, caso bastante grave hoje em dia. Não se trata de editar textos em computadores modernos, transformados em antigas máquinas de escrever. Cato milho com dignidade na tela, reviso a gramática, mudo o tamanho da letra, se for preciso, e salvo tudo no word, não exatamente na nuvem, mas no disquete, digo, no pen drive.

Não se trata disso. Trata-se da expertise em utilizar serviços gerais da internet, como, por exemplo, para compra online de passagens. Às vezes, nessas horas, conto com a benevolência da minha filha, mas ela já anda mais ocupada do que eu. Ou eu ainda me assusto com a sua má vontade e aquele olhar terrível, expressando que o meu tempo já passou. Resta mendigar um auxílio extrafamiliar, clamando por uma presença cada vez mais rara neste mundo quase todo automatizado e desconfiado de qualquer abordagem. 

Dia desses, precisei pegar um trem, na França. Eu contava com o quiosque de vendas e seu solitário guichê para idosos, mas um desgraçado de qualquer idade esqueceu a mala no meio do caminho, e a polícia fechou o acesso. Restava o pesadelo da máquina. Ao lado, um cão farejador olhava com desconfiança a minha angústia de não conseguir ultrapassar a segunda fase do negócio. Restava aquela solicitação cada vez menos atendida de pedir ajuda aos universitários passantes.

Uma garota até interrompeu as suas tecladas, mas, ao compreender melhor o meu caso, foi muito dura comigo e falou naquele tom mais elevado e universal dos adolescentes: É COMO UM COMPUTADOR, Monsieur, BASTA SEGUIR OS COMANDOS. Assim que ela saiu, e os comandos deixaram de me seguir, o novo adolescente foi mais compreensivo. Seu olhar não disfarçava a compaixão por um senhor perdido entre as letras do mundo e me acompanhou até a fase 16, sem roubar o meu cartão de crédito que ele mesmo inseriu.

Entre momentos de firmeza e de ternura, como costuma ser, volto a me alfabetizar. 

Psicanalista e escritor - CELSO GUTFREIND

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