segunda-feira, 31 de outubro de 2022


CARPINEJAR

O que decidiu a eleição

As armas que o presidente Jair Bolsonaro tanto defendeu ao longo do seu mandato decidiram a eleição contra ele. A loucura bélica de seus aliados na última semana roubou o prestígio da reta final, formando um ambiente de insegurança e medo nas vésperas da eleição.

Primeiro, foi o advogado Roberto Jefferson, ex-presidente do PTB, que resistiu à prisão da Polícia Federal com granadas e fuzis. Já era um incidente infeliz o suficiente para manchar a perseguição de votos pela reeleição.

Não bastando, uma de suas mais fervorosas seguidoras, a deputada federal reeleita Carla Zambelli, perseguiu um homem negro na tarde de sábado, no bairro nobre dos Jardins, em São Paulo. Chegou a invadir uma lanchonete apontando uma arma, à luz do dia. Ela diz ter sido empurrada, mas vídeos revelam que ela tropeçou sozinha. Ela diz ter sido cuspida, mas vídeos registram unicamente um bate-boca.

Caçar o jornalista articulado Luan Araújo, sem antecedentes criminais, sem nenhuma agressão física da parte dele, sugere uma manifestação de racismo. Havia dois homens que defendiam o candidato Lula na hora da discussão com o grupo de seguranças da deputada - um branco e um negro. E ela foi atrás do negro pela badalada Alameda Lorena.

Como se fosse uma policial, ela tentou render o jornalista dentro de um comércio onde ele buscava refúgio, no meio de uma multidão de frequentadores. Poderia ter provocado uma tragédia do mais alto grau de arbitrariedade.

Existe uma série de ilegalidades na conduta desproporcional da parlamentar, que talvez até implique cassação. Entre elas, infringiu resolução do TSE que proíbe o porte de arma de fogo 24 horas antes das eleições.

Tudo respingou em Bolsonaro na conversão derradeira dos indecisos. O esforço de equilíbrio e seriedade que demonstrou nos últimos debates não resistiu aos descalabros de seus apoiadores, amplamente divulgados na "boca de urna" das redes sociais e emissoras.

O episódio lembra o atentado da Rua Tonelero, em que capanga de Getúlio Vargas atirou contra o jornalista e político Carlos Lacerda, na madrugada do dia 5 de agosto de 1954. Lacerda, um dos baluartes da oposição getulista, foi ferido no pé. Diante do escândalo, Vargas, que dizia desconhecer o ataque, cometeu suicídio dezenove dias depois.

O tiro no pé, expressão popular originada desse fato, foi desferido no momento pelos correligionários bolsonaristas, atingindo a moralidade do programa eleitoral do presidente e seu projeto de armar as famílias brasileiras.

CARPINEJAR


OPINIÃO DA RBS

A DEMOCRACIA FALOU

As urnas consagraram Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como o próximo presidente do Brasil e Eduardo Leite (PSDB) como o primeiro governador reeleito do Rio Grande do Sul. A democracia falou. É legítimo que, nas primeiras horas após o resultado, os vitoriosos e seus apoiadores celebrem efusivamente o desfecho da eleição. É preciso lembrar, no entanto, que a tarefa prioritária de Lula é trabalhar pela união do país e, a de Leite, pelo desenvolvimento do Estado. 

A pacificação é uma exigência especialmente no caso nacional. A disputa acirrada e encerrada por diferença mínima em relação ao presidente Jair Bolsonaro (PL) reflete a profunda cisão da sociedade, que urge começar a ser cicatrizada. Uma parcela significativa da população votou no projeto de Bolsonaro, e o compromisso do petista tem de ser o de governar para toda a coletividade.

A responsabilidade do presidente eleito é imensa. Sua vitória não deve ser compreendida como um cheque em branco para o mandato. Já foi dito e repetido que sua intenção é acabar com o teto de gastos, mecanismo que limita a expansão da despesa do governo. É preciso esclarecer o que será colocado no lugar como âncora fiscal do país. O Brasil aguarda que o petista detalhe o quanto antes o seu plano de governo, especialmente para a economia, área em que foi vago durante a campanha.

Lula fez um primeiro mandato (2003-2006) conciliando austeridade com políticas sociais. Reeleito, começou a abandonar a responsabilidade e ampliar a gastança, desequilíbrio que esteve na raiz da brutal crise econômica de meados da década passada, na gestão Dilma Rousseff. A sociedade não deseja ver repetidas práticas desastrosas como o inchaço da máquina pública, o financiamento a regimes ditatoriais de esquerda e relações promíscuas com o Congresso e partidos aliados, como as que desembocaram nos escândalos de corrupção desvendados pela Lava-Jato.

Lula é reconhecido por sua habilidade política na negociação e no convencimento. Mas, agora, deve usar esta habilidade para construir uma aliança capaz de dar governabilidade sustentada em pilares republicanos. O Congresso, nos últimos anos, ganhou mais poder em relação ao Executivo. Não há espaço para ilusão. Boa parte do parlamento, especialmente no centrão, tem afeição à órbita do poder, mas sabe cobrar o seu preço. A ver, portanto, como construir uma coalizão sem o toma lá da cá.

O petista fez uma campanha em que reforçou a lembrança da ascensão social experimentada em seu governo. O principal mote foi a esperança, materializada na redução da desigualdade e na recuperação do poder aquisitivo. O grau de expectativa a cercar a volta de Lula ao poder é elevadíssimo. Deve o presidente eleito mostrar que aprendeu com os erros do passado para a crença em dias melhores depositada nas urnas não se transformar em frustração.

São necessários gestos e palavras direcionados a superar a divisão destrutiva da sociedade. A mesma compreensão deve ter Bolsonaro, acatando o resultado e permitindo uma transição civilizada. Divergências políticas são próprias da democracia, mas a fissura hoje existente ultrapassa em muito os níveis aceitáveis e se torna uma trava ao desenvolvimento. Cabe a Lula, a seu vice Geraldo Alckmin e a todos os que o apoiaram no segundo turno trabalhar pelo desenvolvimento do país, com zelo nas finanças e sensibilidade social.

No Estado, Eduardo Leite (PSDB) fez história ao ser o primeiro governador reconduzido ao cargo. O feito inédito pode ser atribuído a uma preferência do eleitor pela continuidade de uma gestão que atuou com responsabilidade fiscal, fez reformas importantes, promoveu privatizações e, assim, teve êxito em recolocar os salários dos servidores em dia e ao menos recuperar uma parte da capacidade de investimento do Executivo. O adversário, Onyx Lorenzoni (PL), pecou em não apresentar propostas concretas para os gaúchos.

A situação financeira do Estado não tem a mesma gravidade de alguns anos atrás, mas permanece delicada. Leite terá a missão de continuar nesta caminhada de saneamento das contas, ao mesmo tempo que precisará enfrentar desafios relevantes, especialmente na área educacional, implementando as diretrizes do pacto pela educação para recuperar a qualidade do ensino público.

O Rio Grande do Sul e o Brasil, a despeito de suas complexidades, entraves estruturais e, mesmo em níveis diferentes, desigualdades sociais que precisam ser frontalmente atacadas, têm enorme potencial de conquistar um crescimento econômico robusto e sustentável que leve a um desenvolvimento mais equânime. O país amanhece com um novo presidente eleito e um governador gaúcho reconduzido ao cargo. Ontem, foram votados e, a partir de hoje, devem contar com um voto de confiança da sociedade para que, a partir de janeiro de 2023, possam cumprir os seus compromissos em busca de uma nação e um Estado mais prósperos e em harmonia.


31 de Outubro de 2022
OPINIÃO DA RBS

A DEMOCRACIA FALOU

As urnas consagraram Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como o próximo presidente do Brasil e Eduardo Leite (PSDB) como o primeiro governador reeleito do Rio Grande do Sul. A democracia falou. É legítimo que, nas primeiras horas após o resultado, os vitoriosos e seus apoiadores celebrem efusivamente o desfecho da eleição. É preciso lembrar, no entanto, que a tarefa prioritária de Lula é trabalhar pela união do país e, a de Leite, pelo desenvolvimento do Estado. A pacificação é uma exigência especialmente no caso nacional. A disputa acirrada e encerrada por diferença mínima em relação ao presidente Jair Bolsonaro (PL) reflete a profunda cisão da sociedade, que urge começar a ser cicatrizada. Uma parcela significativa da população votou no projeto de Bolsonaro, e o compromisso do petista tem de ser o de governar para toda a coletividade.

A responsabilidade do presidente eleito é imensa. Sua vitória não deve ser compreendida como um cheque em branco para o mandato. Já foi dito e repetido que sua intenção é acabar com o teto de gastos, mecanismo que limita a expansão da despesa do governo. É preciso esclarecer o que será colocado no lugar como âncora fiscal do país. O Brasil aguarda que o petista detalhe o quanto antes o seu plano de governo, especialmente para a economia, área em que foi vago durante a campanha.

Lula fez um primeiro mandato (2003-2006) conciliando austeridade com políticas sociais. Reeleito, começou a abandonar a responsabilidade e ampliar a gastança, desequilíbrio que esteve na raiz da brutal crise econômica de meados da década passada, na gestão Dilma Rousseff. A sociedade não deseja ver repetidas práticas desastrosas como o inchaço da máquina pública, o financiamento a regimes ditatoriais de esquerda e relações promíscuas com o Congresso e partidos aliados, como as que desembocaram nos escândalos de corrupção desvendados pela Lava-Jato.

Lula é reconhecido por sua habilidade política na negociação e no convencimento. Mas, agora, deve usar esta habilidade para construir uma aliança capaz de dar governabilidade sustentada em pilares republicanos. O Congresso, nos últimos anos, ganhou mais poder em relação ao Executivo. Não há espaço para ilusão. Boa parte do parlamento, especialmente no centrão, tem afeição à órbita do poder, mas sabe cobrar o seu preço. A ver, portanto, como construir uma coalizão sem o toma lá da cá.

O petista fez uma campanha em que reforçou a lembrança da ascensão social experimentada em seu governo. O principal mote foi a esperança, materializada na redução da desigualdade e na recuperação do poder aquisitivo. O grau de expectativa a cercar a volta de Lula ao poder é elevadíssimo. Deve o presidente eleito mostrar que aprendeu com os erros do passado para a crença em dias melhores depositada nas urnas não se transformar em frustração.

São necessários gestos e palavras direcionados a superar a divisão destrutiva da sociedade. A mesma compreensão deve ter Bolsonaro, acatando o resultado e permitindo uma transição civilizada. Divergências políticas são próprias da democracia, mas a fissura hoje existente ultrapassa em muito os níveis aceitáveis e se torna uma trava ao desenvolvimento. Cabe a Lula, a seu vice Geraldo Alckmin e a todos os que o apoiaram no segundo turno trabalhar pelo desenvolvimento do país, com zelo nas finanças e sensibilidade social.

No Estado, Eduardo Leite (PSDB) fez história ao ser o primeiro governador reconduzido ao cargo. O feito inédito pode ser atribuído a uma preferência do eleitor pela continuidade de uma gestão que atuou com responsabilidade fiscal, fez reformas importantes, promoveu privatizações e, assim, teve êxito em recolocar os salários dos servidores em dia e ao menos recuperar uma parte da capacidade de investimento do Executivo. O adversário, Onyx Lorenzoni (PL), pecou em não apresentar propostas concretas para os gaúchos.

A situação financeira do Estado não tem a mesma gravidade de alguns anos atrás, mas permanece delicada. Leite terá a missão de continuar nesta caminhada de saneamento das contas, ao mesmo tempo que precisará enfrentar desafios relevantes, especialmente na área educacional, implementando as diretrizes do pacto pela educação para recuperar a qualidade do ensino público.

O Rio Grande do Sul e o Brasil, a despeito de suas complexidades, entraves estruturais e, mesmo em níveis diferentes, desigualdades sociais que precisam ser frontalmente atacadas, têm enorme potencial de conquistar um crescimento econômico robusto e sustentável que leve a um desenvolvimento mais equânime. O país amanhece com um novo presidente eleito e um governador gaúcho reconduzido ao cargo. Ontem, foram votados e, a partir de hoje, devem contar com um voto de confiança da sociedade para que, a partir de janeiro de 2023, possam cumprir os seus compromissos em busca de uma nação e um Estado mais prósperos e em harmonia.


ELEIÇÕES 2022

Bolsonaro amarga derrota inédita na redemocratização

Pela primeira vez desde a reabertura política do Brasil, um presidente é superado na votação e não consegue a reeleição

O presidente Jair Bolsonaro (PL) batalhou com as armas e estratégias disponíveis, mas não foi reeleito. Fez 58,2 milhões de votos, 2,1 milhões a menos do que seu arquirrival, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Até o fechamento desta edição, o Bolsonaro não havia se manifestado sobre a derrota nas urnas.

Ele buscou, mas não conseguiu, um feito inédito desde a redemocratização do país, nos anos 1980: virar a eleição, após chegar em segundo lugar no primeiro turno. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) venceu na primeira etapa, em 1998, enquanto os petistas Lula e Dilma Rousseff chegaram à fase complementar de votação, em disputas posteriores, como primeiros colocados. Ambos conseguiram confirmar o favoritismo.

O revés de Bolsonaro tem gosto de derrota para um gigantesco segmento de brasileiros: conservadores que prezam valores familiares tradicionais. Nesse público, temas como drogas, aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo pesam muito na hora definir o voto. Gente que se sente profundamente insegura com a criminalidade e acredita que o direito de se armar e uma polícia vigorosa podem lhes propiciar segurança. É a perda de poder de um eleitorado importante, num país dividido não apenas em termos ideológico-programáticos, mas geográficos e religiosos.

Essa fatia dos brasileiros deu base a Bolsonaro, que acrescentou outras polêmicas no radar do seu eleitorado. O presidente, sem apresentar provas, colocou em xeque o sistema eletrônico de votação por meses.

A tese foi reforçada por discrepâncias entre as estimativas das intenções de voto feitas por empresas de pesquisa e os resultados do primeiro turno. E o suposto boicote de rádios a inserções da propaganda bolsonarista no segundo turno, acusação feita por Bolsonaro nos últimos dias. A irregularidade foi rejeitada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Desgaste

As suspeitas levantadas ajudaram a manter os simpatizantes mobilizados.

- Com certeza, esses erros nas pesquisas e suposto boicote de inserções de propagandas eleitorais deram mais vigor às conspirações de fraude. Isso não aumentou o voto em Bolsonaro, mas estimulou ainda mais a contestação do resultado - assinala o cientista político Paulo Sérgio Peres, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O que ninguém esperava era que a oposição havia aprendido a usar as mesmas armas de bolsonaristas nas redes sociais. Duas semanas antes da votação, surgiu em perfis lulistas o primeiro golpe: um vídeo no qual o presidente dizia a frase "pintou um clima", ao tratar de jovens venezuelanas de 14 anos, que avistara na periferia de Brasília.

Bolsonaro supunha que elas estavam se prostituindo. Em pouco tempo, o deputado federal André Janones (Avante-MG) e a presidente do PT, Gleisi Hoffman, espalhavam a história - eram meninas que participavam de uma ação social patrocinada por uma entidade.

A campanha acusou o golpe. Bolsonaro fez uma live na madrugada do dia 16, um domingo, para desmentir o assédio às garotas. Depois, veio o momento de maior desgaste, segundo integrantes da campanha: o vazamento da intenção do ministro da Economia, Paulo Guedes, de desatrelar o salário mínimo da inflação. O caso foi classificado como "desastroso".

Nem mesmo a divulgação de 22 promessas na véspera da votação foi suficiente para reverter o cenário apresentado pelas pesquisas. Nas redes sociais, no sábado, Bolsonaro reciclou boa parte das propostas de campanha, como a redução da maioridade penal e o excludente de ilicitude para policiais, além da isenção de Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos e o adicional de R$ 200 para beneficiários do Auxílio Brasil que conseguirem emprego.

Para tentar seduzir eleitores indecisos e angariar votos dos moderados, o candidato do PL se comprometeu, mais uma vez, a não aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o ofensiva final fracassou. Na página ao lado, veja algumas explicações para a derrota histórica de Bolsonaro.

HUMBERTO TREZZI

ELEIÇÕES 2022

Alckmin, Tebet, Amoêdo e a frente ampla

Vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB-SP) foi, no primeiro turno, a representação maior da frente ampla, definida como uma soma de forças políticas contra o que consideravam ser uma ameaça à democracia e aos direitos fundamentais representada supostamente por Jair Bolsonaro.

Já no segundo turno, lastreada na mesma argumentação de defesa da democracia, somou-se à campanha, de forma engajada e decisiva, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata à Presidência que marcou 4,16% dos votos válidos e ficou em terceiro lugar no primeiro turno. Tebet foi para a linha de frente e, junto disso, agregaram-se o PDT, com apoio tímido de Ciro Gomes, além de diversas manifestações de voto do liberalismo, alcançando criadores do Plano Real, nomes históricos do PSDB e um dos fundadores do Novo, João Amoêdo.

Mas há, também, a avaliação de que somente Lula era capaz de reunir a força necessária para vencer o bolsonarismo.

- Eu coloco, em primeiro lugar, a figura do Lula. A biografia e a história de vida dele têm muita força, sobretudo nos segmentos carentes da população que reconhecem nele um representante legítimo. E, sem dúvida, a construção da frente ampla. A candidatura do Lula é muito maior do que a esquerda. Temos liberais e centristas - avalia Flávio Dino (PSB), ex-governador do Maranhão e senador eleito.

Identificação

Como esperado, o Nordeste foi decisivo e deu ampla maioria de votos a Lula. Pernambucano de nascimento, ele deixou a região ainda criança em um pau de arara rumo a São Paulo, mas manteve a identificação com os conterrâneos enquanto político. Bolsonaro apostou em medidas econômicas para reduzir a força de Lula no Nordeste em meio às eleições, como o aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 e uma série de outras bonificações a pouco tempo do pleito. Com o segundo turno correndo, foram liberados, em 11 dias, R$ 4,2 bilhões em empréstimos consignados para 1,6 milhão de beneficiários do Auxílio Brasil pela Caixa Econômica Federal. Ainda assim, o Nordeste, região onde há maior vulnerabilidade econômica/social no país, manteve a majoritária votação em Lula.

- Se enganou quem pensou que o povo pobre estava à venda - diz Wellington Dias (PT), ex-governador do Piauí e senador eleito.

Para Dino, as medidas econômicas de Bolsonaro no período eleitoral representaram "os mais intensivos e abusivos usos da máquina pública na história brasileira":

- Leis foram rasgadas, gerando espécie de vale-tudo. Isso explica o fato de Bolsonaro ter tido patamar de votação mais alto do que teria se fosse considerado apenas o seu desastroso governo.

Outro acerto da campanha de Lula no segundo turno foi a adoção das caminhadas. Ao contrário do primeiro turno, quando a opção foi pelos comícios, um carro de som seguia à frente e Lula, logo atrás, fazia os trajetos montado em caminhonete. Ao estilo papamóvel, percorreu trechos de vias de importantes cidades, sempre reunindo multidões. Na avaliação de aliados, isso resultou em campanha vibrante e envolvente, que causou entusiasmo entre apoiadores e imagens impactantes para TV e redes sociais.

Para falar fora da bolha e alcançar além dos convertidos, a estratégia foi colocar Lula a conceder entrevistas em rádios de todo o Brasil e participar de lives e podcasts. Diferentemente de 2018, quando apanhou na disputa pela internet, a esquerda passou a dominar as ferramentas e diminuiu a diferença para a direita neste campo de batalha.

O impulso na internet contou com atuação decisiva do deputado federal André Janones (Avante-MG). Embora tenha sofrido críticas de setores da esquerda por adotar métodos agressivos, o fato é que Janones gerou engajamento em favor do candidato do PT e rivalizou com o bolsonarismo em alcance.


CLÁUDIA LAITANO

Nunca mais

Um filme e um livro recém-lançados convidam brasileiros e argentinos a revisitar a própria História - ao mesmo tempo em que permitem uma espiadela invejosa no passado do vizinho.

O filme. Argentina, 1985, de Santiago Mitre (Amazon Prime), relembra o julgamento civil dos nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de 1976. A trama acompanha o trabalho dos promotores Julio Strassera (Ricardo Darín) e Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), a quem coube levantar um conjunto robusto de provas das centenas de crimes cometidos pelos militares entre 1976 e 1983. 

Depoimentos dilacerantes de testemunhas foram registrados por centenas de jornalistas e ajudaram a opinião pública argentina a formar uma imagem mais clara do espetáculo de sadismo que se desenrolava nos porões da ditadura. O corajoso pronunciamento final de Strassera, na interpretação arrebatadora de Ricardo Darín, seria capaz de comover até as pedras da Praça de Maio: "A partir deste julgamento e da sentença que defendo, temos a responsabilidade de fundar uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória, não na violência, mas na justiça. Quero usar uma frase que não me pertence, porque já pertence a todo o povo argentino. Juízes ilustres: nunca mais".

O livro. PT, Uma História, do sociólogo Celso Rocha de Barros (Cia. das Letras), narra acontecimentos que se estendem do final dos anos 1970 aos dias de hoje. Pode ser lido, sem preconceitos (e com muito gosto), por quem nunca votou no PT antes das eleições de 2022 - e até por quem, por motivos que me escapam, votou nos candidatos que apoiam o atual governo (aprenderiam muita coisa, eu garanto). Ao contrário do que o título sugere, o livro não conta apenas a história da formação de um partido. Com o apoio de mais de 60 entrevistas, Celso monta um grande painel da reconstrução da democracia brasileira, mostrando como a articulação de diferentes forças políticas tornou possível o movimento das Diretas Já, o consenso em torno de Tancredo Neves, a Constituição de 1988 e a eleição de líderes como Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao assistir a Argentina, 1985, brasileiros talvez fiquem com inveja da forma corajosa como os argentinos enfrentaram e puniram os crimes da ditadura. Ao ler PT, Uma História, argentinos talvez lamentem o fato de o país não ter conseguido substituir o peronismo por uma esquerda (ou centro-esquerda) mais moderna e articulada. De um lado e do outro da fronteira, há lições para aprender e erros a corrigir. Mas há também uma enorme dívida de gratidão em relação a todos aqueles homens e mulheres que defenderam a democracia quando ela estava sufocada e firmaram um compromisso com o futuro que nos toca renovar todos os dias, até o fim dos tempos: "Ditadura e tortura, nunca mais. Estado de direito, sempre".

CLÁUDIA LAITANO

sábado, 29 de outubro de 2022



29 DE OUTUBRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Fim de uma etapa

Iniciei carreira como colunista de jornal em 1994, no finalzinho do governo Itamar Franco. Meu texto de estreia denunciava uma tendência retrô: a de que casar virgem estaria "voltando à moda". O segundo texto foi sobre mulheres que tomavam a iniciativa de chamar para sair. O terceiro, sobre o casamento não ser mais o único objetivo de nossas vidas. Virou um nicho: relacionamentos. Ciúmes, erotismo, religião, rock´n´roll, cinema, topless, homossexualidade, aventuras cotidianas. Escrevia sobre tudo, pois tudo envolve a relação entre as pessoas. Incluindo a política.

Sobre o governo FHC, palpitei três ou quatro vezes - em oito anos. No governo Lula, um pouco mais. Eram opiniões avulsas, não representavam meu trabalho como um todo. Isso até 2016, quando estarreci ao ver um deputado homenagear um torturador dentro do Congresso Nacional - me senti insultada. Não gosto de política e nunca demonizei ou santifiquei alguém: por mim, continuaria dando pitacos vez que outra, mas àquela altura eu tinha uma reputação de credibilidade e seria covardia não expor a minha indignação com o Brasil desaforado e perigoso que saía do armário. Passei a escrever, mais do que de costume, sobre os valores em que acredito, criticando quem ameaçava abertamente a democracia. Não estava em defesa específica de ninguém e de nada que não fosse a civilidade. Fiz o que achei que devia e aqui, por ora, encerro essa etapa.

Até que me sinta novamente horrorizada, não pretendo insistir neste assunto, mude o inquilino do Planalto ou não. Foi um processo doloroso e espero que tenhamos aprendido com ele. De minha parte, me sinto mais madura e mais íntegra como profissional. Arrisquei uma situação confortável para dar a cara à tapa - e me estapearam, mas não tanto quanto apanharam diversos outros colegas, a quem me solidarizo. Não foi fácil atravessar essa tormenta. Tentamos informar, conscientizar e combater fake news, mas não somos donos da verdade. A população é imensa e soberana.

É dela que virá o veredito.

Não virarei as costas para a política - a desinformação é uma arma letal que a gente aponta para nós mesmos - mas, daqui pra frente, voltarei a compartilhar reflexões sobre filmes, livros, dores, amores, descobertas, viagens, confidências. O universo entre quatro paredes, enquanto a vida corre lá fora. Sentimentos solares e o breu de cada um. As crônicas continuarão sendo um espelho do que sinto, vejo, temo e penso, mantendo a leveza da qual nunca me apartei. De resto, não são os eleitores que ganham ou perdem uma eleição, nem mesmo os candidatos. É o país. Sua história continuará sendo escrita. Que não venham páginas muito duras.

No próximo sábado (5), às 18h, autografarei Um Lugar Na Janela 3 na Feira do Livro de Porto Alegre, desta vez com direito a selfie e abraço, finalmente. Apareça.

MARTHA MEDEIROS

Seres humanos?


Para a frente é que se anda, diz o ditado. Pelo que a gente tem visto nos últimos tempos, só não se anda para a frente no que se refere aos humanos. 
Seres humanos, um tipo meio estranho de bicho, animais reprodutores de lixo, cantam Os The Darma Lóvers, banda de inspiração budista do eixo Porto Alegre-Três Coroas.

Nós somos seres estranhos. 

Quando um humano resolve que a cor da pele do outro é motivo para ofensa, foi-se a humanidade - se é que alguma vez ela existiu.

Sobra a vergonha. Que vergonha as cenas do Seu Jorge sendo xingado no clube que fez parte do crescimento de tantas crianças e de tantos atletas. O União era o pátio dos guris sem pátio, lugar em que os pais se sentiam seguros para deixar seus filhos, quando o meu era pequeno. Vergonha ver o clube na TV e nos jornais, as manchetes não deixando dúvida do que aconteceu ali.

Racismo. Podem dar qualquer desculpa, mas nenhum dos presentes imitaria o abjeto som de macacos se o cantor no palco fosse, por exemplo, o Fábio Jr. falando contra a redução da maioridade penal ao apresentar um jovem virtuose loiro de 15 anos. Também duvido que chamassem o Fábio Jr. de vagabundo e preguiçoso se ele fizesse alguma manifestação política - proibida por contrato, o que não justifica o racismo. Será que reparariam na roupa dele, se fosse o Fábio Jr.?

Nós somos seres intolerantes.

Quase ao mesmo tempo, revelou-se que uma aposentada e seu filho perseguiam e ofendiam o humorista negro Eddy Jr., vizinho dos dois em um condomínio de São Paulo. A vítima demorou a denunciar os agressores, convivendo com acusações e xingamentos racistas por muitos meses. No fim de semana, um menino preto de 10 anos, goleiro do seu time, sofria ofensas racistas por parte da torcida cada vez que fazia uma defesa. O caso é de Belo Horizonte, mas com certeza também aconteceu em um campinho perto de você. No estádio do seu time, no Brasil e no mundo inteiro. A repórter negra da televisão abriu a matéria assim: o que esse menino passou é o que eu e as pessoas pretas passamos todos os dias.

Nós somos seres cruéis.

Ninguém esqueceu do racismo sofrido pelo ex-árbitro Márcio Chagas em Bento Gonçalves, um dos episódios mais vergonhosos e criminosos da história do futebol. Em uma entrevista, Márcio falou sobre a preocupação do pai dele cada vez que os filhos saíam de casa: "Penso que a única preocupação dos pais de uma criança branca é se ela vai estudar ou não, se vai bem nos estudos ou não. Os pais pretos pensam em como ela vai sobreviver a determinadas situações. Lembro até hoje do meu pai, sempre que eu e meus irmãos saíamos, repetindo como se fosse um mantra: saiam bem arrumados, levem documentos, não corram na rua, se forem abordado pela polícia é ?sim, senhor?, ?não, senhor? e mais nada, porque eu quero que vocês voltem para casa".

Nós somos seres violentos.

A sociedade que não respeita as pessoas pretas no dia a dia também não tolera as pessoas pretas que se destacam. Só ver as ofensas dirigidas a Vinicius Júnior, Maju Coutinho, Titi Gagliasso, Beyoncé, a lista daria para encher páginas e páginas. Sobre outro caso escandaloso do final de semana passado, os policiais federais recebidos a tiros e granadas pelo ex-deputado e mentor de padre falso Roberto Jefferson, o país se perguntou: o que aconteceria se a polícia fosse recebida a tiros de fuzil por moradores pretos da favela? O país respondeu, sem nenhuma dúvida: mortes, mortes e mais mortes.

Se pareceu, ninguém aqui quer Bob Jeff morto, só preso mesmo.

Nós somos seres seletivos em nossa desumanidade, reservando nosso pior para os que julgamos diferentes. Nos chamam seres humanos. Mas isso nem sempre somos. Uma votação de paz e tranquilidade para você no domingo. Que seja um voto com esperança, alegria e humanidade.

CLAUDIA TAJES

29 DE OUTUBRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

VACINAS EM SPRAY CONTRA COVID SUPREM LIMITAÇÃO DAS INJETÁVEIS

A China aprovou uma vacina em spray contra a covid-19. Essa versão inalatória foi desenvolvida pela CanSino Biologics, empresa da cidade de Tianjin. É uma das mais de cem preparações orais ou nasais em desenvolvimento no mundo.

Hoje, todas as vacinas disponíveis no mercado são injetáveis. Elas têm sido capazes de evitar as formas graves da doença, as internações hospitalares e os óbitos. No entanto, não oferecem proteção contra as apresentações mais benignas e não impedem a transmissão interpessoal do coronavírus.

Ao ser injetadas no músculo, essas vacinas estimulam a multiplicação dos linfócitos T -que destroem as células infectadas pelo vírus- e dos linfócitos B -encarregados da produção de anticorpos. Esses dois grupos de glóbulos brancos caem na corrente sanguínea e levam a resposta imunológica para os demais tecidos.

O problema é que eles não conseguem atingir concentrações elevadas nas mucosas nasais e nos pulmões, com a rapidez necessária para impedir a multiplicação viral nesses locais. Em outras palavras, enquanto os linfócitos e os anticorpos migram pela corrente sanguínea do local da injeção para a mucosa nasal e as vias respiratórias, o vírus tem tempo de se multiplicar e causar doença, embora menos grave.

Imunizantes administrados por via inalatória também disparam uma resposta imunológica que se dissemina pelo organismo, mas com a vantagem de estimular diretamente as células de defesa localizadas nas mucosas que revestem as fossas nasais, porta de entrada para o Sars-CoV-2. A prontidão da resposta pode ser decisiva para bloquear a entrada do vírus, proteger a pessoa e impedir a transmissão para os que entrarem em contato com ela.

Há vários estudos em andamento com vacinas que utilizam a via mucosa, administradas como primeira dose ou como dose de reforço para aqueles que já receberam as preparações convencionais.

Algumas são idênticas às injetáveis, outras têm composições diferentes. No caso da vacina em spray aprovada na China, a composição é a mesma da vacina injetável produzida pela mesma companhia, com a diferença de que emprega apenas 20% da dose.

Algumas vacinas em desenvolvimento testam se a forma de comprimidos ou gotas nasais têm a mesma eficácia. São estudos em fase mais inicial.

Das cem vacinas administráveis por via mucosa, cerca de 20 chegaram à fase de ensaios clínicos em seres humanos. Entre elas, quatro - duas na China, uma na Índia e outra no Irã - já chegaram aos estudos fase 3, que visam testar a segurança e a eficácia em relação às preparações injetáveis.

Em outubro do ano passado, o Ministério da Saúde do Irã aprovou e distribuiu 5 milhões de doses produzidas no país, pelo Instituto Razi, mas ainda não publicou os resultados dos testes. O mesmo acontece com a versão em spray da Sputnik aprovada na Rússia.

Ensaios clínicos com grande número de participantes ainda levarão de um a dois anos para ser iniciados na Europa e nos Estados Unidos. Em entrevista à Nature, Louise Blair diretora de vacinas e variantes do grupo Aifinity, disse: "Temos muitas vacinas. No momento, os países parecem satisfeitos com a redução significativa do número de hospitalizações. A vacinação por via mucosa não desperta o mesmo senso de urgência que as injetáveis tiveram no início da pandemia".

Os objetivos de qualquer vacina são os de prevenir a infecção de uma pessoa e evitar que ela a transmita para outra. Testes com preparações administradas diretamente nas mucosas nasais, em animais de laboratório, mostram que elas conseguem induzir níveis de imunidade local capaz de protegê-los da infecção pelo coronavírus, com mais eficácia do que as injetáveis.

Além de estimular as células imunologicamente competentes que residem na mucosa nasal, essa geração nova de vacinas inalatórias ou em gotas induz a produção de anticorpos protetores em níveis sanguíneos que nada ficam a dever aos dos imunizantes injetáveis.

Os sprays vacinais poderão revolucionar o campo de vacinologia. As viroses respiratórias infectam centenas de milhões de pessoas pelo mundo. A estratégia de estimular células imunocompetentes e anticorpos nas mucosas, ao botá-las em contato direto com o imunizante, faz todo o sentido. Essa tecnologia poderá nos livrar de gripes, resfriados e outros males que tanto desconforto nos trazem.

DRAUZIO VARELLA

29 DE OUTUBRO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

A VASILHA

Outro dia coloquei uma vasilha de ração e uma de água num canto arborizado de uma praça para os bichos da rua. Ficou um acordo tácito entre os moradores de colocar alimento sempre que necessário. Quando voltei para botar mais ração, vi uma senhora bem vestida descer de um carro bom, pegar a vasilha e levar embora. Nem tive tempo de fazer um vídeo ou falar com ela e lá se foi minha vasilha.

Na hora fiquei com raiva porque não dá pra entender uma pessoa, sem a menor necessidade, fazer uma coisa dessas. Aí fui caminhando e lembrei de dois tipos de seres humanos: os sacadores (takers) e os doadores (givers). Existem pessoas que vieram para doar porque acreditam na abundância e os que só pensam em tirar, acreditam na escassez.

E por uma lei do Universo, aquilo que a gente acredita vai nos acompanhar pelo resto da vida. A sua visão pode trazer escassez ou abundância pra sua realidade. Existe gente que espalha orquídeas nas árvores da rua para deleite de quem passa. E gente que passa e arranca essas orquídeas, que vão morrer em breve em algum vaso.

Numa rua aqui perto, alguém colocou na calçada um banco, pedras com uma pequena fonte, plantas ornamentais e? música! Ainda não descobri quem fez isso, mas gostaria de passar lá e agradecer. Essa música suave toca o dia inteiro dando alegria para quem passa e cria um lugar sereno pra se sentar.

Por sorte ninguém levou nada. Fiquei pensando na mulher da vasilha e perguntando: por que ela fez isso? Roubar a vasilha de um animal da rua certamente não faz a menor diferença na vida dela, mas faz muita na dos bichinhos. Só posso entender como o gesto de uma taker que acredita na escassez. Um gesto de maldade.

Um conceito comum diz que ninguém é bom ou ruim, somos todos um pouco de tudo. Com o tempo, passei a discordar disso. Hoje acredito que pensar assim justifica uma série de ações pequenas e grandes que prejudicam alguém ou muita gente.

Fazer o que é certo e o que é errado é uma escolha deliberada. Uma posição que tomamos na vida diante de nós mesmos. Mesmo que ninguém me veja ou saiba que fiz uma ação do mal, eu sei. E isso é suficiente. Isso se chama consciência.

Cada vez que você decide, você escolhe. Roubar uma vasilha de um bicho de rua não é tão grave quanto matar um morador de rua, mas todas as ações residem no mesmo território, depende do quanto você avança nele.

Todos os dias vemos no noticiário coisas hediondas e na maioria provavelmente impunes. Tantas vezes perguntamos como alguém chega a esse extremo de maldade e o quanto se sente mortificado e arrependido pelo que fez. É surpreendente quando não existe arrependimento e a pessoa justifica com sua razão o que fez e o que causou. Cria uma lógica interna que só reforça a atitude que tomou.

A desconexão com os outros e com o sofrimento alheio, a absoluta falta de empatia, a frieza e indiferença são sintomas dos psicopatas. A escolha do mal começa nos pequenos gestos, nos pequenos sentimentos e se alastra. E é com essa escolha que cada um determina não só o seu caráter, mas o seu destino.

BRUNA LOMBARDI

29 DE OUTUBRO DE 2022
J.J. CAMARGO

O DIREITO ADQUIRIDO DE RECLAMAR

Quando jovens, e por consequência imaturos, estávamos sempre em conflito com os inseguros, esses tipos pusilânimes (acho que naquela época, mais toscos do que hoje, os chamávamos de frouxos), esses enrolados em quem sabe, depende, talvez, pode ser que não seja bem assim, melhor aguardar um tempo antes de decidir. Como se não tivessem cérebro, esse apêndice tão exuberante em nossas cabeças feitas para pensar.

E o conflito era, como sempre, desencadeado pela descoberta desses obtusos que não comungavam das nossas crenças, por mais óbvias que elas fossem. Na nossa opinião inteligente e isenta, claro.

Mas os embates eram menos truculentos porque se limitavam a discussões em ambientes restritos, que tornavam os desacatos bem menos frequentes, porque a nossa cara e a do desacatado continuariam ao alcance das mãos respectivas, nos dias e semanas que se seguiriam. A proximidade e o olhar crítico dos circundantes, muitas vezes amigos de ambos, era claramente um antídoto poderoso à grosseria.

Com a chegada da internet, o mundo foi transformado num imenso boteco, onde ninguém conhece ninguém, e então a bravata foi liberada. E os covardes, que escorreriam pela perna se encontrassem frente a frente o seu "inimigo" circunstancial, se transformaram em heróis, louvados por milhares de seguidores desocupados e ansiosos por quem soubesse aplicar um corretivo naquele que ousasse expor uma opinião diferente da tribo.

E assim brotaram os valentões, vitaminados por décadas de vida frustrada, à espera de uma oportunidade para tentar recompor com reles vingança o que sobrou de autoestima estilhaçada pelo convívio diário com a mediocridade.

Mas a construção de uma sociedade melhor não pode se deixar levar por rompantes de imaturidade, que impliquem em retrocesso, expresso na sua forma mais primitiva pela violência.

A violência, como atitude física, se revelou menos frequente, por ser limitada ao mundo real, onde a covardia amordaça o covarde, protegendo-o da humilhação presencial, mas se torna extremamente maligna no mundo virtual, que liberta o agressor das amarras do medo, liberando-o para ser o idiota ilimitado, que atinge seu ápice em épocas de radicalização raivosa.

Cumprido este ciclo, espera-se que o tempo seja um eficaz solvente do ódio e possamos recuperar a consciência de que o ser humano é uma obra eternamente inacabada, em construção. O que somos agora serve apenas como base para aquilo que seremos amanhã. Cada nova experiência, boa ou ruim, acrescenta algo em nós, que pode nos ajudar ou atrapalhar, mas que, de qualquer modo, faz parte do que somos (Puig, 1995).

Nesta reconstrução, não podemos perder tempo com a fantasia tola de que algum governante sozinho possa, efetivamente, mudar as nossas vidas. Seria ingenuidade demais.

Mas isso não nos isenta da responsabilidade de fazer escolhas, quando o que está em jogo é muito maior do que a questão da simpatia pessoal. Podemos repelir um ou os dois candidatos, mas o que vamos decidir é o modelo que eles representam. A liberdade de escolha é uma das maravilhas da verdadeira democracia, único regime que assegura este direito. Cabe-nos fazer desse privilégio um dever, que idealmente deva incluir os 32,2 milhões de omissos que ficaram em casa no primeiro turno, como se o país não fosse deles também.

Então, vença a inércia, saia de casa e ofereça uma chance ao seu país. Isso lhe dará, ao menos, o direito de reclamar no futuro. Que, bom ou mau, haverá.

J.J. CAMARGO

29 DE OUTUBRO DE 2022
LEANDRO STAUDT

Por que esta eleição é histórica

A paixão política não é novidade no Brasil. Sempre vivemos com divergências, baixarias, brigas familiares e até crimes, inclusive nos períodos sem eleição no império e na república. O senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, por exemplo, foi assassinado com uma punhalada pelas costas no Rio de Janeiro. Nos nossos campos, o sangue das degolas marcou tempos tristes da política rio-grandense. Getúlio Vargas cometeu suicídio e gerou a revolta de seus apoiadores contra os opositores.

O que a eleição presidencial de 2022 tem de histórico? É a idolatria, impulsionada pelas redes sociais. O Brasil tem dois candidatos no segundo turno que são amados por milhões e odiados por outros tantos milhões. Desde a redemocratização, não tivemos um embate com políticos tão populares.

Mesmo superando nomes relevantes em 1989, a popularidade de Fernando Collor de Mello foi como um voo de galinha. Ninguém lotou as ruas para tentar evitar o impeachment. Fernando Henrique Cardoso permaneceu oito anos no Palácio do Planalto por reconhecimento do fim da hiperinflação após o Plano Real. Nas eleições do início deste século 21, Luiz Inácio Lula da Silva venceu já com a idolatria da esquerda. Conseguiu, inclusive, eleger a sua ministra Dilma Rousseff como sucessora.

Em 2002, 2006, 2010 e 2014, os candidatos José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves, todos do PSDB, chegaram ao segundo turno contra Lula e Dilma. Os tucanos conquistaram mais votos pela oposição aos petistas do que pela própria popularidade. Durante os últimos dois governos do PT, em trabalho de formiguinha, o então deputado federal Jair Bolsonaro percorria o Brasil, conquistando admiração de eleitores de direita. Capturou o sentimento de muitos brasileiros que não se viam representados por petistas e tucanos, que monopolizavam as disputas.

Em 2018, depois do impeachment de Dilma e o governo- tampão de Michel Temer, Bolsonaro surpreendeu muitos especialistas e venceu a eleição. Não foi só um voto contra o PT, representado na disputa por Fernando Haddad. Bolsonaro conseguiu à direita o que Lula já tinha à esquerda.

A idolatria é diferente da simples admiração, o que é mais comum na política. Quando o ídolo fala, o ferrenho eleitor recebe como a verdade pura. Todo o resto está errado. É um dos motivos de acreditarem tanto nas fake news.

Diante da disputa de dois políticos tão populares, independente do resultado, o Brasil terá no início da noite de domingo uma grande festa e, do outro lado, a insatisfação e até a revolta. Como em um clássico na final de um campeonato de futebol, os torcedores derrotados culparão a desonestidade do adversário, o juiz e o gramado.

A democracia permitirá que seu time, ou candidato, dispute e vença a próxima eleição.

LEANDRO STAUDT

29 DE OUTUBRO DE 2022
ARTIGO

CHURCHILL, GOEBBELS E O TSE

De clichês, pouco se espera, mas algo se extrai. Se não, vejamos: "A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras", disse Winston Churchill, que, sem maltratá-la, liderou a resistência da Inglaterra ao totalitarismo de Hitler. "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta", ensinou Ruy Barbosa, que, dentre tantos epítetos, tem o de patrono dos Tribunais de Contas do Brasil. "Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade", afirmava Joseph Goebbels, o ministro da propaganda que viabilizou o horror nazista.

Em 2017, fake news foi eleita a "palavra do ano". Desde então, seu uso indiscriminado adquiriu uma escala inimaginada, a distorcer a própria democracia, que se vê ameaçada em sua efetividade. Soterrados por fake news, repetidas à exaustão e endossadas pelos coabitantes das "bolhas" virtuais que as redes constroem, os eleitores são privados de informações fidedignas que lhes forneçam suporte para escolhas conscientes.

Nesse contexto de risco à democracia - que não admite alternativas, como aprendemos com Churchill -, é que se insere recente resolução do TSE, cuja constitucionalidade foi atestada pelo STF esta semana. Para novos males, remédios inéditos. O potencial destrutivo das mentiras propagadas "goebbelianamente" exige respostas imediatas, para que a Justiça não opere com o atraso alertado por Ruy, porque o voto não tem volta. Sem entrar no mérito quanto a erros ou acertos em casos concretos - que devem ser resolvidos pelo devido processo legal -, o poder de polícia do Tribunal da Democracia parece se aplicar à situação.

Que a ação das instituições para que o voto seja realmente livre e a consciência cívica dos cidadãos nas urnas propiciem uma eleição em absoluta normalidade, seguida da devida apuração, segura e confiável como sempre. E que o resultado do pleito, espelhando a vontade da maioria do eleitorado, seja respeitado, em prol da paz social que ansiamos e da manutenção de um Estado de direito democrático, que tanto custou a tantos. 


29 DE OUTUBRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

OPINIÃO DA RBS

O veredito das urnas

Neste domingo à noite, o país saberá se o quadriênio à frente será de continuidade na Presidência da República ou se as urnas apontarão para a alternância no poder. A mesma encruzilhada estará diante dos gaúchos na disputa pelo Palácio Piratini. Seja qual for o desfecho das duas eleições, há um fato maior a enaltecer: as escolhas serão feitas por meio do voto livre e secreto de cada cidadão ou cidadã apto a manifestar a preferência sobre quem deseja para governar o Brasil e o Rio Grande do Sul entre 2023 e 2026.

Em uma democracia, o ato de votar é o mais importante exercício da cidadania. Na ação de digitar e confirmar o número do candidato está compreendido o endosso a uma linha de pensamento ou a um projeto de país ou Estado - embora muitas vezes a rejeição a um nome também mova a decisão. Como é uma escolha na prática irrevogável ao menos até o próximo pleito, idealmente o voto deve ser resultado de profunda reflexão. Afinal, são os próximos quatro anos que estão em jogo, nas definições se o Brasil será presidido por Jair Bolsonaro (PL) ou Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e se Eduardo Leite (PSDB) ou Onyx Lorenzoni (PL) conduzirá o Estado no período do mandato a seguir.

É inconteste que a eleição para o Palácio do Planalto magnetiza mais o eleitor. Nos dois polos e mesmo entre cientistas políticos, a votação deste 30 de outubro é considerada uma das mais importantes da história do Brasil, pelas diferenças entre o que as candidaturas simbolizam e pelo fato de serem os dois líderes mais populares das últimas décadas do país. 

Consolidados há um bom tempo na posição de oponentes que fatalmente protagonizariam o enfrentamento eleitoral em 2022, Bolsonaro e Lula e seus apoiadores aguerridos travaram uma disputa voto a voto que, muitas vezes, escorregou para episódios lamentáveis de violência. Pelo bem do país, o que se espera é uma conduta responsável de ambos a partir do veredito das urnas, seja qual for a posição de cada um - vencedor ou derrotado. A eleição tem de terminar neste domingo, sem terceiro turno.

O eleitor tomará uma decisão soberana, que deve ser respeitada. Em nome da pacificação do Brasil, aguarda-se que quem não for o escolhido tenha uma atitude civilizada, de espírito democrático, e reconheça o resultado. O mesmo comportamento se espera de seus seguidores, admitindo a legítima vontade da maioria.

Do vencedor, o país aguarda uma postura magnânima, com acenos ao apaziguamento e à promoção da concórdia na base da sociedade, pela força do exemplo. O presidente eleito ou reeleito deve deixar claro, no primeiro pronunciamento à nação, que vai governar para todos, o que inclui a parcela relevante da sociedade que sufragou o adversário. Além de enfrentar os mais urgentes temas do país em áreas como saúde, educação e economia, é chegada a hora de pregar o serenar de ânimos político, institucional e nas relações pessoais.

Votar é um direito e um dever de cada cidadão apto, um gesto movido pela aspiração cívica de colaborar com a construção coletiva de um futuro venturoso para o Brasil e para os brasileiros. A conclusão do pleito, materializada nos números finais anunciados pela Justiça Eleitoral, é a manifestação soberana do eleitor. É preciso crer que as candidaturas e seus partidários, em submissão à Constituição e em linha com as regras do contrato social, se mostrarão cientes de suas responsabilidades para com a estabilidade do país. Seguidas essas premissas, o Brasil dá mais um passo na direção do fortalecimento da democracia.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022


Busca de autenticidade e sentido no mundo digital

Jaime Cimenti
Estamos todos estonteados em meio a sons, palavras e imagens desse nesse mundo tecnológico. A casa de doces (Editora Intrínseca, R$ 79,90, 384 páginas, tradução de Débora Landsberg) é o novo romance da consagrada escritora Jennifer Egan, que recebeu os prestigiados Prêmios Pulitzer e National Book Critics Circle Award pelo grande romance best-seller A visita cruel do tempo, lançado no Brasil em 2012 pela Editora Intrínseca. A casa de doces trata justamente da busca de autenticidade e sentido neste universo high tech no qual estamos mergulhados até o pescoço.
A casa de doces está sendo considerada uma obra 'irmã' do romance premiado, que tornou a autora uma das mais célebres da atualidade. A narrativa gira em torno de Bix Bouton, empresário de sucesso, conhecido como um semideus da tecnologia, que ganhou muito dinheiro no passado ao se apropriar das instigantes ideias contidas no livro de uma antropóloga respeitada.
Aos quarenta anos, exausto e desesperado por uma nova inspiração, vai, disfarçado, em uma reunião de professores em um prédio próximo da Universidade de Columbia, em Nova York. Lá descobre que um dos presentes está pesquisando a "externalização" da memória humana. Em 2020 Bix criou uma ferramenta nova, Domine seu Inconsciente, que acessa todas as memórias dos humanos e permite compartilhamento em troca do acesso às lembranças de outras pessoas.
Em uma teia fascinante, acompanhamos os impactos e desdobramentos dessa assustadora tecnologia na vida de pessoas comuns, cujos caminhos se cruzam em diferentes momentos ao longo de décadas. Jennifer manipula com precisão vozes e estilos variados e retrata um mundo que não está muito longe do nosso. Um mundo marcado pela vigilância digital e pela constante representação nas interações em redes sociais.
 Lançamentos
Vença! com Alexandre de Bem (Buqui, 152 páginas, R$ 45,00), do administrador de empresas e fundador das Lojas De Bem, com orientações objetivas e 160 frases de amigos, busca gestão empresarial feliz e simplificada. "Você encontrará dicas preciosas em administração, direto da fonte: a experiência", diz Lírio A. Parisotto, empreendedor, na apresentação.
O livro dos cinco anéis (Avis Rara, 96 páginas, R$ 29,90), do samurai japonês Miyamoto Musashi (1584-1645), é clássico milenar da estratégia, necessário para todas as etapas da vida. Percorrendo o caminho que vai do Japão antigo ao século XXI, o leitor poderá aplicar os princípios atemporais do Mestre e vencer.
Almoço - Conversa com Eliane Brum (Arquipélago, 80 páginas, R$ 45,00) traz textos da premiadíssima jornalista e escritora Eliane Brum e quadrinhos do talentoso Pablito Aguiar, retratando a casa de Eliane em Altamira-Pará, sua vida e seu rico universo, que envolve natureza, criatividade, delicadeza e força.
 Os Brasis do futuro
Brasil crioulo, caboclo, caipira, sertanejo e sulino, somos muitos e diversos brasileiros e Brasis, velhos e novos, rurais e urbanos, interioranos e litorâneos. Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Euclides de Cunha, Roberto da Matta, Hélio Silva, Laurentino Gomes, Jorge Caldeira, Caio Prado Jr., Heloisa Starling e Lilia Schwarcz, entre muitos outros, escreveram obras seminais para entender, um pouco ao menos, esse Brasil que não é para principiantes, como disse Tom Jobim. João Cabral de Melo Neto disse que o parto do Brasil é demorado. Somos eternos profissionais da esperança e da paciência. Já fomos mais 'cordiais' e pacíficos. Uns já têm saudades do futuro que ainda não apareceu.
Neste Bicentenário do Brasil (1822-2022) não tivemos muitas comemorações e nem paramos muito para pensar, refletir e agir sobre nosso passado, para projetar o futuro. Alguém disse - Pedro Malan ou Gustavo Loyola? - que, no Brasil, até o passado é incerto. Além de nosso futuro duvidoso, a autoria da frase também é incerta e duvidosa.
O País do Futuro e Seu Destino (L&PM Editores, 336 páginas, R$ 78,90), obra organizada por João Carlos Brum Torres, professor-doutor de Filosofia da Ufrgs e ex-Secretario de Estado da Coordenação e Planejamento do Estado, apresenta ensaios do autor e de Carlos Paiva, Cícero Araújo, Fabian Scholze Domingues, Juremir Machado da Silva, Leonardo Belinelli, Lourival Holanda, Luís Augusto Fischer, Pedro Fonseca, Renato Steckert de Oliveira e Zander Navarro sobre nosso Bicentenário.
Os textos falam de veleidades libertárias no Brasil; jornalismo, escravidão e política na independência; José Bonifácio; identidade do Brasil; desejo de futuro na literatura brasileira; independência e projeto de desenvolvimento; Lei de Terras de 1850 e o advento do capitalismo brasileiro; projeto econômico da ditadura militar e longevidade dos anos de chumbo; a esquerda no poder: apogeu e declínio de um experimento constitucional (2002-2016); e o mundo rural: o novo emerge sobre as raízes do passado.
Depois desses primeiros duzentos anos, temos alguns avanços sociais, científicos, culturais, artísticos, econômicos e políticos para comemorar. Não tantos quanto gostaríamos. Devemos dar mais atenção à data e valorizar momentos como o Plano Real, talvez nosso acontecimento histórico mais importante, ocorrido no governo Itamar Franco, que merece mais lembrança, pelos exemplos deixados. Entre sístoles e diástoles, aberturas e fechamentos, planos econômicos, guerra e paz e o escambau, a gente vai levando. O País do Futuro e Seu Destino, com análises e reflexões percucientes de seus importantes colaboradores, é um protesto contra imediatismos e convite para pensar sobre um projeto nacional e sobre um País que deixe de ser uma eterna possibilidade do futuro para tornar-se a nação do presente que tanto sonhamos. Vem em boa hora essa ótima coletânea de ensaios que trata de literatura, jornalismo, economia, agricultura, sociologia e filosofia.
 A propósito...
Depois das eleições, seja qual for o resultado, o esforço maior de todos os brasileiros deverá ser o de conseguir pensar em um projeto nacional e conseguir cultivar nossos traços de união, nossas melhores qualidades e pensar que somente com muito diálogo, paciência, harmonia e união e respeito aos legítimos interesses coletivos é que vamos construir uma nação democrática, desenvolvida social, cultural, política e economicamente. Para isso, é preciso pensar e agir sobre ideias como as que estão em O País do Futuro e Seu Destino. Sem lembrar e respeitar o passado para construir o futuro, a tarefa de erguer uma Nação, que já é bem difícil, pode tornar-se impossível, e aí seguiremos como o eterno país da semana que vem.

28 DE OUTUBRO DE 2022
CARPINEJAR

Golpe das sacolas de livros

A 68ª Feira do Livro de Porto Alegre começa hoje. Espero todo mundo na Praça da Alfândega, às 18h, na solenidade de abertura.

Não somente porque estarei passando o patronato ao meu pai, o poeta Carlos Nejar - e certamente eu e ele estaremos pagando vexame juntos, chorando como crianças -, mas também porque o espaço é um achados e perdidos de amizades e amores - aquele colega do Ensino Médio com quem perdeu o contato, você o reencontrará certamente lá.

Sinto que vou embargar a voz. O que me consola é que o pai me emprestará o lenço que carrega no bolso do seu terno. Ele é um cavalheiro à moda antiga, não sai de casa sem o lenço - essa rosa branca ou vermelha brotando do coração dos homens.

Enquanto estivermos no palco, mais do que como escritores, ambos nos enxergaremos, alheios aos protocolos, como pai e filho - às vezes sou seu pai, às vezes ele é meu filho. Enquanto ocorrer a homenagem pública, haverá gentilezas privadas entre nós, um cuidará do outro com o olhar: eu verei se seus sapatos estão amarrados, ele verá se a minha gravata está torta, eu verei se não há nenhuma mancha de pasta de dente em sua camisa, ele verá se fiz bem a barba na borda do pescoço. São atenções discretas que talvez ninguém perceba, mas que fazem a maior diferença para o amor.

Não espere até o dia 15 de novembro. Não deixe para depois, não se adie, não planeje excessivamente. O tempo corre e não é devolvido. Venha para perto dos jacarandás já nesta sexta, traga a família. Meus pais me levaram desde bebê e deu no que deu: foi tanta paixão pelas barracas que os três assumiram a condição de patronos (a mãe, Maria Carpi, em 2018, eu em 2021, o pai nesta edição).

Aproveite os descontos da Feira para comprar os presentes de Natal, para antecipar o material escolar, para escolher suas leituras de férias. Faça uma listinha de obras essenciais. Procure os autores que ama para um abraço e um autógrafo. Encha a térmica até a borda e converse mateando com os livreiros - eles são capazes de adivinhar o seu perfil e indicar de que anda precisando no momento para ajeitar a vida. Participe dos debates gratuitos e das oficinas com os mais representativos nomes da literatura contemporânea. Entre os destaques estrangeiros, teremos a presença do norueguês Geir Gulliksen, que escreveu História de um Casamento, e da argentina Florencia Bonelli, que publicou O Feitiço da Água. Não tem que pagar entrada, nem um centavo para ouvir grandes pensadores.

Não há no mundo uma feira a céu aberto com tamanho lastro. No ano passado, não choveu sequer um dia, havia somente as folhas amarelas da primavera cobrindo as passarelas de vidro. Tomara que tenhamos a mesma sorte.

Como ando num momento de remissão dos pecados, própria da crise de quem completou 50 anos, quero pedir desculpas para o escritor Tailor Diniz. Já apliquei nele o famoso golpe das sacolas, que consiste em segurar as sacolas cheias de livros do outro, por aparente generosidade, na hora em que ele compra pipoca ou tira uma foto, e devolver no lugar as próprias sacolas somente com mostruários de estandes, guias de programação e folders de propaganda.

Aqueles livros que você jura que comprou e não sabe onde foram parar, Tailor, estão comigo.

CARPINEJAR